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Toggle“Essa vala vive”, diz Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, ex-presa política e familiar de desaparecido, ao lembrar das histórias em torno da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, em Perus, região noroeste de São Paulo. Uma live na noite de ontem (1º) marcou o lançamento de livro que está sendo escrito pelo jornalista Camilo Vannuchi. Os primeiros capítulos estão disponíveis no site. Serão oito no total. O livro é iniciativa do Instituto Vladimir Herzog (IVH), em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.
A obra pretende justamente contar a “biografia” da vala clandestina, cuja descoberta completará 30 anos na próxima sexta-feira (4). A história tornou-se pública em 1990, mas familiares de desaparecidos políticos já tinham informações desde meados dos anos 1970. O cemitério foi inaugurado em 1971.
Reprodução: Rede Brasil Atual
Descoberta há 30 anos, vala clandestina ainda tem histórias a desvendar.
Abandono e investigação
Descobertas em 1990 após investigação do jornalista Caco Barcellos, da TV Globo, que apurava casos de violência policial, as ossadas passaram por longa peregrinação, prolongando a falta de descanso daqueles corpos. Passaram pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde ficaram abandonadas por extenso período, foram para o Cemitério do Araçá, em São Paulo, e desde 2014 estão sob a guarda da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por meio do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), resultado de esforços dos governos federal (Dilma Rousseff) e municipal em São Paulo (Fernando Haddad), com a presença constante dos familiares de desaparecidos.
“A vala de Perus traz vários marcos históricos e políticos. É muito importante que a gente pense nisso, porque estamos vivendo a política da morte”, diz Amelinha Teles. “Trouxe também essa possibilidade de a Unifesp criar um centro fortalecendo o campo científico do Brasil, que hoje está sendo boicotado.”
Para Camilo, a descoberta e consequente investigação envolvendo Perus foi resultado da “audácia” de algumas pessoas. Ele cita, entre outros, o jornalista Caco Barcellos, a então prefeita Luiza Erundina (então no PT, hoje deputada pelo Psol) e o administrador do cemitério, Antônio Eustáquio, além dos familiares. Os três gravaram depoimentos para a live, que também contou com a presença de outros familiares de desaparecidos, como Iara Xavier e Suzana Lisboa.
A violência continua
Como membro da Comissão da Memória e Verdade da prefeitura de São Paulo, Camilo pôde se aprofundar na história e histórias da vala clandestina de Perus. Ele teve um primo em segundo grau, o estudante e militante Alexandre Vannuchi Leme, enterrado no local depois de ser assassinado pela ditadura em 1973. Usaram cal para que seu corpo ficasse decomposto mais rapidamente. Descoberto, hoje está em Sorocaba (SP), sua cidade natal. Camilo lembra que a primeira recomendação da Comissão da Verdade paulistana foi justamente prosseguir na investigação das ossadas.
A pista surgiu “entre milhares de papeis envelhecidos, sujos de sangue, numa grande sala no IML de São Paulo”, lembra Caco. Médicos legistas marcavam alguns laudos com uma letra T, em vermelho. Era uma designação para “terroristas”, como a ditadura classificava os militantes políticos.
Mas essa história continua, acrescenta Caco, referindo-se à violência do Estado. “A PM matou no primeiro semestre mais que a ditadura inteira”, afirma. A diferença está no perfil dos vítimas. Antes, eram jovens brancos, profissionais liberais. Agora, são jovens, negros, “e todos, absolutamente todos, filhos de trabalhadores de baixa renda”.
Coincidência? Consequência
Ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a procuradora da República Eugênia Gonzaga observa que os dados oficiais só consideram os militantes políticos, mas o número de vítimas sob a ditadura é certamente maior. “Esses mortos da vala de Perus são frutos praticamente todos da violência do Estado. Qualquer semelhança com a realidade não é não é mera coincidência, é consequência”, diz.
O militante Flávio Molina foi morto sob tortura em novembro de 1971, perto de completar 24 anos. Foi enterrado em Perus com nome falso. A família só teve certeza da morte em meados da década de 1970, mas a identificação só veio 2005, quando houve, inclusive, cerimônia na Procuradoria de São Paulo para entrega dos restos mortais. Agora, repousa no jazigo da família no Cemitério São João Batista, no Rio.
Lei de Anistia: reinterpretação
Gilberto Molina, seu irmão, se emocionou várias vezes ao lembrar da dificuldade da família para enfim localizar, identificar e enterrar Flávio. A identificação via DNA ocorreu após 15 anos de tentativas. Ele lembrou de uma reunião em São Paulo, em uma sala onde havia um esqueleto montado. A certa altura, alguém pergunta: você acha que se parece com seu irmão? “Voltei para o Rio, entrei no quarto e desabei num choro que nunca tinha acontecido.” Flávio tem três atestados de óbito: com nome falso, com causa mortis “fajuta” e o autêntico.
Para o diretor executivo do IVH, o ex-secretário de Direitos Humanos Rogério Sottili, a história da vala clandestina de Perus conta um capítulo da busca por memória, verdade e justiça no país. Ele enfatiza o papel dos familiares. “Nunca esqueceram, nunca abandonaram, nunca deixaram de acreditar na luta. Ela (a vala) consegue explicar um pouco o que nós estamos vivendo hoje.” Sottili defende a retomada da discussão sobre uma reinterpretação da Lei de Anistia. Precisamos levar esse tema à frente.”
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