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ToggleMaría Arenas é filha de guerrilheiros, mas não nasceu no monte. Quando chegou a este mundo, no final dos anos 1970, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) já proibiam seus integrantes de ter filhos e advertiam as mulheres, antes de ingressar, que deveriam usar métodos anticonceptivos.
“Alguns anos antes, a guerrilha não regulava esse tema e nos acampamentos insurgentes até se celebravam os nascimentos”, relata Maria, ex-combatente das FARC e que assinou os acordos de paz de 2016.
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Segundo esta mulher de olhar contundente, quando a guerra se escalou e a incipiente força insurgente teve que enfrentar um Estado Colombiano “apoiado pelos Estados Unidos, Reina Unido e Israel”, se disparou a chegada de mulheres às filas rebeldes, e regulamentar o tema e a presença de crianças nos acampamentos era totalmente incompatível”, explica.
Conversamos durante belas tardes ensolaradas que se desfrutam nesta época, ao redor de uma pequena montanha de documentos que ela reuniu à raiz do anúncio da Jurisdição Especial de Paz (JEP) de abrir um macrocaso sobre “violência baseada em gênero e violência sexual” derivadas da guerra travadas pelas FARC e o Estado Colombiano por mais de seis décadas.
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O anúncio da justiça transicional, instância surgida dos acordos de paz de 2016, está baseada em denúncias de mais de 35 mil vítimas, 82% delas mulheres, que afirma ter sido objeto de agressões de diversos tipos em razão de sua condição de gênero por parte dos grupos paramilitares (33%), FARC (5,8%) e exército (3,4%). Entre as denunciantes também figuram pessoas da comunidade LGTBQ+ que alegam ter sido obrigadas a sair de seus lugares de origem e ser vítima de assédio e agressão sexual.
Como em todas as guerras, na da Colômbia as mulheres foram as maiores vítimas; viúvas que tiveram que tomar conta de seus filhos; milhões de deslocadas que abandonaram suas terras para escapar da morte, mães que tiveram seus filhos sequestrados para depois mostrá-los como “subversivos caídos em combate”, descapacitadas por conta de explosivos regados à beira dos caminhos; mulheres violadas por atores armados, mulheres torturadas, mulheres desaparecidas.
No reinado dos paramilitares, durante os dois governos sucessivos de Álvaro Uribe (2002-2008) – contam os testemunhos de milhares de mulheres – os chefes destes esquadrões da morte exigiam aos camponeses que entregassem suas propriedades em troca de somas irrisórias, “ou, se não, a escritura terá que ser firmada por sua viúva”.
Por décadas, a paisagem das grandes cidades colombianas teve incorporada a cena de mulheres de peles curtidas, rodeadas de filhos famélicos, pedindo esmola nos semáforos com um cartão escrito em letra tremida: “Somos deslocadas da violência, ajudem-nos!”.
Foto: Andrés Gómez Tarazona/Flickr
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Justiça ou paredão?
Segundo analistas locais, o caso aberto pela JEP tem total pertinência, pois busca revelar a verdade sobre uma face da moeda que costuma ficar relegada ao final das guerras, mas parecerá estar construída sobre pilares já conhecidos, que terminam deixando a sensação de que, em geral, os guerrilheiros agiam sob o efeito de um fanatismo cego.
“Nós nos sentimos maltratadas pela JEP, pela Comissão da Verdade e pelos meios de comunicação que querem impor a ideia de que as mulheres na guerra éramos escravas sexuais, objetos para o prazer e que não tínhamos nosso lugar na luta”, diz Arenas, com evidente desgosto.
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Segundo a ex-combatente, “é nítido que as guerrilheiras lutamos ombro a ombro junto aos homens e participamos com heroísmo das grandes batalhas pela libertação de nosso país”.
Com sessões solenes de ampla difusão que expelem um inconfundível cheiro inovador dos julgamentos de Nuremberg, os anteriores dez macrocasos abertos pela JEP deixaram bastante malparada a guerrilha, apesar de Maria Arenas saudar a decisão da justiça transacional de abordar os abusos em razão de gênero.
“Ao longo deste processo, teremos a oportunidade de demonstrar à JEP, à Colômbia e ao mundo que as mulheres revolucionárias ocupamos um lugar de honra nas lutas sociais e armadas pelas mudanças”.
A assinante da paz, hoje ativa militante do partido Comunes, agrega que aproveitará a exposição midiática derivada da decisão da JEP de denunciar o que ela considera uma grande hipocrisia: “A Colômbia tem um dos maiores níveis de desigualdade do mundo, que impediram por décadas que as mulheres possam aceder a todos os seus direitos e não vamos deixar que os dedos acusadores se desviem dos verdadeiros responsáveis, as elites que nos governaram por mais de dois séculos”.
As mulheres tinham voz própria
Paula Sáenz deixou de disparar armas para disparar câmeras de fotografia e deixou de andar pela selva para caminhar pelos corredores da Casa de Nariño, sede do governo da Colômbia.
Aprendeu fotografia no monte e quando firmou os acordos de paz de 2016 seguiu usando sua câmera nas ruas de Bogotá, até que as explosões sociais a converteram em uma espécie de repórter dos tropéis, protagonizados por centenas de milhares de jovens fartos do estabelecido.
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Em 7 de agosto de 2022, quando tomou posse o presidente Gustavo Petro, Sáenz passou a integrar a equipe de imprensa do chefe de Estado. Agora, tirou alguns minutos para falar com o La Jornada.
Desculpa-se por responder tão tarde as perguntas que lhe enviamos “porque estava em ‘trote bravo’ com o presidente lá em Cauca”, mas sua voz se ilumina quando lhe pedimos que nos diga “que era ser mulher na guerrilha”.
“Mulheres e homens faziam o mesmo, desde cozinhar e cavar trincheiras até ir ao combate com o inimigo”, diz, advertindo que “isso de que mulheres e homens tínhamos as mesmas possibilidades de ter cargos de direção, é pura conta”.
Sua vida depois da guerra deu viradas sucessivas e muitas vezes caiu em longas melancolias, mas reconhece que sua passagem pela vida insurgente lhe deixou ferramentas para enfrentar todo tipo de adversidades. “Na guerrilha adquirimos consciência política e terminamos sendo sujeitos políticos, pessoas com voz própria”, assegura.
Este e outros testemunhos se enfrentarão em poucos dias contra os de mulheres que alegam ter sido escravizadas sexualmente pelos comandantes, violadas ou assediadas. Também contra as vozes de jovens que asseguram ter sido
obrigadas a abortar ou entregar seus filhos recém-nascidos a terceiros.
As deliberações deste macro caso prometem uma visão mais próxima sobre um universo cheio de estigmas e lugares comuns construídos durante anos nos meios de comunicação, e talvez – como diz Maria Arenas – “terminem pondo as coisas em seu lugar para o bem da verdade e da não repetição”.
Jorge Enrique Botero | La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados
Tradução: Beatriz Cannabrava
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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