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Toggle“A civilização, que é o nome vulgar com que corre
o estado atual do homem europeu, tem direito natural
a apoderar-se da terra alheia pertencente à barbárie,
que é o nome que os que desejam a terra alheia
dão ao estado atual de todo homem
que não seja da Europa ou da América europeia”
José Martí, 1884[1]
Em uma rede social, uma fonte anônima publica uma mensagem aparentemente simples: a globalização, diz a mensagem, “é outro nome da colonização”, como são – acrescenta – a conservação, a modernização, o desenvolvimento e o progresso. Algo nos diz isto, com toda a estridência de suas limitações, sobre o processo de desintegração da geocultura no sistema mundial criado em outros tempos pelo liberalismo triunfante.
Mais nos disse, como era de esperar, o senhor Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para os Assuntos Exteriores, na inauguração da Academia Diplomática Europeia em Bruges (Bélgica). Ali referiu-se ao lugar da Europa no sistema mundial nos seguintes termos:
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A Europa é um jardim. Construímos um jardim. Tudo funciona. É a melhor combinação de liberdade política, prosperidade econômica e coesão social que a humanidade pôde construir, as três coisas juntas. E aqui, Bruges, é talvez uma boa representação das coisas belas, da vida intelectual, do bem estar. O resto do mundo […] não é exatamente um jardim. A maior parte do resto do mundo é uma selva, e a selva poderia invadir o jardim. Os jardineiros devem cuidar dele, mas não protegerão o jardim construindo muros. Um pequeno e bonito jardim rodeado de altos muros para evitar que entre a selva não será uma solução. Porque a selva tem uma grande capacidade de crescimento e o muro nunca será suficientemente alto para proteger o jardim.[2]
Para esta tarefa de proteção, acrescentou em seguida, os jardineiros “têm que ir à selva. Os europeus têm que estar muito mais comprometidos com o resto do mundo. Do contrário, o resto do mundo nos invadirá, de diferentes meios e formas.”
E isto é tanto mais importante, disse ainda, porque “estamos vivendo também um ‘momento de criação’ de um mundo novo”, e “temos que mostrar nossa união, nossa força e nossa determinação.” O suporte maior desta determinação, acrescentou, consiste em que os europeus têm “instituições fortes”, que constituem a “grande diferença” entre “desenvolvidos e não desenvolvidos”. E o panorama que descreveu a seguir não pôde ser mais consistente com a qualidade do argumento:
“Aqui temos um poder judiciário, um poder judiciário neutro e independente. Aqui, temos sistemas de distribuição de renda. Aqui temos eleições que dão liberdade aos cidadãos. Aqui temos os semáforos no vermelho controlando o trânsito, as pessoas jogando o lixo. Temos este tipo de coisas que tornam a vida fácil e segura. Instituições, isso é o que importa. É muito difícil construir instituições.
Como Jose Martí oferece luz à reconstrução da América diante dos novos tempos
E por último, depois de alinhavar algumas reflexões sobre a importância da identidade no mundo contemporâneo, e a vantagem que para os europeus representa ter clara a sua, passou a lembrar a sua audiência o sentido da missão que deverão assumir: “Conservai o jardim, sede bons jardineiros”, disse, mas lembrem-se de que seu dever “não será cuidar do jardim em si, e sim de toda a selva.”
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María Zakharova, chanceler russa: "Lógica da segregação e a filosofia da superioridade eram as que sustentavam o fascismo e o nazismo"
Contexto de guerra
Tudo isso, naturalmente, ocorre no contexto da guerra que travam a União Europeia e a OTAN contra a Rússia no território da Ucrânia. Não foi de estranhar que a porta-voz do Ministério de Assuntos Exteriores da Rússia, María Zakharova, ressaltasse em sua resposta ao Alto Comissariado que “o jardim” europeu se formou “às custas da atitude bárbara frente ao saque” do resto do mundo, e que “o sistema mais próximo da Europa tem suas raízes nas colônias, que foram oprimidas sem piedade”. Para Zakharova,
“esta lógica da segregação e a filosofia da superioridade eram as que sustentavam o fascismo e o nazismo.” A guerra mundial do século XX, que constou de duas partes – acrescentou – “começou com o desejo da Alemanha de ‘restaurar a justiça’ e redistribuir as colônias europeias que não conseguiu. Foi para viver a mesma vida próspera e exploradora que viveu a pátria de Borrell, a Espanha, assim como a França, o Reino Unido e Portugal”.[3]
Zakharova reivindica para si uma linguagem que já teve uma longa trajetória em nossa América, na Ásia e na África. Capta com isso um elemento importante da circunstância de sua resposta a Borrell: o do processo de desintegração da geocultura criada em seu momento para legitimar a formação e o desenvolvimento de um sistema mundial que se desintegra também.
Esta geocultura se desenvolveu sobre narrativas de conflito: da civilização contra a barbárie (1750-1850); o progresso contra o atraso (1850-1950), e o desenvolvimento contra o subdesenvolvimento (1950-1990), para ingressar no século XXI com a bandeira do desenvolvimento sustentável do sistema mundial realmente existente, em conflito com sua evidente insustentabilidade, já expressa no risco de extinção da espécie humana.
O tempo que compartilhamos e a vigência do pensamento de José Martí em nossa América
Borrell, por sua vez, capta também este processo a partir de uma raiz cultural ainda mais profunda. A identidade a que se refere, de fato, consiste em ser civilizado em um mundo mergulhado na barbárie, e levar em seus ombros aquela “carga do homem branco” a que se referiu algum ideólogo vitoriano: a de cumprir a “missão civilizatória” que o mundo Noratlântico assumiu em suas relações com o resto da Humanidade.
O caráter civilizador desta missão lembra o fato de que entre nós foi o darwinismo social de Herbert Spencer que abriu caminho para Charles Darwin e sua teoria da evolução por seleção natural – em que prospera aquele que se adapta melhor a seu entorno cambiante – na cultura do Estado liberal oligárquico do fim do século XIX. E daqueles tempos data, precisamente, aquilo sobre o que Martí advertia em seu ensaio Nuestra América:
O livro importado foi vencido na América pelo homem natural. Os homens naturais venceram os letrados artificiais. O mestiço autóctone venceu o crioulo exótico. Não há batalha entre a civilização e a barbárie, e sim entre a falsa erudição e a natureza. O homem natural é bom, e acata e premia a inteligência superior, enquanto que esta não se vale de sua submissão para prejudicá-lo, ou o ofende prescindindo dele, que é coisa que não perdoa o homem natural, disposto a recuperar pela força o respeito de quem fere sua susceptibilidade ou prejudica seus interesses.
Parafraseando Martí, a pessoa se sente tentada a dizer até que nossa selva é preferível à que passa por jardim entre letrados artificiais. Aqui sabemos que nossas repúblicas “purgaram nas tiranias sua incapacidade para conhecer os elementos verdadeiros do país, derivar deles a forma de governo e governar com eles”, e que em nossos povos não é a imitação que falta, porque aqui, entre nós, governante “em um povo novo, quer dizer criador.”
Bibliografia
[1] “Uma distribuição de diplomas em um colégio dos Estados Unidos”. La América, Nueva York, junho de 1884. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. VIII, 442.
[2] Academia Diplomática Europeia: “Palavras de abertura do Alto Representante Josep Borrell na inauguração do programa piloto”. 13.10.2022. Bruges. Equipe de imprensa do SEAE https://www.eeas.europa.eu/eeas/european-diplomatic-academy-opening-remarks-high-representative-josep-borrell-inauguration_en
[3] “Borrell compara Europa com ‘um jardim’ e o resto do mundo com ‘a selva’”. 13 out 2022/ https://actualidad.rt.com/actualidad 444707-borrell-compara-europa-jardin
Guillermo Castro H | Colaborador da Diálogos do Sul.
Tradução: Ana Corbesier.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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Tradução de Ana Corbisier