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Foto: Herzi Pinki / Wikimedia Commons

“A Morte de Virgílio”: como distopia de Hermann Broch ecoa totalitarismos do século 20

Broch nos conduz por uma narrativa que mistura realidade e fantasia, explorando a dualidade entre arte e poder, sonho e vigília, vida e morte, num contexto de opressão estatal
Carlos Russo Jr
Espaço Literário Marcel Proust
Florianópolis (SC)

Tradução:

Escrito inicialmente num presídio da Gestapo nazista (que o autor definiu como “o inferno integral”), em 1938, e concluído em 1947 no exílio, antecede a distopia George Orwel (“1984”, escrito em 1948) e interpreta ao nível do inconsciente e do sonho “O admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley.

Thomas Mann saudou “A morte de Virgílio” do austríaco Hermann Broch, como o maior e mais incrível poema em prosa da língua alemã, um “clássico atemporal”.

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Para aqueles que, como eu, se aventurem na leitura deste livro ciclópico, “a prosa sinfônico-poética” (Hanna Arendt) e o lirismo infinito de Broch,serão transportados para um oceano de beleza e artifícios literários levados a um extremo poucas vezes sentidos literariamente.

O enredo

O tempo formal do livro é o do nascimento e consolidação do Império Romano e retrata as últimas horas do poeta Públio Virgílio Maro (70 a. C. — 19 a. C.), autor da “Eneida”, o grande poema épico latino, que celebra a fundação de Roma através da saga do herói troiano Eneias. Afinal, todo Império necessita dos louros de um princípio heroico, todo totalitarismo constrói seus mitos para persistir.

O poeta Virgílio, muito enfermo, chega com a escolta imperial ao porto de Brindisi, no sul da Itália. Eles vêm da Grécia, onde Virgílio pretendia concluir a Eneida, na qual trabalhava há dez anos. Foi convencido pelo Imperador Augusto, entretanto, a voltar à Itália para os festejos de seu aniversário. Junto vai o manuscrito inacabado, o qual desempenha um papel central na trama, pois tudo se desenrolará em torno dele e de seu destino, assim como da circunstância que Virgílio pressentia a perda de seu poder sobre o próprio destino, diante da morte que chegava.

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Aportado à terra, Virgílio será carregado em uma liteira ao Palácio Imperial. No caminho, passará pelo “beco da miséria”, onde sofrerá insultos daqueles que o tomam por algum nobre. Vencidos esses apuros, o poeta se encantará com um jovem, Lysâneas, que o acompanhou e guiou nesse caminho da pobreza absoluta, do Porto até o majestoso Palácio.

A figura desse jovem é um dos fulcros da narrativa e sofrerá várias metamorfoses ao longo desta. De uma fantasia do poeta febril, a um mero espectro juvenil a perseguir seu caminho em direção à eternidade. E nesse percorrer, o jovem que já foi o moribundo Virgílio, a mesclar-se na figura de Hermes, condutor de sua alma inquieta e desalentada.

Para além de Lysâneas

Além de Lysâneas, outros personagens aparecerão com o intuito de demonstrar esta simultaneidade de existências, como arte e história, pensar e agir, sonho e vigília, vida e morte. E o tempo e o nada, pois o sentimento do passado está por trás de tudo, mas só se mostra dentro do presente. E a simultaneidade a ser apreendida e sentida é fundamental para a missão almejada para o poeta, pois a poesia que Virgílio idealiza deve se desenvolver nesta atmosfera de passado e presente, num não-tempo. E assim Broch tenta alcançar o limite semântico da existência e nos leva a um novo estado dentro do outro, algo que a pura realidade jamais será capaz de fazer!

Daí toda a riqueza dessa experiência literária que não apenas nos sensibiliza pela beleza e cativa pelo estrondo de talento, mas nos proporciona a oportunidade de experimentar uma pura condição filosófica. Em Broch, Virgílio sentencia que a arte da Eneida é inútil, por sua mera obstinação pela estética e pela perfeição, ambas condenáveis, quando despidas de propósitos supramundanos. Pois se sabe que ela se destina a dar uma origem divina a Roma, a enaltecer um povo, sem descrevê-lo em sua decadente realidade.

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Virgílio não se perdoa por ter se prestado a esse papel e, comprovada a culpabilidade da obra, a pena a ser aplicada é a fogueira! Só o sacrifício poderá conferir alguma grandiosidade real ao poema! Mas ele e sua Eneida não estão sozinhos: terão que enfrentar forças que estão muito além das suas: a força do Império. “Queimar a Eneida! ”, pois “fácil é o caminho que conduz até Hades e encontram-se sempre abertos os portões de Plutão, mas é difícil o regresso”. Tal como em Dante encontraremos sempre abertas as portas do inferno para quem entra e fechadas para quem quer sair.

Na verdade, Broch nos diz que não há liberdade do autor sobre a obra, antes mesmo de se tornar pública. No romance, será ela propriedade do Estado, a quem cabe conduzir os anseios e destinos coletivos. A travessia do Atlântico de Broch em sua fuga do nazismo (e sua morte nos USA, esquecido e na miséria) e a navegação pelo Adriático de Virgílio, há vinte séculos, portanto, traçam paralelo inevitável entre autor e obra, já que é conhecido o esforço de Broch para aniquilar seu lado criativo no exílio, já que não valorizava a ação meramente inserida na escrita. O combate ao nazismo não se faria pela criação literária!

A agonia da morte

Por outro lado, a agonia do poeta Virgílio, ao transcorrer lentamente suas últimas horas, nos descreve a que lugares se chega à porta da morte e quem ou o que podemos enfrentar ou reencontrar nestes momentos. A agonia como personagem nos transporta à sobreposição de mundos reais ou fantasiados, que só a morte verdadeira poderá revelar. Assim, no cortejo final do poeta é descrito: “A realidade espera-te”, disse Lysâneas.

Diz Broch: “A descoberta do divino através do conhecimento introspectivo da própria alma é a tarefa humana da arte, a sua tarefa em favor da humanidade, a sua tarefa de conhecimento, e justamente por isso, a sua razão de ser, demonstrada através da proximidade da morte, porque só nessa proximidade se pode tornar verdadeira arte, assim se desdobrando num símbolo da alma humana”. Afinal, “só quem conhece a morte conhece também a vida”. A “Profecia”, mais de vinte anos do nascer do Cristo.

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Transparece aqui a impossibilidade de se fazer uma arte completa, realmente demonstradora de uma sinfônica realidade. A “profecia” em torno da estrela de Belém, mencionada várias vezes, nos deixa confusos sobre se esta realidade é ou não é a mesma que deixa o poeta sem saber o que está estabelecido para além da sua própria falta ou se é a esperança de que algo vai se contrapor ao estabelecido.

Como observa George Steiner, por muito tempo “Virgílio foi conhecido como um mágico e prognosticador sibilino na Itália Medieval. Suas profecias foram estudadas a fundo por pensadores cristãos e não é por acaso que ele é o guia de Dante na “Divina Comédia, dada sua aura de iluminação profética e de aceitação do mundo cristão”.

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Isso se relaciona com a busca da verdade e é o que se apresenta como missão à arte na compreensão de Broch. Afinal, “A literatura é linguagem carregada de significado”. Ezra Pound. E encontramos tantos significados a cada leitura deste livro! Este é um daqueles raros que podemos ler e reler ao longo da vida e mesmo assim sempre encontraremos algo não visto ou percebido. Plótia, a musa condutora de Virgílio.

E seguindo a torrente da Beleza, surge o encanto com a primeira aparição da musa Plótia: “Oh Plótia, ainda sei teu nome? Nos teus cabelos morava a noite. Semeada de estrelas, pressentindo saudade, prometendo luz e eu, debruçado sobre a sua escuridão noturna, ébrio pelo hálito da noite cintilante e doce, não me afundei neles. Oh, existência perdida, estranheza mais familiar, familiaridade mais estranha, tu, proximidade mais longínqua, lonjura mais próxima entre todas as lonjuras, primeiro e último sorriso da alma na sua seriedade”.

A distopia de nossa espécie!

Quase todo desenrolar são revelações que vão surgindo a Virgílio, que atravessa toda a trama em alongados e intrincados monólogos interiores, impelido pela consciência da morte iminente. Mas chega um momento no capítulo A Terra, que essa forma literária dá lugar a um intenso diálogo, num desgastante duelo do poeta moribundo com o Imperador Augusto. Anuncia-se o grande clímax da obra. Plótia ainda estará por perto, mas sua intervenção é despojada de êxito, a Beleza suplantada pelo Poder.

A tragédia humana em direção ao totalitarismo não tem fim. O estilo do romance se transtorna: o futuro e o presente se mesclam para definir o passado bem conhecido da instalação do Império Romano.

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Um passado distópico, o qual, por sua vez, irá anunciar um futuro que já acontecia à época da elaboração da obra (Nazi-fascismo, Segunda Guerra Mundial, O Holocausto, o Stalinismo, bombas atômicas, o início da guerra fria), numa espiral histórica formada por conceitos de pura abstração e harmonia.

Atenção, pois não se trata de uma criação produzida no pós-guerra! Mas durante e no imediato pós-guerra! E esse fato provavelmente pode ser visualizado em um futuro projetado para além daquele período, a nossa própria época!

A vontade do Imperador Augusto x a consciência distópica do autor

O tema é a vontade de Virgílio em queimar a Eneida. A presença do Augusto se deve apenas a essa resolução, transmitida pouco antes aos amigos Plotius e Lucios, que sabiam ser Augusto o único capaz de opor a esta ameaça sua vontade. O imperador chega a incriminá-lo por traição: “Por mero orgulho revoltas-te contra teus deveres; para o teu orgulho não é suficiente dar à arte, à tua arte, o papel de um servidor do Estado, e preferes destruí-la por completo a permitir que ela o sirva”.

O poeta o desafia: “Otávio, tomas-me por um presunçoso? ”, ao que o outro responde “Até aqui não, mas agora pareces sê-lo”. Neste exato momento, Virgílio se dá conta de que não poderá ir adiante em seu intento, dado o peso do Estado romano; prosseguirá, no entanto, a demonstrar seu desígnio ao longo do debate, cada vez mais tenso, argumentando com seu conceito da arte e sua missão, bem diferente dos deveres dos homens públicos.

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Broch nos oferece generosamente a mais pura elegia à liberdade. E o faz em homenagem à arte e à concórdia e não à esperança, que já vislumbrava derrotada pelos fatos do século XX. Diante de tudo isso, de toda a desesperança narrada, devemos nos rejubilar com o que há de amor, amizade e admiração mútua entre os personagens. Os amigos Plotius e Lucios, vindos de Roma, são grandes confortos para Virgílio. Ama-os e se alegra por serem atenciosos e verdadeiros amigos. Virgílio, em sua intenção de queimar o poema, é uma clara referência à liberdade.

Broch tenta afastar o poeta da imagem de submissão daquele que compôs a grande obra apologética em homenagem aos feitos de Augusto, através da fundação da própria Roma. Ele nos fornece indicações de que na Eneida estes elementos podem ser encontrados, seja pelo oculto, seja pela ironia, e nos fala então sobre a “nova verdade’’ a brotar da mais profunda mentira.

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O Estado romano é dotado de humanidade própria, talvez a única humanidade possível, mesmo que pareça desumana e sem consideração por indivíduos. Sempre que está em jogo o bem-estar público, o indivíduo deve se submeter, assim como a liberdade individual se deve subordinar à liberdade coletiva. O que se exige é apenas a total subordinação ao poder do Estado, inclusive com o direito de reivindicar e anular a vida do indivíduo em nome da sua proteção, da proteção de todos.

Aniquilar o indivíduo é um preço a ser bem pago por esta humanidade estatal, com disciplina, isenta de enfraquecimento.

Será a liberdade humana completamente anulável?

O incompreensível, que se mencionou ao início como necessário, é a arma contra a inevitável perseguição do obscurantismo. Compreendemos que a liberdade dos homens não é completamente anulável e pode ser acomodada no soturno, na ignorância, na mesquinharia e no sofrimento ou mesmo na morte.

Até mesmo a violência, que é regulada como monopólio do Estado, pode escapar desse controle. E os sonhos serão sempre sinônimo de liberdade.

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É a ação que se manifesta na escuridão, poderosa arma contra a névoa dominadora. O nada do indivíduo perante o Estado nunca deixará de existir. “Somos propriedade do Estado e na medida em que lhe pertencemos, pertencemos ao povo”, pois o Estado encarna o povo, diz Augusto.

Todavia, o povo é uma criança e permite que por ele pense e se sinta amparado. O povo, assim como o Estado, é eterno, mas precisa ser conduzido. “Quem o conseguir, conduzirá também os objetivos do Estado. Força, símbolos, uma imagem na qual se reconheça, tudo isso nos é muito familiar”.

O desfecho

A morte prepara um grande final: a ascensão! O cortejo, o Éter ou quintessência, são narrados de forma sinfônica, de modo a preencher o vácuo e a completar junto com a Água, o Fogo e a Terra os quatro elementos da formação clássica.

Ao éter se reserva o final para indicar a elevação libertária que se pretende presente na Morte, ou o regresso, como o título registra, em que irrompe o entendimento “mais alto do que toda a compreensão”, sob a forma do “puro Verbo”.

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Ao sugerir esta espécie de absoluta liberdade, Broch desvenda a opressão e seus efeitos totalizantes, bem como toda a ordem de ideias que regem não só os estados totalitários do século XX que ele conheceu, mas também o comportamento totalitário coletivo que se encarnou nas mentes dos indivíduos e resultou na sua quase completa anulação nas décadas seguintes.

Temos, portanto, uma distopia que, ao contrário das clássicas, apenas se projeta para o futuro, só se fazendo entender muitos séculos depois, na qual seus habitantes têm o privilégio trágico de habitá-la, numa realidade virtual que a todos acomete, e leva o mundo a um destino onde nunca se sabe o lado da verdade, porquanto a linguagem está a serviço de outras forças.

A morte de Virgílio é na verdade o aceno à morte do conceito do indivíduo. Não há missão a ser cumprida por esta obra. Não mais. O aniquilamento exterior já fez o seu trabalho inevitável. E a questão que parece querer nos fazer é: podemos nos consolar decorando livros ou evitar que sejam queimados ou simplesmente pensar contra “o partido” ou “o grande irmão”?


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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