“A vida não é só o comércio nem o governo, é mais,
o comércio com as forças da natureza e o governo de si:
daquelas vem este: a ordem universal inspira a ordem individual:
a alegria é certa, e é a suma impressão;
logo, seja qual for a verdade sobre todas as coisas misteriosas,
é racional que se faça o que produz alegria real,
superior a todo outro tipo de alegria, que é a virtude:
a vida não é mais do que ‘uma estação na natureza’.”
José Martí, 1882
A crise geral que está em curso no sistema mundial tem uma dimensão socioambiental que será decisiva em seu desenvolvimento. Aí está tomando corpo uma contradição entre a geocultura e a geopolítica do sistema que se faz sentir na crescente tensão que tem lugar entre o pensar econômico e o ecológico como eixos dominantes na análise dos problemas que geram esta crise em seu desenvolvimento.
Esta tensão se expressa, por exemplo, na organização dos campos do saber gerada pelo desenvolvimento do capitalismo por volta de meados do século XIX, a partir da segregação das ciências naturais, sociais e humanas. Neste plano, a crise socioambiental propõe problemas que demandam estabelecer vínculos cada vez mais fecundos entre estes campos, como os que se formam em torno da discussão sobre o Antropoceno, esta “época atual, em que os humanos e nossas sociedades nos tornamos uma força geofísica global.”
Daí, por exemplo, pudemos enriquecer nossa compreensão dos vínculos entre a biosfera, como âmbito do planeta em que a vida cria as condições para sua própria existência, atuando assim como uma força geológica, e a noosfera, que resulta da transformação da biosfera pela atividade da espécie humana. Com isso, podemos ver que o Antropoceno se expressa hoje como uma noosfera enlouquecida desde a Grande Aceleração em que vieram a culminar, em meados do século XX, as contradições entre a espécie humana e seu entorno natural forjadas pelo desenvolvimento do capital desde o fim do século XVIII.
Esta noosfera enlouquecida gerou agora a transição para um novo sistema Terra, que continuará com ou sem a presença dos humanos. Vemos desenvolver-se pelo planeta uma expansão incessante do extrativismo, sobretudo no Sul Global, acompanhada por um crescente colapso de ecossistemas e da perda da biodiversidade que abrigam, e de uma crescente variabilidade climática. A expansão dos conflitos socioambientais contribui para massificar migrações internacionais desde o caos incrementado que açoita o Sul para o Norte, onde os eventos climáticos extremos acendem os alarmes das companhias seguradoras.
O grande conflito cultural e político que anima esta transição é aquele que enfrenta a necessidade sistêmica de um crescimento econômico sustentado para a acumulação infinita de lucro, com a necessidade de lutar pela sustentabilidade do desenvolvimento humano. A complexa magnitude destes problemas já gerou um crescente clima de incerteza em nossas sociedades, que resulta paralisante e ainda regressivo quando serve de caldo de cultivo a toda a fauna de pastores e profetas do apocalipse que medra nas redes sociais e em alguns setores do ambientalismo.
Esta circunstância demanda construir uma certeza sustentada na capacidade de nossa gente para o melhoramento humano, para o exercício da utilidade da virtude, e para lutar pelo equilíbrio do mundo. Esta certeza é indispensável para recorrer ao debate como catalisador da mudança política – isto é, como um exercício de cultura em ato – que permita transcender o catastrofismo para avançar na luta pela sustentabilidade.
O que demandará abordar o ambiente como o produto de relações históricas entre as sociedades humanas e seu entorno natural, para identificar as opções de mudança que resultam desta história ambiental. Em nossa circunstância, construir a certeza sobre nossa capacidade de encarar a crise socioambiental é imprescindível para encarar problemas globais a partir das realidades locais em que a crise se faz sentir em primeiro lugar. Isto ajudará a entender que se desejamos um ambiente distinto, será necessário construir – a partir do local para o global – uma sociedade que seja diferente em sua capacidade de gerar um desenvolvimento humano sustentado em uma prosperidade equitativa e democrática.
Identificar os traços fundamentais desta diferença e os meios para construí-la é o maior desafio do saber no Antropoceno. Trata-se, em suma, de construir uma rota de trânsito para o trabalho com a natureza e já não contra ela, passando de uma visão ecológica da crise para uma socioambiental, que vincule a inovação tecnológica à mudança social que a sustentabilidade do desenvolvimento humano demanda.
No fim das contas, a melhor fonte da certeza que demanda esta tarefa vem de nós mesmos. A crise socioambiental, de fato, veio a constituir em nossa América espaços de encontro cada vez mais amplos entre movimentos sociais e culturais de resistência ao despojamento e à devastação, que nos dão voz e atitude próprias na batalha global pela sustentabilidade do desenvolvimento humano.
Assim, a partir de nós mesmos podemos dizer, como José Martí, quando o Antropoceno iniciava o caminho que o levaria à Grande Aceleração cujas consequências padecemos hoje, que
Estes países se salvarão porque, com o gênio da moderação parece imperar, pela harmonia serena da Natureza, no continente da luz, e pelo influxo da leitura crítica que sucedeu na Europa à leitura de tateio e falanstério em que se empapou a geração anterior, está nascendo na América, nestes tempos reais, o homem real.
Revisão: Carolina Ferreira