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ToggleA historiografia oficial brasileira tende a selecionar e valorizar certos eventos e atores históricos, em detrimento de outros igualmente significativos. Exemplo disso é o desprezo pelos acontecimentos e significados do 2 de julho de 1823, na Bahia, um marco crucial na luta pela independência do Brasil. Enquanto o 7 de setembro de 1822 pode ter inaugurado uma nova fase na história do Brasil, foi o 2 de Julho que solidificou o verdadeiro significado da emancipação, quando os brasileiros lutaram contra as forças coloniais, expulsando definitivamente os portugueses que ainda insistiam em manter o seu domínio.
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Embora tenha sido decisivo para a história do país, o 2 de Julho é apenas conhecido como “Independência da Bahia“. Essa falta de reconhecimento por parte da historiografia reflete uma tendência centrada nas elites e nos centros de poder, como o Rio de Janeiro, onde a “independência foi proclamada por D. Pedro”, contrastando, de modo afrontador, com a resistência popular e os movimentos regionais, fundamentais para a emancipação do Brasil. Neste cenário, a Bahia desempenhou um papel imprescindível, resistindo às tropas portuguesas, mesmo após o 7 de setembro, até finalmente expulsar os invasores no dia 2 de julho de 1823.
7 de setembro: negociação política e diplomática
Quando a historiografia oficial minimiza o 2 de julho, contribui fortemente para uma visão distorcida da história nacional, que tende a exaltar certas figuras e eventos em detrimento de outros “que não se encaixam no padrão dominante”. Isso não apenas marginaliza os atores e atrizes históricos envolvidos na resistência baiana à permanência do domínio português, como também perpetua uma narrativa simplista e incompleta da luta pela independência.
Para a historiografia hegemônica, o Brasil deixou de ser colônia de Portugal a partir de um “ato heroico” do príncipe herdeiro português, como se muito sangue não tivesse sido derramado para que o país europeu perdesse seu domínio sobre as terras brasileiras. É neste sentido que, no calendário oficial, o 7 de Setembro de 1822 – quando Dom Pedro teria “gritado” o fim da dominação colonial portuguesa sobre o Brasil – é considerado a data da emancipação política, em detrimento do 2 de Julho de 1823, que envolveu o derramamento de muito sangue popular, preto e indígena.
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Durante o século 19, no âmbito interno, o Brasil enfrentava tensões políticas e sociais crescentes, com diferentes grupos buscando maior autonomia em relação à metrópole portuguesa. No contexto externo, a instabilidade política em Portugal e as guerras napoleônicas também influenciaram o cenário, criando um ambiente favorável para movimentos independentistas.
Desse modo, como o Brasil era uma colônia extremamente lucrativa para Portugal, sobretudo devido à exploração de recursos naturais – especialmente o ouro e o açúcar – interessada em manter e expandir seus próprios negócios e privilégios, a elite colonial brasileira viu na independência uma oportunidade de consolidar seu controle sobre esses recursos e mercados. Em consonância, o príncipe Dom Pedro de Alcântara tinha ambições políticas significativas, e via na emancipação uma oportunidade de consolidar seu poder. Por isso, ao “proclamar a independência”, o herdeiro de Portugal rompeu com as orientações de seu país, embora, ao mesmo tempo, tenha assegurado para si uma posição central no governo do Brasil, primeiro como regente, e posteriormente como Imperador.
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Como vemos, a independência proclamada em 1822 foi, em essência, uma negociação política e diplomática, mais do que uma revolta popular ou uma guerra de independência. Dom Pedro declarou a separação política do Brasil de Portugal sem um conflito militar prolongado significativo, o que contrasta com outros movimentos de independência na América Latina, os quais, na maioria das vezes, envolveram lutas armadas prolongadas contra as forças coloniais. O 2 de Julho de 1823, no entanto, extrapolou o simples ato de proclamação de autonomia. Significou muito sangue derramado, e boa parte desse sangue baiano, preto, indígena e feminino, detalhes omitidos pelas narrativas hegemônicas.
Essa minimização, que se traduz em marginalização do povo nordestino – neste caso particular, baiano – acaba por trazer consequências marcantes no que se refere à identidade nacional brasileira, porque reforça uma visão preconceituosa e excludente da história, que não reconhece a diversidade de experiências e contribuições para a formação do país.
Desprezo pelas lutas populares
Essa invisibilização das contribuições históricas e culturais dos povos indígenas e negros para a formação da identidade nacional brasileira, como vemos, marginaliza e/ou distorce eventos e figuras importantes desses grupos, destacando apenas aqueles que se encaixam em uma visão eurocêntrica e elitista da história nacional. Isso se dá não apenas do ponto de vista historiográfico. No plano midiático, há também uma tendência de representação distorcida e negativa de negros e indígenas, por exemplo, quando reforça percepções públicas que associam esses grupos a criminalidade, preguiça ou incompetência.
Mas sabemos que as contribuições dos indígenas e negros para a história política do Brasil são profundas, embora frequentemente subestimadas na historiografia oficial. Esses grupos desempenharam/desempenham papéis substanciais em diversos momentos-chave, contribuindo significativamente para a formação do país.
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Desde os primeiros contatos com os invasores europeus, os povos indígenas brasileiros estabeleceram relações políticas complexas dentro de suas próprias sociedades e com os colonizadores. Muitas vezes, lideraram resistências contra a invasão e a exploração. E defendendo suas terras e culturas, como ocorreu como Guaicuru (Guarani), Cunhambebe (Tamoio) e Tibiriçá (Tupiniquim), desempenharam papéis cruciais em alianças e confrontos durante o período colonial: cada um desses líderes representou uma faceta única da resistência indígena e da adaptação estratégica diante dos desafios trazidos pela colonização.
Durante o período colonial e imperial, os negros escravizados também tiveram um protagonismo na política brasileira, apesar das restrições severas impostas pelo sistema escravista. Eles organizaram quilombos – como o complexo de Quilombos Palmares, liderado por Zumbi –, que representaram formas de resistência organizada contra a opressão colonial. Além disso, participaram de movimentos abolicionistas e lutaram pela abolição da escravidão, mesmo diante de intensa repressão e violência.
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Como vemos, está incutida na cultura política brasileira – e a historiografia desempenha papel crucial neste cenário – uma tendência de desprezo pelas lutas populares. E não seria diferente quando consideramos que a formação do Estado Nacional brasileiro deu-se a partir de um pacto entre as elites, que pretendiam – e conseguiram – manter excluída a maioria da população, principalmente indígena e preta, do seu projeto de nação, iniciado com uma Monarquia que manteve a ordem social escravocrata, suporte fundamental do latifúndio e da produção de commodities agrícolas. A república, posteriormente proclamada, não mudou muito esse cenário. O povo continua excluído, em função dos interesses das elites.
Em relação ao 2 de Julho, o governador do Estado da Bahia, Jerônimo Rodrigues, quando da instalação da sede provisória do governo na cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano – durante a Guerra da Independência, a cidade se tornou um reduto de resistência contra as forças portuguesas – ressaltou ter solicitado ao ministro da Educação, Camilo Santana, que incluísse nos livros didáticos e no currículo escolar essa história do 2 de Julho como sendo a história do Brasil.
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De fato, se trata de uma urgência. Esperamos que não fique na pura retórica, como ocorreu com o agora “Aeroporto Internacional de Salvador”. Um governador, do mesmo partido de Jerônimo Rodrigues, há mais de 13 anos prometeu retornar o título do terminal aéreo para o nome original: “Aeroporto Internacional Dois de Julho”.