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ToggleEstela de Carlotto está há 47 anos buscando verdade e justiça. Com as outras mulheres que formam as Avós da Praça de Maio buscam centenas de meninos e meninas que foram apropriados durante os anos do terrorismo de Estado.
As Avós, nestas quase cinco décadas de existência, fizeram o que se acreditava impossível: restituíram 133 identidades, fizeram que a ciência desse as respostas que elas buscavam para encontrar seus netos, conseguiram que o direito à identidade seja conhecido no mundo inteiro como o direito argentino e foram até moldando instituições do Estado.
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O governo de Javier Milei e Victoria Villarruel pôs sob assédio o movimento de direitos humanos. Em 14 de agosto, o Presidente, por decreto, eliminou a Unidade Especial de Investigação (UEI) que funcionava dentro da Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (Conadi). Foi uma nova estocada contra a busca dos bebês roubados durante a ditadura.
Desta forma, a administração da Liberdade Avança (LLA) bloqueou a possibilidade de que o organismo, que depende da Secretaria de Direitos Humanos da Nação, conduza averiguações para dar com o paradeiro dos netos que ainda falta encontrar e que acesse os arquivos em poder do Estado.
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“Nós não temos ódio nem queremos revanche, simplesmente necessidade de que o que se conseguiu em tantos anos de luta não se encerre, não se apague, não se transforme em outra coisa”, reclama a presidenta das Avós da Praça de Maio, em diálogo com Página/12.
Confira a entrevista com Estela de Carlotto
Luciana Bertoia / Página 12: Por que pensa que o governo avança contra a Conadi?
Estela de Carlotto: O governo está avançando contra tudo o que é direitos humanos. A Conadi é um lugar especialíssimo, que tem 31 anos desde sua criação. Foi fundada por Carlos Menem. Cada dia, a Conadi se inclina para mais pessoas para que não sejam somente aqueles desaparecidos por razões políticas, como também as crianças roubadas ou que se deixam nos hospitais. Dedica-se em si à defesa da infância. Mas não avançam só contra a Conadi. Nós, as Avós da Praça de Maio, estamos sem orçamento. Dizem que não vão nos dar nem um centavo. É um ato de maldade de um governo que deveria permitir que tivéssemos a segurança de saber que somos quem somos quando temos dúvidas e; repor esta injustiça de viver com outro nome, com outra gente e com outra história. Este é o governo que temos. Não quer saber de nós. Mais vale estar fechando espaços permanentes e um desses espaços é a Conadi, que foi desmantelada.
Parece-lhe que o governo responde ao que querem os repressores ou apropriadores?
Sim. Por um lado, sim, se considerarmos que a vice-presidente é parente de militares e que está com eles, mas quem governa é Milei, não ela. Quem decide é ele. A responsabilidade é dele. Às vezes me dá vontade de ligar para que me dê uma audiência, que não vai me dar, para ver porque pratica esta repressão e tem este ódio aos direitos humanos – sendo que os direitos humanos também o protegem, caso precise. Nós não temos ódio nem queremos revanche, simplesmente necessidade de que o que se conseguiu em tantos anos de luta não se encerre, não se apague, não se transforme em outra coisa.
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Que expectativas tem quanto ao anúncio do governador Axel Kicillof de que criará uma unidade de investigação de apropriações na província de Buenos Aires?
Muitíssimas, porque Axel é um excelente governador, um homem que tem o cérebro no lugar. Governa para um povo e sabe que tem que fazer o melhor para este povo. Nós o conhecemos há muitos anos, sabemos quem é. Fundar um espaço em Buenos Aires –que é tão enorme, quase como um país– é beneficiar uma sociedade que precisa saber sua história, reconhecer-se, encontrar-se. Falta muito ainda. Estamos buscando muitos netos que não encontramos. Vá lá saber onde estão. A província de Buenos Aires, que é muito importante, talvez contenha muitos deles –que não sabem, não se dão conta ou sentem algo que não sabem como resolver. Nós fazemos as coisas em paz, para o bem comum e não fazemos mal a ninguém. Estamos sofrendo porque o governo, que foi votado pelo povo, está fazendo tanta divisão entre o que quer e o que não quer –como se isto fosse um mercado onde se vende verdura. Mas continuamos lutando. Eu gostaria de olhar nos olhos de Milei para entender porque é tão negativo com um setor e com outro tão generoso.
Sexta-feira, Milei disse que houve uma campanha para desprestigiar as Forças Armadas e voltou a falar de reconciliação. O que pensa disso?
Reconciliação, nada. Aqui é verdade, memória e justiça. Aqui houve um genocídio. Houve mortos, feridos, desaparecidos, crianças roubadas. Tudo isso tem que ser esclarecido. E, claro, isto foi feito pelas Forças Armadas e de segurança. A responsabilidade de cada qual tem que ser investigada. Os que não tenham nada de que prestar contas porque não fizeram nada mau estarão tranquilos e os que fizeram o que não deviam fazer tem que pagar para evitar que no futuro voltem a repetir a história. Ou por acaso não temos que defender o futuro? Aqui houve 30.000 desaparecidos, e ainda escarnecem deste número.
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Como se encara a busca dos netos no contexto de um governo que nega os crimes?
Como sempre. Nós temos a comissão diretora, as equipes técnicas, a Conadi –que era um elemento valiosíssimo. Estamos em um momento muito sórdido, muito ilógico e muito negativo. Funcionários prometem em vão e não fazem o que prometeram. Que nos tratem como se fôssemos crianças de escola primária nos dói muito. Aqui há dor, há luta e, por sorte, formamos uma comissão diretora com os netos. Eu a presido e a vice-presidente é Buscarita Roa, uma querida Avó. Somos as únicas duas. Rosa Roisinblit fez 105 anos. Eu não pude ir, mas foram cumprimentá-la seus netos e a gente das Avós. Nós o que temos é amor e necessidade de que isto seja conhecido, que os responsáveis recebam as sanções correspondentes e que nunca mais volte a acontecer uma coisa assim.
“Deveriam estar fora do Congresso”
Em 11 de julho, seis deputados da LLA foram ao presídio de Ezeiza visitar Alfredo Astiz e outros repressores que estão presos por crimes aberrantes. A comitiva –integrada por Beltrán Benedit, Guillermo Montenegro, Alida Ferreyra Ugalde, María Fernanda Araujo, Lourdes Arrieta e Rocío Bonacci—saiu do Congresso em uma van que a Câmara Baixa, presidida por Martín Menem, pôs a sua disposição.
Foi complicado para o Serviço Penitenciário Federal (SPF) explicar como se gestara a visita. A ministra da Segurança, Patricia Bullrich, procurou desvincular-se dos excursionistas e disse que soube da visita pela mídia, especialmente depois de aparecerem mensagens em que se informava que ela facilitaria o ingresso dos legisladores que simpatizam com os criminosos de uniforme. O conclave foi extenso e dificilmente terá passado desapercebido. Os deputados se fotografaram com os genocidas. Na foto de família estava Adolfo Donda, que este ano foi condenado por ter participado da apropriação de sua sobrinha, Victoria Donda Pérez, nascida na Escola de Mecânica da Armada (ESMA).
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A partir do que denunciou uma das visitantes, Lourdes Arrieta, na justiça federal de Lomas de Zamora soube-se que a visita foi só um elo de uma longa cadeia: houve reuniões e projetos para tirar os genocidas da prisão. O grande organizador da empreitada é o padre Javier Olivera Ravasi, filho do repressor Jorge Olivera, que acaba de ser expulso da diocese de Zárate-Campana.
Os organismos de direitos humanos fizeram uma representação ante o supremo Horacio Rosatti porque nos chats também é mencionada como participante dos encontros pró-impunidade a juíza Agustina Díaz Cordero, vice-presidente do Conselho da Magistratura. Este diário tentou comunicar-se com a magistrada, mas ela não respondeu as mensagens.
Que pensou quando soube que houve seis deputados que foram ver Astiz e outros repressores presos em Ezeiza?
Deveriam deixá-los fora do Congresso. Todos vimos este deputado que sem querer estava beijocando sua mulher e o puseram para fora. E estes deputados que foram ver estes criminosos –que não se arrependem e que se saíssem voltariam a fazer o mesmo porque assim dizem, e que merecem estar eternamente na cadeia porque não são humanos– não podem ficar sem sanção. Dizem que foram por equívoco… que não nos tomem por tontos. Sabiam quem iam ver. Tiraram fotos. Isto é uma burla para o povo. Há um setor da sociedade que não sofreu o que nós sofremos e que tampouco se inteirou pela imprensa ou pelos livros sobre o que aconteceu e que não deveria voltar a acontecer. Seria bom que nas escolas e nas universidades se continue falando dos direitos humanos e de quando foram violados. Todos veríamos o que o governo faz bem e o que faz mal. Neste caso, criticaremos para que volte atrás. Assim é a democracia, não estamos em uma ditadura.
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A senhora pede que excluam os seis deputados?
Claro. É o que merecem. Há uma leviandade muito grande em muitos partidos, que estão vendo o que mais lhes convém e não o que convém à sociedade. Está se vendo. Dói dizer isso. Oxalá reajam, entendam que eles também são argentinos e que podem ser vítimas amanhã de algo muito sensível, como mexer com sua família.
O que acha do papel do padre Olivera Ravasi?
Eu não o conhecia. Estou conhecendo agora. Merece que a Igreja católica o castigue como corresponde.
Que esperam que faça o Conselho da Magistratura com a situação da juíza Díaz Cordero?
Nós o que esperamos sempre é que se esclareça quem é quem e o que fez, se é que é algo errado. A justiça é que tem que saber o que tem que fazer com as pessoas que cometem erros.
Pensa que este governo tem um plano de impunidade?
Eu queria ver a cara de Milei, saber o que lhe aconteceu na vida, se pensa que ser presidente é dizer disparates. Um presidente tem que fazer o que é bom para seu povo. Vieram governar com uma ideia que estão pondo em prática, e o povo é quem sofre.
Como se enfrenta esta situação?
Violência, nada. Participação, sim; reivindicação, também. Não se deve ofender as pessoas que para reivindicar fazem uma marcha. A reivindicação permanente deve ser ao Presidente, que lhe cheguem os comentários do povo a quem falta comida, da gente que toma um café de noite e não janta porque não tem dinheiro. Isto acontece com os velhinhos e também com as crianças. Tudo isto é parte da humanidade que deve ter um governo. É preciso fazê-lo ver.
Em 5 de agosto fez dez anos que encontrou seu neto Ignacio. Como foi este tempo com ele?
Estes anos foram lindos. Fomos nos conhecendo. Ele já é pai. Tem uma menina, que é uma beleza. Toda vez que podemos estamos nos vendo, conversando. Eu não sou muito de falar por telefone, mas ele vem. Fala muito com Claudia, minha filha, e ela me transmite. A netinha é uma menina que admira sua avó, que não conheceu. Tem a foto de Laura no quarto. Esta felicidade de tê-lo encontrado é permanente e em crescimento. Ele já é um homem e um músico genial. Sempre quer nos ver, encontrar, ainda que moremos um pouquinho longe. Tive a sorte de encontrá-lo. Quantas Avós, que já não estão neste mundo, não tiveram essa felicidade…