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Imagem: Reprodução

Livro “Desaparecimento de crianças na Guatemala” expõe prática de extermínio: “guerra macabra”

A Comissão de Esclarecimento Histórico da Guatemala sobre o conflito militar movido pelo Exército e seus milicianos contra o povo guatemalteco denuncia o “genocídio e os atos de lesa-humanidade” praticados no país centro-americano com a “política de terra arrasada” entre 1960 e 1996. “Crianças conformam 20% das pessoas mortas por execução arbitrária; 14% das vítimas de torturas, tratos cruéis, desumanos e degradantes; 11% das vítimas por desaparição forçada, 16% das privadas de liberdade e 27% das violadas sexualmente” pelos fascistas, aponta o estudo. Ação criminosa que assassinou 200 mil pessoas e deixou 50 mil desaparecidas contou com o apoio político, financeiro e bélico dos Estados Unidos e de Israel
Leonardo Wexell Severo
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

O livro “Criança Desparecida na Guatemala como parte da estratégia da guerra: busca, casos e efeitos” (Editora Tempo de Solidariedade, Secretaria da Paz, 212 páginas, 2010) mais do que registrar depoimentos de familiares e de alguns dos cinco mil meninos e meninas arrancadas do seu convívio no país centro-americano, é um brado pelo resgate da memória histórica. Um esforço que transforma a frieza de números em emotivos sorrisos e lágrimas de reencontro, após décadas de dolorosa e traumática separação à bala e à bomba.

O informe Memória do Silêncio, da Comissão de Esclarecimento Histórico (CEH) sobre o conflito militar perpetrado pelo Exército e suas milícias, denuncia o “genocídio e atos de lesa-humanidade” praticados contra o povo guatemalteco. Um crime que contou com apoio político, econômico e bélico dos Estados Unidos e de Israel para implementar a “política de terra arrasada”, doutrina insana que explica as razões da “ausência de todo traço de humanidade da tropa”.

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Da mesma forma que os EUA no Vietnã e os nazisraelenses na Palestina, o terrorismo de Estado é praticado “antes do nascimento de que muitos menores jamais cheguem a ver a luz do dia, pois as mães foram capturadas, espancadas, torturadas e finalmente executadas”. “Muitas destas mulheres mal pariram ou seus filhos lhes foram retirados das entranhas, sendo martirizadas ou mortas com particular crueldade as grávidas. Dava para ver como os soldados batiam na barriga delas com as armas, ou as deitavam e se punham em cima até que, mal, o bebê saísse”.

Através das pesquisas, a CEH pôde averiguar que conforme a idade das vítimas se aplicaram diferentes formas de extermínio. Aquelas entre zero meses e cinco anos foram executadas com extrema crueldade, revelaram as testemunhas.

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“Ela está morta a tiros, porém os filhos de cinco e três anos tiveram suas cabeças estraçalhadas contra um pau. Se vê sangue e o cérebro”, apontaram os estudiosos, comprovando o “efeito direto das matanças de bebês” na redução de nascimentos dentro do grupo indígena.

Diante de tamanho horror, foi precisamente “a sobrevivência dos filhos que deu sentido à vida dos pais”, procurando por suas crianças apesar das dificuldades que representava qualquer investigação e mesmo uma simples pergunta no tempo da guerra. Ainda mais porque “primeiro voltavam às suas aldeias só para encontrá-las totalmente destruídas”.

O terrorismo de Estado e a execução dos mais vulneráveis

“Em seu desejo de desencadear o terror na população, o Estado generalizou a violência nas áreas de conflito, ocasionando a morte da população de modo indiscriminado. Milhares de crianças foram objeto de violações de seus direitos humanos em um contexto de violência que ultrapassa a imaginação mais poderosa. A morte de bebês como consequência da tortura ou a morte de mulheres grávidas em circunstâncias aterradoras, assim como a execução arbitrária das crianças menores, estateladas contra o chão, pedras ou árvores, reflete o grau de crueldade que se exerceu contra um dos grupos mais vulneráveis da sociedade”, aponta o estudo, que contou com apoio do Projeto lnterdiocesano de Recuperação da Memória Histórica da Guatemala (REMHI).

Segundo o mencionado informe, até então, “do total de vítimas com idade conhecida, as crianças conformam 20% das pessoas mortas por execução arbitrária; 14% das vítimas de torturas, tratos cruéis, desumanos e degradantes; 11% das vítimas por desaparição forçada, 16% das privadas de liberdade e 27% das violadas sexualmente”. O levantamento atual aponta que no período ditatorial foram assassinadas 200 mil pessoas e “desaparecidas” outras 50 mil.

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Apesar da precariedade do corpo técnico e da ausência de apoio governamental, entidades como o Centro Internacional para Investigações de Direitos Humanos, a Liga Guatemalteca de Higiene Mental e a Associação Onde Estão os Meninos e Meninas haviam realizado até o fechamento deste livro, há 15 anos, 464 reencontros de crianças desaparecidas com suas famílias. “Esta é uma das feridas ainda abertas pela guerra para as quais não se pode continuar com a indiferença e a impunidade”, apontam os autores. Se na área rural essas crianças fugiam da repressão “sofrendo de anemia, desnutrição, diarreia e problemas nas vias respiratórias”, uma vez “adotadas”, muitas delas eram “submetidas à condição servil, de exploração e abuso sistemático, e até mesmo recrutadas forçosamente para o serviço militar”.

Para os pesquisadores, além do massacre, o sumiço de cinco mil meninos e meninas durante o conflito (fundamentalmente em famílias maias na área rural) “tinha como motor a ideia de acabar com as sementes, impedir ‘que se criassem futuros guerrilheiros’, tanto nos fatos concretos, eliminando as sementes de carne e osso, como na psicologia coletiva, enviando mensagens aterrorizadoras, desmobilizadoras, que apontam basicamente para romper os tecidos sociais e a imobilizar as populações”.

“Violência política dirigida contra a infância”

Ao longo de cada uma das páginas da obra, que teve a chancela da Direção dos Arquivos da Paz da Presidência da República da época – e por isso mesmo restrita nas suas críticas a nominar o inimigo estrangeiro – transparece “um luto e uma tristeza de alguma forma silenciada pela impunidade que os cobre”. Reconhecendo que os pequenos foram subtraídos de seu entorno familiar e social, os autores assinalam que foi uma < b>“violência política dirigida contra a infância”, tornando-se necessário fazer um “exercício de recuperação da memória coletiva”, pois “se uma sociedade não é capaz de assumir seu passado, não poderá construir seu futuro”.

Como ficou demonstrado, “para cada pessoa adulta assassinada, sequestrada, desaparecida, torturada ou submetida a qualquer destes crimes, provavelmente existia um ou mais menores que dependiam diretamente dela, pelo que à sua condição de vítimas se agrega a vulnerabilidade”. E ainda pior, “se levamos em conta as vítimas colaterais, este número se multiplica pelo menos por cinco”.

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Além disso, os efeitos que deixaram se manifestaram não somente durante o período do conflito armado, mas também nos nossos dias, pois “vale lembrar que quem naquele tempo era pequeno hoje é adulto”.

Quando as comunidades eram obrigadas a fugir diante do risco de perder a vida, “durante meses e em alguns casos anos, meninos e meninas não puderam sequer chorar, brincar ou se desenvolver sós. Esta dificuldade provocou muitas mortes pelas condições que teve de viver”.

“O Exército da Guatemala, qualificado por alguns autores como o mais brutal da América Latina, tem graves acusações na comissão de crimes de lesa-humanidade e genocídio. De acordo com os informes escritos sobre o conflito, em sua ação de contrainsurgência, as forças de segurança guatemaltecas levaram a milhares de menores a se converterem em crianças desaparecidas, após uma prática macabra que não tem explicação. Atos desumanos cometidos contra seres cuja inocência ‘não admite prova em contrário’”. Mesmo tendo sido mais seletivos que na área rural, o sequestro e o desaparecimento não foram menos dolorosos nas cidades.

A desesperada procura pelos pais

Se deram casos em que as crianças foram “desaparecidas” quando buscavam pelos pais, “encontradas junto aos cadáveres esparramados no campo depois de um massacre, ou retiradas quando choravam junto aos restos do pai ou mãe mortos depois de uma operação militar”. Ainda que seja provável que muitos deles estejam mortos, também é que um bom número de desaparecidos possa estar vivo, longe de suas famílias verdadeiras e desconhecedores da realidade que as levou onde se encontram.

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Muito mais do que na Argentina, na Guatemala se diversificou o destino dos menores. “Em muitos casos a investigação levou a países europeus, assim como EUA e Canadá, onde os menores foram ‘dados’ de forma irregular e ilegal. Em outros casos as investigações os levaram a cemitérios clandestinos onde foram depositados os restos dos meninos e meninas massacrados”. Entre as regiões nas quais o conflito teve seus efeitos mais trágicos (Quiché, Huehuetenango, Cobán, Ixcán y Petrén), há naturalmente mais dor por não poder sequer dar uma sepultura digna.

Sobreviventes de carne e osso

Entre os inúmeros exemplos citados na obra está o de Marcos Choc Maquin, de seis anos, integrante de uma família formada pelos pais e sete irmãos que vivia na aldeia Chiax Balamte, no município de Santa Maria Cahabón, no departamento de Alta Vera Paz. “No dia da separação familiar, no mês de setembro de 1982, o Exército chegou à comunidade de forma violenta, queimando casas e sequestrando os membros da comunidade”. Na oportunidade, “muita gente foi degolada e jogada no rio Cahabón”. Diante da atrocidade, adultos e crianças saíram correndo: a mãe com suas filhas e o pai por outro caminho. Acompanhado por outra menina, Marcos terminou se escondendo, mas logo foi descoberto. “Um dos oficiais que comandava o ataque deu a ordem de matar os dois menores, mas os milicianos solicitaram que fossem doados”. Assim, Marcos partiu com um deles. “Marcos explicou que sua vida na casa do miliciano foi como vítima da escravidão, tendo passado múltiplos vexames. Explorado, se viu obrigado a realizar todos os serviços da casa e obrigado a servir os seus filhos, de quem só recebia maus tratos”, relatou.

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Outro abuso de que foi objeto, revelou, “foi o da violência física, já que era obrigado a passar fome e a dormir quase nu no corredor, além de realizar trabalhos excessivos para uma criança como o de carregar lenha, recebendo surras com paus e arames, o que deixou terríveis cicatrizes em seu corpo. Era torturado psicologicamente, tratado como se fosse um cachorro, se mantendo aterrorizado”.

Quando fez 12 anos, uma vizinha do miliciano lhe ajudou a fugir para a casa de um dos parentes da senhora, que voltaram a lhe tratar como ser humano, “proporcionando cuidados, carinho e estudos”.

O reencontro com a mãe e as irmãs ocorreu no dia 19 de julho de 2003, sendo extremamente emotivo, já que finalmente a família pode ver que todos haviam sobrevivido. “É preciso assinar que da mesma forma que Marcos e seus irmãos foram considerados mortos por seu pai, o pai também era considerado morto por seus filhos”. Conjuntamente, todos fizeram “várias reflexões sobre o que haviam passado em consequência do conflito armado e a perseguição, como a desintegração familiar e a usurpação das propriedades, o que lhes empurrou à pobreza”.

Felipe presenciou o assassinato do pai e de amigos

Felipe Apolinário tinha seis anos quando viu o pai e amigos serem assassinados pelo Exército, e ter sido levado da aldeia de San Juan Cotzal em 1982, mas não recorda o dia nem o mês. Se sentia mentalmente doente, pois era sempre perseguido pela visão e a recordação do momento em que presenciou a execução do pai, relatou à Coordenação do Centro Internacional de Investigações em Direitos Humanos (CIIDH). No reencontro, quando viu a mãe, desabou a chorar. “Os familiares começaram a lhe lançar hortênsias, com Apolinário se emocionando muito”. Viveu cerca de 14 anos recebendo maus tratos do falangista.

No caso dos civis envolvidos com as “adoções” é mais fácil que deem informação, mas quanto aos ex-oficiais do Exército isso é muito difícil por estarem envolvidos de uma ou outra forma com a ilegalidade.

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Na tentativa de fuga da aldeia Las Majadas, no município de Aguacatán, do departamento de Huehuetenango, Catarina Lux Us e Pedro Chan foram capturados e mortos no dia 24 de agosto por uma coluna de soldados e milicianos no início das práticas de terra arrasada. Seu único filho, Mario Chan Lux, foi encontrado ainda mamando no peito de sua mãe, crivada de balas. De acordo com seu pai adotivo, Pedro Cobo, Mario ainda era bem pequeno, pelo que deveria ter entre um ano e meio e dois anos de idade. Receberam a ordem do oficial de matar a criança, mas falaram para ficar com ele.

Sequelas psicológicas

“Muitas das estratégias da guerra suja e das ações contrainsurgentes que ocorreram durante os obscuros anos do conflito armado vivido por nosso país buscavam fundamentalmente deixar marcas psicopolíticas. Não se tratava somente de eliminar inimigos físicos, mas de ‘quebrar’ populações. Neste documento se registram e comparam as experiências mencionadas pelas vítimas diretas (pais biológicos e filhos arrancados de suas famílias), assim como o experimentado pelos pais adotivos e as famílias substitutas.

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A informação foi obtida de vários documentos que registram histórias de desaparições de meninos e meninas, de narrativas que foram possíveis de acessar, de testemunhos recolhidos de pessoas que passaram por estas situações e das abordagens teóricas de quem se ocupam de estudar as consequências da guerra sobre os seres humanos”.

Experiências traumáticas

“Os transtornos que aparecem nos pais que perdem um filho (em qualquer circunstância) têm como fundamento a crença numa ‘ordem natural’ das coisas; isto implica que as pessoas mais velhas morrem primeiro, que os filhos sobrevivem aos pais e são a esperança do futuro ou o próprio futuro. O fato de que os pais sobrevivam aos filhos aparece então como uma subversão à ordem natural, como uma ruptura da continuidade em relação aos seus ancestrais, como um não-futuro para o grupo familiar”, avaliam os pesquisadores.

“As mães que sempre estavam próximas das crianças ou os levavam nos braços geralmente têm alguma ideia do ocorrido; em alguns casos estavam acompanhadas pelos maridos e se separaram durante a fuga. Foi nesses momentos de terror, perseguidas pelo exército, com helicópteros voando sobre suas cabeças quando algumas crianças ficaram para trás, quando elas tomaram um caminho e as crianças outros, ou quando os pequenos foram arrancados dos braços sem que eles pudessem recuperá-los”.

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Como ficou demonstrado “nada mais ‘sem poder’ do que uma criança de poucos anos frente à força de um exército. Nada mais surpreendente que as atrocidades cometidas contra seus pais, irmãos, amigos e vizinhos. Nada mais traumático do que ficar sozinho em um meio que não é o seu, rodeado de pessoas com as quais não quer estar e não pode se comunicar porque falam outro idioma – real ou figurativa mente”.

Muitas testemunhas narraram como durante o conflito armado interno os militares e os milicianos das Patrulhas de Autodefesa Civil (PAC) ao seu dispor começaram a levar as crianças sobreviventes de algum massacre – e as que perambulavam sem rumo por haver se separado dos pais – para serem reduzidos à servidão e à escravidão segundo os seus próprios critérios de utilidade.

Redes ilegais de adoção infantil

Vale destacar que ao longo dos anos foram se estruturando grandes “redes de adoção” que se converteram num lucrativo negócio que se mantém até hoje, envolvendo advogados, médicos, militares e funcionários do estado. Objetivamente, relata o estudo, “as pessoas que se dedicam atualmente ao comércio de crianças são em sua maioria os mesmos que o originaram no período do conflito armado”.

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“Tratando-se de menores de idade, de seres em crescimento que foram assassinados de formas brutais, massacrados, sequestrados, afastados de suas famílias, internados em instituições estatais sem sequer saber se seus pais estavam vivos ou não, e finalmente doados a pessoas alheias à sua cultura e ao seu entorno, e considerando que a grande maioria dessas desaparições teve lugar nos povos maias, somente é possível dimensionar como um ataque à cultura desses povos”, destacam os autores. E concluem: “a resistência diante do esquecimento é um fato digno de reconhecimento que merecem os sobreviventes da guerra, assim como seus familiares e amigos”.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Leonardo Wexell Severo

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