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ToggleNeste artigo, o jornalista e analista político espanhol Víctor de Currea-Lugo detalha porque o processo do Conselho Nacional Eleitoral contra o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, configura uma tentativa de golpe de Estado, e como a grande mídia e até mesmo parte da esquerda tentam legitimar uma ofensiva judicial que já começa, em última análise, ilegal.
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Primeiro ponto
O país já ouviu a alocução de Petro e, também, os escorregadios argumentos da direita. Isso de “deixe-se julgar porque quem nada deve, nada teme” é uma premissa infantil validada nas redes sociais.
O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) é só um órgão administrativo, não tem a legitimidade necessária, não foi eleito por voto popular, é um espaço a que se chega por favores políticos e, por isso, hoje está composto pelos porta-vozes da elite mais retrógrada do país. Como disse Petro, “cinco politiqueiros pagos não vão afundar a democracia na Colômbia”.
Aceitar o processo é legitimar a armadilha do CNE, por mais que se faça de boa-fé (o que é difícil de presumir do atual CNE). Recordemos que há uma norma constitucional explícita, no artigo 199, e que, como ensinam nas faculdades de Direito, ante um texto explícito, não cabe interpretação.
A Constituição diz: “O presidente da República, durante o período para o qual foi eleito, ou quem se encontre encarregado da Presidência, não poderá ser perseguido nem julgado por delitos, senão em virtude de acusação da Câmara de Representantes e quando o Senado tiver declarado que há lugar para a formação de causa”. Clara é a norma, mas é ingenuidade pensar que o debate é jurídico e apenas jurídico.
Segundo ponto
Permitir a investigação é, desde já, aceitar sua legitimidade e suas consequências. Não se pode apostar no “vamos ver como é que fica”, como se o futuro do único governo de esquerda da Colômbia fosse um jogo.
Abrir a porta a uma retorcida “formalidade jurídica” não é uma concessão, e sim um erro. A noção de “juiz natural” não é uma brincadeira, nem tampouco a ideia de “foro presidencial”. A transparência não pode levar à ingenuidade de que a perversa oposição manuseie a (já manuseada) Constituição Política.
Aceitemos aqui, só e unicamente para efeito da discussão e por um momento, a pertinência das acusações. A estas incriminações o presidente já respondeu, uma a uma e com os detalhes do caso, e até pediu à Comissão de Investigação e Acusação que tornasse público o expediente. Mais clareza?
Alguns energúmenos antipetristas alegavam que há “muitíssimos elementos probatórios”, como se o foro ou o mandato constitucional fosse um assunto do potencial volume das provas.
Os mesmos energúmenos diziam, há poucas horas, que a investigação não era grave, que as penas seriam algumas multas ou a devolução de um dinheiro. Essa é a tendência, fazer crer que a ruptura da Constituição é uma coisa menor.
Outros dizem que “não se julga Petro, mas sua campanha”. De verdade, podemos acreditar em semelhante ingenuidade? Sabemos que o debate não é jurídico, e sim político. E se fosse julgar a campanha, recordemos que já se passaram os 30 dias que o CNE tinha para abrir uma investigação.
Aceitar a hipótese da competência do CNE para julgar Petro não é um jogo, e sim um risco inclusive para o processo democrático burguês. O objetivo não é avançar para a democracia e sim restringi-la.
Terceiro ponto
O debate real é o da distribuição do poder, ante uma parte da elite que não quer estar excluída. Claro que o setor de Petro e o santismo já estão no chamado Acordo Nacional, mas querem que este acordo incorpore novos setores.
Uns que estão fora são os uribistas e estes não pretendem ser incluídos para “salvar o país”, e sim para estabelecer um contrapoder a partir do qual possam não só defender seus privilégios, como, sobretudo, assegurar impunidade.
E o uribismo, como boa expressão da extrema-direita, não bate na porta: bate na mesa, e esse golpe desta vez não é dado a partir de suas coalizões parlamentares, e sim a partir do CNE. Simples assim.
O poder, já disse há quase duas décadas Evo Morales, não reside necessariamente no governo: uma coisa é o governo e outra o poder. As elites colombianas estão vivas, não só vivas como furiosas, e não só furiosas, como dispostas a agir.
Creio que o erro está em pensar que tudo é negociável e que basta convocar todos para obter um acordo. Os tíbios chamam isso de “construir sobre o construído”, desconhecendo que muitas vezes o construído foi sobre colunas de injustiça que devem ser removidas.
Quarto ponto
Já tentaram inventar, nos meios de comunicação, um governo que não corresponde à realidade, baseando-se em calúnias, mentiras midiáticas e redes sociais. Para isso ajudou, e muito, um petrismo incapaz de ser eficaz na comunicação.
Mas aí segue vivo um país real, crítico. Este país que em 2021 fez uma greve nacional. Esta foi a verdadeira chama que permitiu a vitória eleitoral de Petro, para além de alianças políticas.
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E é certo que este país não tem hoje a capacidade de um exército, mas sim tornaria impossível um Governo de direita imposto. Pela mesma razão e entre outras coisas, foi um erro não ter liberado os rapazes da primeira linha, a quem as eleições de 2022 devem muito.
As ruas desgastam, mas também têm vida própria. As marchas nem sempre triunfam, mas tampouco é certo que passem desapercebidas: a greve de 2021 derrubou ministros e trancou reformas, ainda que a um preço muito alto em vidas humanas.
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Ante o chamado para as ruas, um problema é que temos uma parte da esquerda no poder que já não vai às marchas. Melhor dizendo: uma parte da esquerda que se burocratizou e não está de verdade com a proposta da mudança. Por isso, é um erro não ter entendido quem são os aliados e não ter limpado as próprias fileiras.
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E quinto ponto
O risco da tibieza. Dizia o velho Marx: “Os operários franceses não podiam dar um passo à frente, não podiam tocar nem em um pelo da ordem burguesa, enquanto a marcha da revolução não se sublevasse contra esta ordem”. Também acrescentou: “Sem revolucionar completamente o Estado francês, não há maneira de revolucionar o orçamento do Estado francês”.
Há muitos tíbios, alguns neoliberais, outros simplesmente covardes, que apelam à prudência e ao diálogo, como se Petro não fosse aquele que ganhou as eleições, como se tivesse empatado, como se sua legitimidade não fosse garantida.
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Outros dirão, para justificar o golpe, que Petro “cometeu erros”. Não se trata de discutir o que tão bem fez Petro, trata-se de salvar o único acordo meio decente entre as elites e uma parte da sociedade: a Constituição.
A direita não vê que nos está empurrando para que deixemos as diferenças para cerrar fileiras não em torno de Petro, mas sim em torno da democracia. Claro, o risco está em que sejamos incapazes de cerrar fileiras e aí vejo os tíbios, os puros e os politicamente corretos.
Não há independência de poderes, o CNE tampouco é independente, como não o foi nos últimos anos a Procuradoria, nem a Defensoria. Ainda dentro da simples democracia capitalista, o que faz o establishment colombiano é vergonhoso.
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A rua é não só uma opção, e sim hoje um dever. O que está em jogo não é a competência do CNE, e sim a competência da vontade da sociedade colombiana que elegeu Gustavo Petro.
As elites estão cometendo um erro de cálculo: o país de agora não é o mesmo dos anos 1990, nem o mesmo dos anos dourados do uribismo. O medo é que os cantos de sereia dos tíbios nos levem a cometer o erro de Allende: acreditar que aproximar o inimigo da casa é a mesma coisa que controlá-lo, quando realmente é abrir-lhe a porta para seu assalto final.
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