O porta-voz da presidência russa, Dmitri Peskov, avaliou que as tentativas de Donald Trump de punir os países que não se dobrarem ao monopólio do dólar serão um “tiro pela culatra”, em resposta à retórica agressiva do presidente eleito dos EUA sobre a tendência mundial à desdolarização.
Realmente, o próprio tom tipicamente adotado por Trump para lidar com outros países já soa extremamente desagradável para quem ele é dirigido – e para os demais, certamente. O seu estilo mandão não esconde o sentimento da elite política, econômica e militar dos Estados Unidos, que se acham os ditadores do planeta Terra.
A realidade dos últimos 80 anos concede uma certa razão a esse pensamento. Se olharmos a política mundial de um ponto de vista pragmático, é verdade que os EUA têm dominado o mundo durante esse período e são, ainda hoje, o país mais poderoso do globo. É lógico que essa situação gera uma prepotência, não apenas na alta cúpula do establishment americano, mas até mesmo entre os cidadãos comuns.
Os políticos profissionais ligados a esse Estado Profundo que controla o aparelho do regime americano sempre buscaram equilibrar a política de dominação com um discurso e uma apresentação amigáveis para os outros países. Exemplos não faltam, desde a política da boa vizinhança na América Latina até o Plano Marshall na Europa. Ultimamente, a propaganda em torno da diversidade e do meio ambiente é a fachada predileta pela qual Washington se apresenta publicamente, para esconder seus reais objetivos de rapinagem. Nos bastidores, contudo, as pressões aumentam. “Eles [o Ocidente] – e os EUA, em particular – estão fazendo grandes esforços na tentativa de segurar os países Brics pelo rabo… os países estão sob enorme pressão”, revelou Aleksei Mozhin, logo de sua saída do FMI como diretor-executivo para a Rússia, há pouco mais de um mês.
Como as relações públicas sempre foram um instrumento vital para alcançar seus objetivos de dominação, o Estado Profundo se inquieta com a honestidade de Trump. Ele não tem papas na língua e fala abertamente tudo o que os outros pensam, mas não podem falar para não atrapalhar esses objetivos. Sabem que os dominados até aceitam sua condição (no caso, os líderes corruptos que subjugam suas nações em troca de alguns trocados), mas desde que isso não extrapole para uma humilhação pública, porque precisam prestar contas aos seus próprios concidadãos.
Nesse sentido, o anúncio de Trump de que vai impor tarifas de 100% aos produtos importados vindos do Brics porque ele não é “otário” e a economia americana é “maravilhosa” pode ser um tiro que vai sair pela culatra. A Rússia já disse que essa posição dos EUA vai intensificar a tendência à desdolarização, uma vez que qualquer país que preze minimamente por seus interesses nacionais está vendo claramente como os americanos utilizam sua moeda como arma política para chantagear e impor sua vontade aos mais fracos.
No âmbito da cúpula do Brics em Kazan, em outubro, Vladimir Putin disse que 95% de todo o comércio exterior da Rússia já é feito em moedas nacionais, não em dólar. E isso tem sido extremamente positivo para a economia russa, que cresceu 4,1% até outubro deste ano (com concentração sobretudo em setores de alto valor agregado). Os investimentos estrangeiros no país aumentaram pelo terceiro ano consecutivo, e os russos querem que mais investidores de “países amigos” (ou seja, do chamado “Sul Global”) apostem no seu mercado de ações. Tudo isso ocorreu após o cerco quase total à economia russa desde 2014 e, principalmente, desde 2022 – incluindo milhares de sanções econômicas, bloqueio de reservas internacionais e expulsão do sistema SWIFT. Na prática, não foi a Rússia que abandonou o dólar, mas o dólar que abandonou a Rússia (como disse o próprio Putin).
Cerca de 160 países demonstraram interesse em adotar um sistema alternativo ao SWIFT, que poderia ser desenvolvido pelo Brics. Afinal de contas, alguns deles não podem acessar esse sistema controlado pelos EUA, devido a sanções econômicas impostas por motivos políticos. É o caso da Venezuela e de Cuba, que sofrem bloqueios econômicos, comerciais e financeiros perversos há muito tempo (Caracas há dez anos, Havana há 60). A possibilidade de utilização do dólar por esses dois países é muito limitada pelas leis dos EUA, o que tem sido fundamental para que permaneçam em uma situação econômica muito frágil, uma vez que ainda hoje dependem do dólar para comercializar com outros países.
Em vários casos, fica evidente que a dependência do dólar é extremamente nociva para qualquer nação. Em termos puramente econômicos, elas ficam reféns das flutuações e especulações em torno da moeda americana, e em termos políticos são obrigadas a se ajoelhar para os EUA com medo de ações como as que foram feitas contra Rússia, Cuba e Venezuela. Não é de se surpreender que Javier Milei, um preposto dos EUA, tenha simplesmente dolarizado a economia argentina, colocando-a sob total controle dos bancos americanos.
Se, por um lado, existe uma tendência à desdolarização – encabeçada por Rússia e China e acompanhada principalmente por países que sofrem ameaças políticas dos EUA –, por outro ela ainda é muito incipiente. De acordo com o FMI, mais da metade das reservas mundiais são em dólar, e as reservas em euro (a segunda principal moeda de reserva) são três vezes menores. No nosso caso, cerca de 80% das reservas internacionais são em dólar, o que preocupa devido a riscos cambiais e à rigidez em transações internacionais.
O presidente Lula tem indicado apoio às ideias de diversificação monetária e desdolarização dentro do Brics. Em abril do ano passado, ele assinou um acordo com Xi Jinping que permite o comércio bilateral em real e yuan e tenderá a reduzir os custos das operações. Tratou-se de medida relevante, sendo a China o principal parceiro comercial do Brasil há 15 anos, que começou a ser implementada no final do ano passado.
Na cúpula do Brics, ao assumir a presidência do bloco para 2025, Lula declarou: “agora é chegada a hora de avançar na criação de meios de pagamento alternativos para transações entre nossos países. Não se trata de substituir nossas moedas. Mas é preciso trabalhar para que a ordem multipolar que almejamos se reflita no sistema financeiro internacional”. O ministro Mauro Vieira foi na mesma linha: “Temos uma série de iniciativas e de projetos para essa nossa presidência. Um deles é o sistema de pagamento internacional entre os países do Brics que leva em conta o uso das moedas nacionais e que se possa fazer o comércio entre os países de forma mais célere e menos custosa.”
Desde 2001, pouco mais de ¼ do mercado comercial global deixou de depender do dólar e, para 2025, calcula-se que as liquidações globais em dólar e euro possam cair de 78,5% para 40%.
Talvez haja um entendimento mútuo entre os defensores mais e menos contundentes da desdolarização que seria algo benéfico, mesmo que isso resulte em uma retaliação dos Estados Unidos. A balança comercial do Brasil, por exemplo, com os Estados Unidos, foi deficitária em 2023. Apesar disso, os estadunidenses são os principais importadores de produtos brasileiros manufaturados e as tarifas de Trump atingiriam em cheio esse setor.
Mas quem pensa que os Estados Unidos já não impõem tarifas e medidas protecionistas aos produtos brasileiros se engana. Em 2023 os EUA importaram cerca de US$ 233 milhões em produtos brasileiros sujeitos a essas medidas, sendo o país com mais medidas protecionistas contra o Brasil e atualmente as grandes companhias dos EUA estão pedindo mais medidas antidumping aos nossos produtos.
“O Brasil não tem preços competitivos, uma sobretaxa faria com que nossos produtos se tornem mais caros ainda. Com isso, deixaríamos de exportar produtos [para os EUA], principalmente manufaturados”, disse José Augusto de Castro, presidente executivo da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB) à BBC News Brasil. Tal política, se levada a cabo por Trump contra os países Brics, também tenderia a valorizar o dólar, encarecendo os produtos dos EUA, e ao mesmo tempo desvalorizando o real.
18 anos de Brics: conquistas, projetos e as diferenças entre o bloco e a Otan
Contudo, os países do Brics e seus parceiros não são hoje tão dependentes das exportações para os Estados Unidos como já foram um dia. Somente 3% das exportações de Rússia, Irã e Emirados Árabes Unidos são para o mercado americano. Egito, Arábia Saudita (com um pé no Brics) e Argentina (que já foi convidada, mas recusou quando Milei assumiu a presidência) destinam entre 5% e 10% de seus produtos, apenas. Já o percentual de exportações de Brasil, China, Índia e Etiópia para os EUA varia entre 10% e 21% do total de suas vendas, segundo informou à reportagem do Valor Econômico na Suíça o professor Simon Evenett, da Universidade de Saint Gallen.
Ainda parece difícil de acreditar que Trump cumprirá integralmente as suas promessas tarifárias, mas é claro que elas estão sendo levadas muito a sério no Brasil e nos outros países Brics. Os chineses já anunciaram retaliações, como a proibição da exportação para os Estados Unidos de produtos que contenham uma série de substâncias que podem ser usadas, por exemplo, para fins militares, semicondutores e cabos de fibra óptica. Também afirmaram que vão acelerar a cooperação com os parceiros do Brics em diversas áreas. Mauro Vieira chamou as ameaças de Trump de “provocativas”.
As tendências históricas dificilmente são revertidas. Ainda mais neste caso, que existem duas: a desdolarização e a agressividade do regime americano. O secretário do Tesouro nomeado por Trump, Scott Bessent, confirmou que a política econômica externa dos EUA será voltada para a imposição de tarifas e a manutenção do “status do dólar como moeda de reserva mundial”.
“Se Trump usar todas as tarifas que citou, há o risco de cortar os Estados Unidos da economia mundial até certo ponto e tornar o dólar menos útil para outros países. Isso poderia reduzir a dependência do dólar, que é exatamente o que ele diz que não quer que aconteça”, Alan Deardorff, professor de economia da Universidade de Michigan, analisou para a BBC News Brasil.
Brics possibilita à América Latina uma nova geoeconomia livre do controle dos EUA
A dependência – econômica, política, militar e cultural – dos Estados Unidos revela-se, mais uma vez, absolutamente danosa aos outros países. O Brasil tem um grande desafio ao presidir o Brics no ano que vem, e ele é o de combater essa dependência por meio da maior integração com os membros do bloco e com outros parceiros do chamado “Sul Global” – ao invés de parcerias tão submissas quanto as com os americanos. Essas parcerias, muito mais favoráveis, combinadas com um verdadeiro investimento na indústria nacional e nos setores-chave do desenvolvimento econômico, científico e tecnológico, podem ajudar a proteger o Brasil e a abrir o caminho para libertá-lo da agressividade imperial dos EUA.