Em 4 de março, começou no Peru o julgamento contra o ex-presidente Pedro Castillo Terrones, encarcerado desde 7 de dezembro de 2022 e virtualmente sequestrado desde então. É bom esclarecer o tema em suas diversas facetas para evitar a satanização incentivada contra ele pela ultradireita, que pretendeu convertê-lo no símbolo de todos os males que afligem a República.
Pedro Castillo é um professor que, em 2017, emergiu no cenário nacional liderando uma luta magisterial certamente justa e exitosa. Nem antes, nem depois teve projeção política, até que, nas eleições de 2021, candidatou-se como presidenciável por uma força relativamente nova de origem provinciana, o Peru Livre.
Sua aspiração confirmou a existência de uma esquerda rural e provinciana que superou até mesmo a urbana e capitalina, representada por Verónica Mendoza. O segundo turno – memorável – das eleições daquele ano permitiu que Castillo derrotasse Keiko Fujimori, a obsessiva e errática representante da ultradireita, que recorreu a tudo para reverter sua derrota.
Falar do governo de Castillo é quase uma ficção. Ele assumiu o poder em julho de 2021, em meio a uma onda de agressões e insultos. E, desde o primeiro dia, foi alvo de uma ofensiva sediciosa sem precedentes, que buscou destituí-lo desde o início. Seus ministros foram alvo de ataques constantes, interpelados e censurados pelo Congresso, além de serem vítimas de todos os distúrbios incentivados e promovidos pela grande imprensa.
Pode-se afirmar, sem dúvida, que Castillo não teve um único dia de gestão governamental livre de ataques e agressões. Do início ao fim, seu governo foi um campo de batalha no qual a ultradireita lutou com todas as armas, ignorando a própria essência da democracia que diz defender.
Esse governo – obviamente – não foi socialista nem comunista. Tampouco revolucionário. Pretendeu ser um governo popular e democrático, distante e diferente de seus predecessores. Não conseguiu. Castillo, entre outras coisas, não soube escolher seus colaboradores, com algumas exceções.
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Foi cercado por uma camarilha de indesejáveis que transformou o poder em uma espécie de negócio de principiantes, o que permitiu que fossem expostos e acusados de outras falcatruas. Entre seus “colaboradores” mais questionáveis estava Boluarte, ministra durante 18 dos 21 meses de gestão.
Finalmente, em 7 de dezembro de 2022, foi deposto sob o pretexto de ter tentado “um golpe de Estado”. Na verdade, o golpe existiu, só que não foi dado por ele. Foi dado contra ele. E, desde então, está preso. Aqueles que o derrubaram disseram na época que “o colocariam na cadeia para o resto da vida”. E estão nisso.
Já se passaram 825 dias atrás das grades, e o Ministério Público solicitou 34 anos de prisão. Se essa pena for cumprida, ele só seria liberado em 2056, quando Castillo tiver cerca de 90 anos.
A detenção de Castillo foi ilegal. Ocorreu ao meio-dia de 7 de dezembro, quando ele ainda era presidente e gozava da imunidade reconhecida constitucionalmente. Em nenhum caso poderia ter sido detido. A figura alegada – a “flagrância” – não se aplica.
Juridicamente, um delito flagrante ou in fraganti é aquele cometido quando o autor é surpreendido no momento da infração. No momento de sua detenção, Castillo estava viajando com sua família em um veículo oficial – o “Cofre”, como se diz hoje – a caminho da embaixada do México. E isso não é crime.
No caso extremo de se comprovar uma “flagrância”, o fato também não justificaria uma detenção, por se tratar do presidente da República. Ele poderia, sim, ser interceptado e conduzido ao Palácio Legislativo para ser colocado à disposição do Congresso, que decidiria sobre o procedimento constitucional pertinente, ou seja, um julgamento legal com direito à defesa. Nada disso aconteceu.
Se, alegando “absoluta urgência”, quisessem dispensar esse procedimento, seria necessária a autorização de 4/5 dos congressistas, ou seja, 104 votos. Isso também não ocorreu.
O que deveria chamar a atenção é que, diante de violações constitucionais tão graves, os órgãos judiciais tenham validado esse procedimento irregular em vez de anulá-lo, de acordo com a lei. Chegará o dia, sem dúvida, em que isso poderá ser revisado.
Na tarde de 7 de dezembro, o Congresso destituiu Castillo, mas o acusado já estava preso e, portanto, sem possibilidade de defesa, o que invalida a decisão parlamentar. Além disso, os congressistas não discutiram naquela ocasião a moção de vacância que estava em trâmite. Aprovaram outra, ignorando todos os trâmites legais.
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Pedro Castillo, um preso político
Foi, como confessaram, “um ato político”, não jurídico. E esse ato político gerou um protesto massivo da população, que se estendeu por mais de 100 dias, deixando um saldo doloroso de mortes e destruição ainda impune.
É claro que, no cenário internacional, qualquer órgão penal que avalie o ocorrido o considerará ilegal e o rejeitará. Isso explica o pavor demonstrado pelas autoridades locais quando o caso é levado além das fronteiras nacionais.
Uma expressão desse pânico é vista na reação daqueles que perdem a compostura quando o argentino Guido Croxatto aborda o tema, ou quando a presidente do México o considera ilegal. “Ingerência nos assuntos internos”, clamam, quando há pouco tempo se intrometiam abertamente nos assuntos da Venezuela, proclamando como “presidente” desse país um aventureiro hoje em desgraça.
O julgamento de Castillo prevê-se cheio de interferências e obstáculos. Mas, se for conduzido de acordo com a lei e os procedimentos constitucionais vigentes, nenhuma condenação será possível. A liberdade de Castillo é imperativa.