A Procuradoria para a Defesa dos Direitos Humanos, uma das principais instituições criadas pelos acordos de paz de El Salvador em 1992, passou por um processo de desmantelamento ao longo dos anos, anulando seu papel. Atualmente, a situação chegou ao extremo de silenciar as graves violações a esses direitos que ocorrem no país.
Desde dezembro, a instituição estatal demitiu cerca de 100 trabalhadores, sendo metade da equipe jurídica, o que enfraqueceu ainda mais sua função de fiscalização do respeito aos direitos humanos.
Além disso, a nula presença da procuradora, Raquel Caballero, diante das constantes denúncias de violações desses direitos.
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“Eu não creio que uma procuradora tenha que se calar diante de todas as violações dos direitos humanos que estão sendo cometidas no país devido ao regime de exceção”, disse à IPS o advogado e ativista de direitos humanos Henri Fino.
Desde março de 2022, o governo do presidente Nayib Bukele implementou uma política de mão dura contra as temidas gangues ou maras, que conseguiu desarticular por meio de prisões em massa, garantindo amplo apoio popular.
No entanto, ao longo do processo, ocorreram prisões arbitrárias, e pessoas sem qualquer vínculo com esses grupos criminosos foram detidas. Relatórios de organizações civis denunciam que as forças policiais e militares cometeram abusos e outras ilegalidades.
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Um dos aspectos mais preocupantes foi a falta de respeito ao devido processo nessas detenções arbitrárias e em todo o processo judicial dos afetados, pois eles não tinham direito a ser assistidos por advogados nem puderam receber visitas de familiares, direitos universais em qualquer país democrático. Inclusive se chega ao extremo de não liberar quem tenha recebido cartas de liberdade de juízes.
Até agora, em um país com seis milhões de habitantes, cerca de 84 mil pessoas foram presas. A maioria seria de membros de gangues, uma vez que seus nomes já constavam em bancos de dados da polícia. No entanto, não há informações sobre quantos inocentes permanecem detidos, embora 8 mil tenham sido libertados após não se encontrarem razões para sua prisão.
Apoio popular e omissão da procuradora
O desmantelamento das gangues gerou um apoio massivo a Bukele, um neopopulista de direita.
Nesse contexto, a procuradora, Raquel Caballero, que está em seu segundo mandato na instituição, esteve completamente ausente no processo de fiscalização do respeito aos direitos da população.
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“Ela é uma incondicional (do governo) e, além disso, não aparece em lugar nenhum”, criticou Fino. Caballero assumiu o cargo em 2019, mesmo ano em que Bukele chegou à presidência. Em 2024, ele se manteve no poder após uma reeleição imediata, viabilizada por mudanças nas normas constitucionais do país.
Desmonte da política de paz
Parte essencial dos acordos de paz assinados em 1992 entre a guerrilha da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) e o governo da época foi o estabelecimento de uma instituição que, no pós-guerra, garantisse o respeito aos direitos fundamentais, brutalmente violados durante o conflito.
A guerra civil em El Salvador, entre 1980 e 1992, deixou cerca de 75 mil mortos e 8 mil desaparecidos.
“Criar a Procuradoria foi importante porque institucionalizou o respeito e a fiscalização dos direitos humanos, garantindo que não ficassem diluídos na estrutura geral do Estado, mas sim sob a responsabilidade de uma instituição encarregada de velar pelo seu cumprimento”, explicou Fino.
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Nos primeiros anos de funcionamento, a Procuradoria teve um papel fundamental no estabelecimento de bases para seu desenvolvimento e desfrutou de uma relativa independência. No entanto, com o tempo, ficou evidente que os interesses dos governos e dos partidos políticos acabariam por descaracterizá-la.
Assim, a Procuradoria seguiu o destino de outras instituições do Estado: os partidos políticos se apropriaram dela, num acordo informal de repartição entre o governo e seus aliados.
Instrumentalização política da Procuradoria por Bukele
“Esse é outro problema sério da Procuradoria: se tornou um covil de caça para alguns partidos políticos”, afirmou o advogado.
A instituição também sofreu manipulação política durante os dois governos da FMLN, partido formado após o fim da guerra, que governou entre 2009 e 2014 e entre 2014 e 2019.
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Essa manipulação sempre existiu, mas agora a Procuradoria dá sinais claros de estar sob o controle do partido governista Novas Ideias, que domina amplamente a Assembleia Legislativa.
A Assembleia reconduziu Raquel Caballero ao cargo para um segundo mandato, após ela já ter ocupado a função entre 2016 e 2019.
“Os governos não se preocuparam em fortalecer a instituição. Por isso, ela nunca cumpriu plenamente o papel estabelecido nos acordos de paz. Com a chegada de Raquel Caballero, a situação se agravou”, afirmou à IPS Guillermo García, um dos mais de 100 trabalhadores demitidos em dezembro. Desde então, as demissões continuaram.
Guillermo García afirmou que Raquel Caballero não tinha o perfil nem os requisitos necessários para reassumir o cargo de procuradora, pois, em seu primeiro mandato, foi denunciada por trabalhadores da instituição por nepotismo e outras irregularidades depois de saber que duas enteadas da funcionária trabalhavam na Procuradoria, além de outros parentes próximos.
A denúncia também incluía o uso indevido dos veículos institucionais por parte do esposo da procuradora.
Caballero foi denunciada ao Tribunal de Ética Governamental, que confirmou as acusações e a sancionou em outubro de 2019. No entanto, essas resoluções têm apenas caráter moral, sem consequências penais ou civis.
Ainda assim, apesar desse histórico, Caballero conseguiu se manter no cargo.
Influência política e favorecimentos religiosos
“Se estivéssemos em um Estado de direito… ela não preencheria nenhum requisito, pois é necessário ter notória moralidade, e sua conduta já estava manchada pelo nepotismo”, insistiu García, referindo-se ao controle que o presidente Nayib Bukele parece exercer sobre grande parte do sistema judicial do país.
Em seu segundo mandato, Caballero manteve as práticas de nepotismo pelas quais já havia sido condenada, afirmou García, acrescentando que também levou para trabalhar ali várias pessoas que fazem parte da mesma congregação evangélica que ela frequenta.
García e os demais trabalhadores demitidos apresentaram novas denúncias contra Caballero. Entre outras acusações, ela é responsabilizada por violar o devido processo ao dispensá-los. Desta vez, as denúncias foram encaminhadas a um tribunal do sistema judicial. Ele, advogado de 54 anos e com 23 anos de experiência na instituição, fazia parte da equipe jurídica do departamento de HIV e Direitos Humanos.
A justificativa oficial para as demissões foi de que esses cargos não eram mais necessários. No entanto, o caso se insere em um contexto de cortes generalizados nas instituições do Estado, que já somam cerca de 10 mil dispensas.
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Acredita-se que essas medidas façam parte do compromisso do governo de “reduzir a gordura” do Estado, uma exigência do Fundo Monetário Internacional (FMI) para liberar um pacote financeiro de US$ 1,4 bilhão ao país. O acordo foi aprovado em 26 de fevereiro, após longas negociações.
O FMI informou, em comunicado oficial, que o acordo permite um desembolso imediato de aproximadamente US$ 113 milhões.
A esposa de Guillermo García, Marisela Martínez, também foi demitida em dezembro. Ela trabalhava como secretária no departamento de Atenção a Pessoas Migrantes, setor que também perdeu um dos advogados da equipe jurídica.
“Na minha área, realizávamos verificações para garantir que os direitos das pessoas migrantes não fossem violados, tanto dos que retornam quanto dos que estão em trânsito. Acima de tudo, monitorávamos se as instituições estavam atuando em favor dos migrantes”, explicou Martínez, de 44 anos.
Todas essas demissões, acrescentou em entrevista à IPS, prejudicam ainda mais o desempenho da instituição, que há tempos passa por um processo de desmantelamento.
Impacto no atendimento a migrantes e outras áreas
“Com a importância do tema migratório, especialmente agora, com Donald Trump (na presidência dos Estados Unidos), o que Caballero faz é enfraquecer o departamento”, criticou Martínez.
Entre os setores mais afetados está o de Direitos Políticos, onde restaram apenas o chefe e um advogado. Além disso, a Procuradoria Adjunta de Direitos Econômicos e Sociais deixou de existir após ser fundida com a de Meio Ambiente.
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Diante do desemprego, Martínez considera abrir um pequeno negócio no ramo alimentício para gerar renda para sua família. No entanto, o investimento necessário para obter autorizações e capacitação exige um dinheiro que ela não tem no momento. Seu esposo, García, está trabalhando como advogado, representando oito colegas que também foram demitidos, incluindo sua própria esposa.
A advogada América Alvarado, que integrava a equipe jurídica da Procuradoria Adjunta da Infância, também foi demitida em dezembro. Uma de suas principais funções era visitar centros de reinserção de jovens em conflito com a lei. Agora, ela considera se dedicar ao trabalho notarial.
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Aos 68 anos, Alvarado trabalhou na Procuradoria por “27 anos, seis meses e 10 dias”, contou, rindo. Seu plano era continuar até o fim de 2025 e, então, se aposentar.
“Queria me aposentar no próximo ano, mas não sair assim. Me tiraram como se eu fosse uma criminosa”, lamentou em entrevista à IPS.
Segundo Alvarado, todo o esforço feito no pós-guerra para construir uma instituição confiável e respeitada pela população está sendo perdido devido ao desmantelamento sistemático.
“É uma lástima. Tantas vidas perdidas na guerra para que os acordos de paz fossem assinados… Essas pessoas morreram para que valesse a pena o trabalho de instituições como a Procuradoria”, concluiu.