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Desglobalização: Como conflito na Ucrânia pode isolar e prejudicar países emergentes

Processo, que abrange a ampliação de restrições à circulação de capital indivíduos e informações, não envolve regiões e países de maneira igual
Klei P. Medeiros
Diálogos do Sul Global
Porto Alegre (RS)

Tradução:

O atual conflito na Ucrânia colocou em tela um debate sobre a tendência à “desglobalização” nas relações internacionais. A disputa entre Rússia, Ucrânia e países da OTAN promoveu uma escalada de sanções e restrições econômicas, políticas e sociais entre os lados envolvidos. Entretanto, as discussões sobre um eventual processo de desglobalização não podem ignorar dois aspectos fundamentais.

Em primeiro lugar, a ampliação do protecionismo e do nacionalismo não é uma novidade do momento atual e sim um processo desenvolvido ao longo da década de 2010, sendo acelerado a partir de 2015 em meio ao Brexit, à eleição de Donald Trump e à ascensão de governos de direita e extrema-direita no mundo todo.

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Em segundo lugar, a desglobalização – enquanto fenômeno que abrange a ampliação de restrições à circulação de capital, de indivíduos e de informações – não envolve todas as regiões e os países de maneira igual.

Na verdade, em muitos casos, ocorrem movimentos por parte de potências tradicionais no sentido de isolar econômica e diplomaticamente potências emergentes e reemergentes (como a China e a Rússia).

Trata-se, portanto, de disputas por zonas de influência e tentativas de impedir a ascensão de novos polos de poder em regiões não-tradicionais.

Pós-Guerra Fria

No imediato Pós-Guerra Fria, nos anos 1990, a dissolução da União Soviética promoveu a percepção de que o mundo viveria um período de homogeneização e globalização, centrado nos valores liberais e tendo os EUA como única superpotência. Acreditava-se que haveria uma tendência à promoção da democracia, do modelo econômico neoliberal e de uma governança baseada em consensos, a partir da atuação multilateral dos Estados.

Entretanto, já no final desta mesma década, verificou-se que tais crenças não iriam se concretizar, tanto pela ação dos EUA quanto pela mudança na distribuição global de poder. Os EUA passaram a adotar um comportamento unilateral, com as intervenções militares na Europa Oriental e no Iraque, o abandono do Protocolo de Kyoto e a não-ratificação do Tribunal Penal Internacional.

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No mesmo contexto, ampliou-se gradualmente a (re)emergência de polos de poder em regiões não-tradicionais, como Rússia, China, Brasil, Índia, Irã, África do Sul, entre outros. Sendo assim, a ideia de unipolaridade centrada nos EUA, baseada em consensos e na homogeneização de costumes, de modelos econômicos, políticos e sociais, cada vez mais se tornava distante.

O que se verificou, sobretudo na década de 2000, fora um processo de multipolarização sistêmica, com ascensão de novos polos e, vinculado a isso, a emergência de alternativas, de pluralidade, de multiplicidade na governança global.

Os BRICS

Os BRICS, especialmente, lutaram por reformas em instituições tradicionais como o FMI, o Banco Mundial, o Sistema ONU, a OMC, entre outros, de forma a tornar tais organizações mais representativas da nova distribuição de poder econômico e político internacional.

Ainda, buscaram mudanças nos princípios, normas e regras destas instituições tornando-as menos centradas no Ocidente e mais próximas dos interesses e necessidades dos países em desenvolvimento. No nível econômico, sobretudo após a crise de 2008, também se questionou o neoliberalismo como modelo adequado para promover estabilidade e crescimento econômico.

Desse modo, considerando que o mundo projetado e imaginado por analistas liberais e policy makers estadunidenses nos anos 1990 não estava se materializando, na década de 2010 os EUA e os países europeus adotaram uma postura de reação na política externa.

Processo, que abrange a ampliação de restrições à circulação de capital indivíduos e informações, não envolve regiões e países de maneira igual

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Desglobalização em meio à Guerra na Ucrânia




Governos Obama e Trump

O governo Obama alterou a doutrina de segurança, reduzindo as incursões no Oriente Médio e centrando-se no “pivô para a Ásia”, na tentativa de conter a ascensão da China.

Houve deslocamento de forças militares para o Nordeste Asiático (especialmente na região das Coreias) e para o Pacífico e, paralelamente, a negociação de uma série de acordos bilaterais no nível econômico e militar com países do Sudeste Asiático.

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Já no governo Trump, os EUA iniciaram uma guerra comercial direta contra a China, acompanhada de uma série de atritos diplomáticos. No que tange à Rússia, o processo de isolamento internacional liderado por países ocidentais teve início na Guerra da Geórgia, em 2008, sendo ampliado após a anexação da Crimeia por Moscou, em 2014, quando a Rússia fora expulsa do G-8 e sofreu uma série de embargos e sanções econômicas.


Brasil

O Brasil, outra potência emergente, teve relações estremecidas com os EUA após a revelação de um grande esquema de espionagem norte-americana em solo brasileiro, envolvendo a interceptação de comunicações da presidenta Dilma Rousseff, de ministros, de grandes autoridades e da estatal Petrobrás. Após 2013, o país passou por um processo complexo de declínio na projeção externa e no crescimento econômico. 

Assim sendo, a dinâmica que alguns analistas descrevem como de desglobalização deve ser também compreendida como um movimento liderado pelas potências ocidentais tradicionais na intenção de frear a ascensão política e econômica de novos pólos de poder. E esse fenômeno internacional está entrelaçado a um conjunto de elementos domésticos.

Destacam-se, por exemplo, as reações sociais à globalização e aos seus efeitos econômicos e sociais. A fuga de capitais de países desenvolvidos para países em desenvolvimento ampliou o desemprego em países de renda alta e, no nível social, o maior fluxo de pessoas (migrações e movimentos de refugiados) ampliou a xenofobia, a aversão ao estrangeiro e à livre circulação de pessoas.


Forças de extrema-direita

Na esteira de tais mudanças sociais, forças de extrema-direita nos EUA e na Europa se fortaleceram, levando à eleição de políticos como Donald Trump, Boris Johnson, Viktor Orbán, entre outros. Nos EUA, Trump adotou uma política externa marcada pela reversão do modelo centrado na promoção de uma ordem liberal global que caracterizou os anos 1990.

Ao invés da defesa do livre-comércio e das instituições internacionais, Trump centrou-se no protecionismo comercial, esvaziou instituições (como o G-8 e a OTAN) e chegou a abandonar algumas delas, por exemplo saindo do Acordo de Paris do Clima, do Conselho de Direitos Humanos da ONU, do Pacto de Migração e da Organização Mundial da Saúde (em meio à pandemia). O Reino Unido, por sua vez, retirou-se da União Europeia através do processo Brexit. 

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Nesse sentido, se existe um processo de desglobalização em curso, a atuação dos países centrais desenvolvidos (como EUA e Reino Unido) nesse movimento cumpriu papel essencial, seja buscando restringir e isolar polos emergentes (como China, Rússia e Irã), seja revertendo de maneira geral princípios antes defendidos, como a livre circulação de capitais e pessoas e o papel das instituições na governança global.

De certa forma, este é um processo que obedece à dinâmica de redistribuição de poder internacional, uma vez que potências consolidadas e declinantes historicamente reagem à ascensão de novos polos. No âmbito econômico, por exemplo, com a força comercial de países como a China e a Índia, o livre-comércio absoluto não mais beneficia os EUA e os países europeus como antigamente.

Da mesma forma, o maior poder e influência de potências emergentes como os BRICS em instituições internacionais (por exemplo, na ONU, FMI, Banco Mundial e OMC) minou o tradicional oligopólio que países do G-7 exerciam, não sendo mais benéfico também para estes utilizar as organizações internacionais como meios de projetar suas agendas e sua influência.


Nova realidade

Esta nova realidade causou uma ruptura e uma crise no modelo liberal nas relações internacionais e na economia, já que analistas e policymakers de países desenvolvidos perceberam a dificuldade de tal modelo gerar retornos positivos em um contexto de disputa global de poder.

Vale lembrar, ainda, que esse cenário já ocorreu em outros contextos: no pós-Primeira Guerra Mundial, algumas potências consolidadas (como o Reino Unido) apostaram em um modelo liberal de ordem para evitar uma nova guerra e garantir sua hegemonia, por exemplo criando a Liga das Nações, promovendo o livre-comércio e defendendo a difusão da democracia, nos anos 1920.

Crise na Ucrânia é produto da Segunda Guerra Mundial inacabada

Entretanto, ficou claro, já nos anos 1930, que esse modelo não se sustentaria em um contexto de crise e reequilíbrio de poder global, marcado pela ascensão da Alemanha, do Japão e da União Soviética. No nível doméstico, houve a difusão das ideologias nazifascistas e do autoritarismo em diversos países, acompanhada de protecionismo e disputa comercial por zonas de influência. Ademais, nenhuma instituição internacional foi capaz de evitar conflitos entre potências.


Processo de desglobalização

Embora com contornos distintos, o que hoje alguns analistas definem como um processo de desglobalização, aprofundado com a Guerra na Ucrânia, é também (mas não só) parte de um movimento de potências tradicionais para isolar potências (re)emergentes como Rússia e China, não sendo um fenômeno orgânico que afeta todas as regiões do mundo de maneira igual.

Caso a imposição de sanções e barreiras à Rússia fosse apenas uma iniciativa para punir um Estado que violou normas do direito internacional, o mesmo deveria ter sido feito (e não foi) contra os EUA quando invadiram o Iraque (vale lembrar, sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU e infringindo diversas normas humanitárias).

Além disso, enquanto alguns países específicos são isolados, outros são estimulados a se integrar ao conjunto de Estados norte-ocidentais: o Brasil, por exemplo, desde o impeachment de Rousseff, vem buscando aderir à OCDE e chegou a receber o status de aliado extra-OTAN durante o governo Trump.

Portanto, a desglobalização precisa ser entendida como fenômeno desigual e complexo, que responde estruturalmente aos interesses e às disputas de poder entre grandes potências, sendo que estas ora se beneficiam com a integração de determinados países, ora com o isolamento de outros.

Uma visão sobre o processo da globalização neoliberal na Cadernos de Terceiro Mundo

Também as reações ocidentais à Guerra na Ucrânia não são uma novidade, mas somam-se a diversas outras iniciativas para retardar e impedir a ascensão de novos polos, como fora o caso da guerra comercial dos EUA contra a China no governo Trump.

Por fim, a promoção da desglobalização por parte de países desenvolvidos responde, no nível doméstico, às insatisfações da população com os efeitos da abertura econômica e da livre circulação sobre o bem-estar social. Sendo assim, todo esse panorama exige dos analistas entender a desglobalização a partir da dinâmica sistêmica internacional, dos atores envolvidos e de seus interesses.

Klei P. Medeiros é doutor em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas — UNESP-Unicamp-PUC-SP e mestre em Ciência Política pela UFRGS.



As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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