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ToggleA reunião que marcou o 20º aniversário da Organização de Cooperação de Xangai, OCX [ing. Shanghai Cooperation Organization, SCO] em Dushanbe, Tadjiquistão, consagrou nada menos que um novo paradigma geopolítico.
O Irã, agora já membro pleno da OCX, foi restaurado ao proeminente papel na Eurásia tradicionalmente dele, depois do recente acordo comercial e de desenvolvimento de $400 bilhões, firmado com a China.
O Afeganistão foi o tópico principal — com todos os atores de acordo quanto à trilha a seguir, detalhada na Declaração de Dushanbe. E todas as vias de integração da Eurásia convergem agora, em uníssono, rumo ao novo paradigma geopolítico — e geoeconômico.
Podem chamar de dinâmica de desenvolvimento multipolar, em sinergia com a Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE.
Fotos públicas
Organização de Cooperação de Xangai (OCX)
A Declaração de Dushanbe foi bem explícita quanto aos objetivos visados pelos atores eurasianos: “uma ordem mundial mais representativa, democrática, justa, multipolar e baseada em princípios universalmente reconhecidos da lei internacional, da diversidade cultural e civilizacional, mutuamente benéfica e de cooperação igual entre estados, sob o papel de coordenação central da ONU.”
Quanto aos imensos desafios inerentes ao quebra-cabeças afegão, surgiram sinais que permitem ter esperanças nessa 3ª-feira, quando Hamid Karzai e Abdullah encontraram-se em Cabul com o enviado do presidente Putin, Zamir Kabulov; o enviado especial da China, Yue Xiaoyong; e o enviado especial do Paquistão, Mohammad Sadiq Khan.
Essa troika – Rússia, China, Paquistão – está na linha de frente diplomática. A OCX chegou ao consenso de que Islamabad coordenará, com os Talibã, a formação de um governo que também incluirá tadjiques, uzbeques e hazaras.
A consequência imediata mais notável de a OCX não só incorporar o Irã, mas também pegar pelos chifres o touro afegão, com pleno apoio dos “-stões” centro-asiáticos, é que o Império do Caos foi completamente marginalizado.
Do Sudoeste da Ásia à Ásia Central, um reset real tem como protagonistas a OCX, a União Econômica Eurasiana (UEE) [ing. Eurasia Economic Union, EAEU], a Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE [ing. Belt and Road Iniciative , BRI] e a parceria estratégica Rússia-China. Os elos que por diferentes motivos ainda faltavam – Irã e Afeganistão – estão agora plenamente incorporados ao tabuleiro de xadrez.
Nas minhas frequentes conversas com Alastair Crooke, um dos mais argutos analistas políticos em atividade no mundo, várias vezes ele evocou O Leopardo, de Lampedusa: tudo tem de mudar, para que tudo possa continuar exatamente como sempre foi. Nesse caso, a hegemonia imperial, como Washington a interpreta: “Na sua confrontação crescente com a China, uma Washington impiedosa demonstrou que o que conta agora não é Europa, mas a região do Indo-Pacífico”. Esse o terreno primário da Guerra Fria 2.0.
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Com fraco potencial para conter a China agora que acaba de ser expelida da terra central da Eurásia, restou a Washington, como posição de recuo, um jogo de poder clássico de potência marítima: “o Indo-Pacífico livre e aberto” completado com o Quad e AUKUS, todo o conjunto foi transformado em “esforço” para tentar preservar a supremacia americana em declínio.
O agudo contraste entre o impulso para integração continental da OCX e o gambito do “we all live num submarino australiano” (minhas desculpas a Lennon-McCartney) fala por ele mesmo. Há no ar uma mistura tóxica de húbris e desespero, sem sequer odor, que fosse, de pathos, para aliviar a queda.
O Sul Global não se impressionou. Falando ao fórum em Dushanbe, o presidente Putin observou que era enorme o portfólio de nações que batem à porta da OCX, o que absolutamente não foi surpresa para ninguém. Egito, Qatar e Arábia Saudita são agora parceiros de diálogo na OCX, no mesmo nível que Afeganistão e Turquia. É possível que ano que vem juntem-se a esses também Líbano, Síria, Iraque, Sérvia e vários outros estados.
E não para na Eurásia. Em discurso à CELAC meticulosamente planejado e cronometrado para acontecer no momento exato, Xi Jinping convidou nada menos que 33 nações latino-americanas, para se integrarem às Novas Rotas da Seda de Eurásia-África-Américas.
Lembrem-se dos citas
O Irã como protagonista da OCX e no centro das Novas Rotas da Seda volta a desempenhar papel histórico que sempre foi seu. Em meados do primeiro milênio antes de Cristo, iranianos do norte comandavam o núcleo das estepes na Eurásia Central. Os citas migraram para a estepe ocidental, enquanto outros iranianos da estepe avançavam por trilhas interiores até a longínqua China.
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Os citas – povo iraniano do norte (ou “do oriente”) – não eram necessariamente só guerreiros ferozes. Esse é estereótipo muito cru. Bem poucos no ocidente sabem que os citas desenvolveram sistema sofisticado de comércio, como Heródoto dentre outros narra, que ligava Grécia, Pérsia e China.
E por que isso? Porque o comércio era meio essencial para apoiar a infraestrutura sociopolítica dos citas. Heródoto entendeu o que se passava porque realmente visitou a cidade de Olbia e outros locais na Cítia.
Os citas
Os citas eram chamados saka pelos persas – o que nos leva para outro fascinante território: os sakas podem ter sido um dos mais antigos ancestrais dos pashtuns no Afeganistão.
“O que há, pois, num nome” – Cita? Ora, ora… há multidões. A forma grega Scytha significava “arqueiro” norte-iraniano. E assim se designavam todos os povos iranianos do norte que viviam entre a Grécia no Oeste, e a China no Leste.
Imagine agora que uma rede comercial internacional muito ativa desenvolveu-se na terra central, com foco na Eurásia Central, estimulada por citas, sogdianos e até pelos xiongnu – que continuou a combater os chineses, como narram as mais antigas fontes históricas gregas e chinesas.
Esses centro-eurasianos comerciavam com todos os povos que viviam em suas fronteiras, o que quer dizer europeus e asiáticos do sudoeste, do sul e do leste da Ásia. Esses são os precursores de múltiplas Antigas Rotas da Seda.
Os sogdianos seguiram os citas; Sogdiana foi estado greco-bactriano independente no século 3 a.C. – incluindo áreas do norte do Afeganistão – antes de ser conquistado por nômades vindos do leste, que acabaram por estabelecer o Império Cuchano, que rapidamente se expandiu para o Sul, pela Índia.
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Zoroastro nasceu em Sogdiana; o Zoroastrismo foi muito grande na Ásia Central durante séculos. Os cuchanos, por sua vez, adotaram o budismo: e assim aconteceu de o budismo chegar à China.
No século 1º DC todos esses impérios centro-asiáticos estavam unidos – por comércio de longa distância – a Irã, Índia e China. Essa foi a base histórica das múltiplas Antigas Rotas da Seda – que conectou a China ao Ocidente por vários séculos até que a Era dos Descobrimentos configurou a fatídica dominação ocidental sobre o comércio marítimo.
Pode-se dizer que, ainda mais que uma série de fenômenos históricos interligados, a denominação “Rota da Seda” serve melhor como metáfora de conectividade transcultural. É o que está no coração do conceito chinês das Novas Rotas da Seda. E o povo comum, por toda a ‘terra central’ [também “Coração da Terra”, ing. heartland; no mapa acima “pivot area” (NTs)] assim sentia a ideia, porque é o que até hoje continua impresso no inconsciente coletivo no Irã, China e em todos os “-stões” centro-asiáticos.
A vingança da “Heartland”
Glenn Diesen, Professor da Universidade do Sudeste da Noruega e editor de Rússia no jornal Global Affairs, está entre os poucos intelectuais ocidentais importantes que estão analisando em profundidade o processo de integração da Eurásia.
Seu mais recente livro diz tudo, praticamente já no título: A Europa como a Península Ocidental da Eurásia Expandida: Regiões Geoeconômicas num Mundo Multipolar (ing. Europe as the Western Peninsula of Greater Eurásia: Geoeconomic Regions in a Multipolar World).
Diesen mostra, em detalhes, como uma “a região Eurásia Expandida, que integra Ásia e Europa, está atualmente sendo negociada e organizada tendo no centro uma parceria chinesa-russa. Instrumentos geoeconômicos eurasianos de poder estão gradualmente formando a base de uma super-região com novas indústrias estratégicas, corredores de transportes e instrumentos financeiros. Por todo o continente eurasiano, estados tão diferentes como Coreia do Sul, Índia, Cazaquistão e Irã, todos apresentando formatos variados para a integração da Eurásia.”
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A Parceria Eurásia Expandida está no centro da política exterior da Rússia pelo menos desde o fórum de São Petersburgo em 2016. Diesen observa, corretamente, que “embora Pequim e Moscou partilhem a ambição de construir uma região eurasiana maior, os respectivos formatos diferem. O denominador comum dos dois formatos é a necessidade de se constituir uma parceria China-Rússia para integrar a Eurásia.” E isso ficou muito claro na reunião de cúpula da OCX.
Não surpreende que o processo aborreça imensamente o Império, porque a Eurásia Expandida, liderada por Rússia-China, é ataque mortal contra a arquitetura geopolítica do Atlanticismo. E isso nos leva ao debate tipo ninho de cobras em torno do conceito de “autonomia estratégica” da União Europeia em relação aos EUA; que seria essencial para estabelecer real soberania europeia – e, eventualmente, integração mais íntima dentro da Eurásia.
Simplesmente não existe soberania europeia, quando a política exterior do continente signifique submissão à dominatrix OTAN. A retirada humilhante, unilateral, do Afeganistão, combinada com ‘união’ anglo-só-AUKUS foi ilustração obscena de que o Império dá importância zero aos vassalos europeus.
O livro de Diesen mostra claramente, em detalhes, como o conceito de Eurásia, unificando Europa e Ásia “sempre foi, ao longo da história, uma alternativa à dominação pelas potências marítimas, na economia do mundo oceanocêntrico”, e como “estratégias britânicas e norte-americanas têm sido profundamente influenciadas” pelo fantasma de uma Eurásia emergente, “ameaça direta à posição vantajosa de britânicos e norte-americanos na ordem do mundo oceânico”.
Agora, o fator crucial parece ser a fragmentação do Atlanticismo. Diesen identifica três níveis: a separação de fato de Europa e EUA impulsionada pela ascensão dos chineses; as divisões internas na União Europeia, quase impossíveis de compreender, ampliadas no universo paralelo em que vivem os eurocratas de Bruxelas; e por fim, mas não menos importante, “a polarização entre os estados ocidentais” causada pelos excessos e desmandos do neoliberalismo.
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Vejam só! Bem quando parece que estamos fora, Mackinder e Spykman nos puxam de volta. A história é sempre a mesma: a obsessão anglo-norte-americana com impedir a ascensão de “concorrente” (ing. “peer competitor”, Brzezinski) na Eurásia, ou de uma aliança (Rússia-Alemanha na era Mackinder; hoje, a parceria estratégica Rússia-China) capaz, nas palavras de Diesen, de “arrancar à força o controle geoeconômico, deslocando as potências oceânicas”.
Enquanto estrategistas imperiais permanecerem como reféns de Spykman – autor da ‘lei’ segundo a qual os EUA têm de controlar a periferia marítima da Eurásia – definitivamente nenhum AUKUS/Quad mudará as coisas.
Poucos, no Oriente e no Ocidente, lembrarão que Washington desenvolveu seu próprio conceito de Rota da Seda, durante os anos Bill Clinton – adiante cooptado por Dick Cheney com uma pitada de Oleogasodutostão, e na sequência de volta para Hillary Clinton, anunciando seu pessoal sonho de ter uma Rota da Seda, na Índia, em 2011.
Diesen nos faz lembrar como Hillary soou impressionantemente parecida a uma proto-Xi: “Trabalhemos juntos para criar uma nova Rota da Seda. Não de via única como a homônima, mas uma rede internacional e uma rede de conexões econômicas e de trânsito. Significa construir mais linhas férreas, rodovias, infraestrutura de energia, como o oleoduto proposto, do Turcomenistão, pelo Afeganistão, até o Paquistão e a Índia.”
Hillary, pelo Oleogasodutostão! Bem… No fim, fez coisa alguma. A realidade impõe que a Rússia conecta hoje suas regiões europeia e do Pacífico, enquanto a China conecta sua costa leste desenvolvida à província de Xinjiang, e ambas conectam a Ásia Central. Diesen interpreta tudo isso como a Rússia “completando a própria conversão histórica, de império europeu/eslavo para estado civilizacional eurasiano.”
Assim, no final, estamos de volta… aos citas. O conceito prevalente de neo-Eurásia revive a mobilidade das civilizações nômades – graças a infraestrutura de transportes de alta qualidade – para conectar tudo entre Europa e Ásia. Pode-se chamar de a Vingança da Heartland: aquelas potências estão construindo essa nova Eurásia interconectada. Despeçam-se para sempre do efêmero momento unipolar dos EUA pós-Guerra Fria.
Publicado originalmente em Asia Times. Traduzido com autorização do autor por Vila Mandinga
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