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Ao contrário do Brasil, em Cuba não há fila para receber ossos de boi, diz jornalista e escritor Ramon de Castro

O cubano pode ainda se remeter muito ao tempo em que vivia com o apoio da União Soviética. Mas enquanto houver o fim do bloqueio, nada da situação de hoje vai mudar
Urariano Mota
Diálogos do Sul Global
Recife

Tradução:

Num momento que em toda grande mídia surgem jornalistas que falam dos protestos em Cuba como se fossem autoridades sobre a realidade cubana,  e com a cara mais limpa do mundo falam da ditadura em Cuba, eu procurei Ramon de Castro, que conhece o povo cubano em razão do seu trabalho e viagens à Ilha. 

Ramon de Castro é um jovem de 32 anos, um jornalista e escritor que escreveu o livro “Fui pra Cuba e conto como é”, neste 2021. Trata-se de um relato do cotidiano de Cuba e o avanço da sociedade cubana em meio à ascensão da extrema-direita no mundo.

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Nele, vemos um capítulo especial para mostrar o quanto Cuba evoluiu cientificamente nas últimas décadas a ponto de trabalhar para produzir 100 milhões de vacinas contra a Covid-19 para serem usadas pela população cubana, países pobres e turistas. 

Mas no livro não seria possível prever essas explosões de raiva nas ruas cubanas destes mais recentes dias. E com essas surpresas, ou quase surpresas saudadas como a luta pela democracia na imprensa do capital, fiz esta pequena entrevista com Ramon de Castro.  

Veja também:

Confira a entrevista:

Urariano Mota: “No domingo, 11 de julho, pela 1ªvez em mais de 60 anos, manifestantes gritaram “'liberdade” e “abaixo a ditadura”. Na sua experiência de visitante em duas oportunidades à Ilha, que publicou o livro “Fui pra cuba e conto como é”: o que houve?

Ramon de Castro: O que aconteceu nesses dias foi uma soma de fatores, Cuba ainda atravessa o período especial que começou nos anos 1990: o fim da União Soviética, o fim da parceria de Cuba com a União Soviética,  que a deixou sem a proteção contra o isolamento econômico imposto pelos Estados Unidos. E que continua, de modo mais dramático. Nas manifestações daquele domingo a maioria é de oportunistas.

Eu pesquisei e vi que nas 12 cidades onde ocorreram os protestos, teve uma bandeirinha que ficou lá em destaque, com a frase ‘Cuba decide’. Ela vem da Federação para a Democracia Pan-americana, que é presidida pela Rosa María Payá.

Essa presidenta possui encontros com as figuras da extrema-direita das Américas e Europa. Conversando com jornalistas cubanos, eles me disseram que Cuba está de fato passando dificuldade devido ao bloqueio norte-americano, acrescido pela pandemia, e que nem por isso o povo está passando fome, como acontece no Brasil, de filas para receber ossos de boi.

Então os protestos vêm ao encontro desses fatores: você tem a ONG Federação para a Democracia Pan-americana, que recebe apoios para a anexação de Cuba aos Estados Unidos, que sempre foi o objetivo do governo norte-americano. E que se somam às dificuldades econômicas de restrição ao turismo, e pandemia. 

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Segundo o escritor Leonardo Padura, em artigo publicado no Blog da Boitempo, os protestos foram: 

 “Um grito que também é fruto do desespero de uma sociedade que atravessa não só uma longa crise econômica e uma crise pontual de saúde, mas também uma crise de confiança e uma perda de expectativas…

O cubano pode ainda se remeter muito ao tempo em que vivia com o apoio da União Soviética. Mas enquanto houver o fim do bloqueio, nada da situação de hoje vai mudar

Assembleia Nacional de Cuba
Manifestação de apoio ao governo cubano diante do capitólio em Havana

A esse clamor desesperado, as autoridades cubanas não deveriam responder com os habituais lemas, repetidos há anos, e com as respostas que essas autoridades querem ouvir. Nem mesmo com explicações, por mais convincentes e necessárias que sejam…”. O que você acha?

Isso que o Padura fala, que é uma crise de confiança, perda de expectativas, vai muito ao encontro do acesso geral à internet. Isso que o Padura fala e o acesso à internet se encontram. Muita gente vive em Cuba e quer viver lá como se vivesse nos grandes países da Europa.

As pessoas não têm noção de que esses países são ricos porque exploram os países pobres. Para você ter uma ideia, só de miseráveis, do número de pessoas na linha da fome no Brasil, a nossa multidão de miseráveis não cabem em Cuba. A Ilha tem 11 milhões de pessoas, mas ninguém lá passa fome.

Então o cubano pode ainda se remeter muito ao tempo em que vivia com o apoio da União Soviética. Mas enquanto houver o fim do bloqueio, nada da situação de hoje vai mudar. O grande erro, me parece, foi quando Cuba fez acordo com o Google recentemente, mas acho que isso foi um grande cavalo de troia.

Na minha opinião, Cuba devia ter feito como a China e a Rússia fizeram. Criar mecanismos próprios e filtrar essas coisas que entram no país, que vive sob permanente ataque norte-americano.            

Segundo a BBC News, “A ilha manteve a pandemia sob controle nos primeiros meses de 2020, mas houve um recrudescimento de casos nas últimas semanas que a levou a estar entre os locais com mais casos registrados em relação à população na América Latina.” Isso é verdade?

É verdade que está havendo aumento de casos lá em Cuba, mas, ao mesmo tempo, a vacinação está avançando muito. Hoje, Cuba já tem mais de 2 milhões de pessoas vacinadas com as três doses, porque lá a vacina própria, feita em laboratório cubano, tem que ser em três doses.

Tem essa coisa também; Cuba está produzindo uma vacina que pode concorrer no mercado internacional. Cuba já prometeu que vai produzir 100 milhões de vacinas para comercializar com os países pobres. Com certeza, com um custo bem mais baixo que a Pfizer, Astrazeneca e afins. Mas isso de que está entre os países com mais casos da América Latina é mentira.

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O Brasil, se você comparar, proporcionalmente, os falecimentos do corona em Cuba com o Brasil, é complicado, impossível, não tem como o Brasil estar melhor que Cuba.   

A grande mídia fala que “O coronavírus teve um profundo impacto na vida econômica e social da ilha. O turismo, um dos motores da economia cubana, está praticamente paralisado. Além disso, há inflação crescente, apagões, escassez de alimentos, medicamentos e produtos básicos”. Então agora existe fome em Cuba?  

Para você ver como a mídia é contraditória. Mas é o que falei antes, quanto à escassez de alimentos, ninguém vai morrer de fome. A libreta continua a funcionar 100%. A Libreta é uma Caderneta de alimentação. Aqui, uma imagem dela:  

A quantidade de calorias que um cubano consome por dia é superior à quantidade de calorias consumidas por um brasileiro. Em média. Observe que a média cubana não é a soma de dois extremos dividida por 2.

No Brasil, somam-se o que tem comida estocada com o que nada tem. Em Cuba, a média está mais bem distribuída e os extremos são raros. Outra coisa: a renda per capita em Cuba em 2019 ultrapassou à do brasileiro. Está no IBGE. 

Da grande mídia: “o rap Pátria e vida se tornou a trilha sonora dos protestos. Obra dos rappers cubanos Maykel Osorbo e El Funky —que vivem na ilha— em conjunto com músicos exilados em Miami, como Gente de Zona, sua letra irreverente (“Não vamos mais gritar ‘Patria ou morte’, mas ‘Pátria e vida”) e um poderoso vídeo de lançamento em que se queima um desenho do herói cubano José Martí e um dólar (”Trocando Che Guevara e Martí pela moeda conversível, diz a canção)”. É uma nova Baía dos Porcos? Fale um pouco sobre isso, por favor. 

Provocação, porque às vezes em que estive lá, aprendi uma coisa: oposição em Cuba existe, mas essa oposição legítima atua nos parâmetros legais. Em eleições e candidaturas livres.

Agora, o que está havendo: vamos lembrar das Damas de Branco, que fizeram sucesso. A sua líder Yoani Sánchez, a grande blogueira, sumiu. Ela fez muito sucesso na imprensa internacional igual a essa galera que está fazendo sucesso agora.    

A educação popular em Cuba, para uma elevação da consciência socialista, falhou?

Eu acho que falhou um pouco no sentido de permitir a entrada de muita coisa de fora, sem discussão sobre o conteúdo. Então podem me acusar de que estou pedindo censura.  E eu respondo com a pergunta: é censura quando você impede uma mentira de chegar aos ouvidos da população?

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Então eu acho que Cuba precisa urgentemente sentar com os chineses e com os russos e buscar uma solução pra isso. Não sei, mas eu acho que é preciso uma segurança cibernética pra essa situação. Eu lançaria um desafio. Vamos fazer um desafio? Vamos acabar com o bloqueio. Durante quatro anos. E daqui a quatro anos a gente discute de novo, pra ver como é que vai estar Cuba. Vamos ver?”    

Fala-se agora nas redes de televisão e jornais que a canção dos protestos é este vídeo produzido fora da Ilha. Querem dar uma grandeza estética e ética a este clip como se ele tivesse a beleza de uma composição de Chico Buarque na derrubada da ditadura salazarista. Menos, muito bem menos, senhores e senhoras. Isto abaixo é uma propaganda mais que contra Cuba, na verdade, é puro anticomunismo.

 

Para os que seguem essa linha do vídeo, as opções estão claras: em lugar do imenso José Marti, em lugar de Fidel e Guevara, a opção é o capitalismo. Pátria e dólar. Ou melhor, se temos dólar, para que que desejamos pátria?

Urariano Mota, especial para Diálogos do Sul


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Urariano Mota Escritor e jornalista. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”.

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