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ToggleO Governo Federal e as Forças Armadas distribuíram 2,8 milhões de comprimidos de cloroquina produzidos pelos laboratórios do Exército e Marinha à população de todos os estados brasileiros, revelam documentos inéditos obtidos pela Agência Pública via Lei de Acesso à Informação.
A maior parte desses medicamentos, mais de 2,4 milhões, foi distribuída via Ministério da Saúde a secretarias de saúde de estados e municípios. O restante, cerca de 441 mil comprimidos, foi enviado pelas próprias Forças Armadas a hospitais militares, depósitos e postos de saúde ligados ao Exército, Marinha e Aeronáutica.
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De acordo com documentos enviados pelo próprio Exército, o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx) e o Laboratório Farmacêutico da Marinha (LFM) produziram ao todo 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina em 2020.
A quantidade foi 25 vezes a produção habitual por ano: o Exército respondeu à Pública que, antes da pandemia, o laboratório produzia “250 mil comprimidos a cada dois anos para o combate à malária”.
O Exército não informou o destino de 348 mil comprimidos produzidos em 2020, mas que não constam nos registros de envio ao Ministério da Saúde ou a unidades militares.
Segundo a Pública apurou, o Exército começou a fechar contratos de produção de cloroquina com dispensa de licitação já em março de 2020, quando o ministro da Saúde ainda era Luiz Henrique Mandetta — foi apenas em maio, após a saída do segundo ministro a ocupar o cargo durante a pandemia, Nelson Teich, que o governo publicou um novo protocolo orientando uso da cloroquina para tratamento de pessoas com sintomas leves de Covid-19.
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Três contratos sem licitação foram fechados no dia 20 de março para aquisição de cloroquina, e cinco no dia 23, para compra de insumos para produção do remédio.
No dia 31 de março, os contratos já davam resultado: 25 mil unidades de cloroquina produzida pelo Exército foram enviadas a dois estados brasileiros — 20 mil para São Paulo e 5 mil para o Distrito Federal. Ao todo, o Exército fechou mais de R$ 1,5 milhão em contratos sem licitação para produzir cloroquina ou comprar insumos entre março e maio de 2020.
12º Batalhão de Suprimento/Reprodução
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Produção “a jato” e distribuição “a conta gotas”
Toda a produção de cloroquina das Forças Armadas em 2020 aconteceu em três meses — março, maio e junho. A distribuição, contudo, aconteceu durante todo o ano, começando em março e seguindo até janeiro de 2021.
De acordo com os dados a que Pública teve acesso, o último envio foi registrado no dia 19 de janeiro, quando 25 mil unidades de cloroquina foram encaminhadas para um depósito da 12ª Região Militar do Exército. A região abrange os estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima.
Na época, o Amazonas enfrentava há dias o colapso no sistema de saúde, com pacientes morrendo por falta de oxigênio nos hospitais da capital Manaus.
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O próprio ministro da Saúde e general de divisão do Exército Brasileiro, Eduardo Pazuello, havia visitado a cidade e coordenado o envio de hidroxicloroquina e oseltamivir ao estado.
Governo enviou mais de meio milhão de cloroquina do Exército para o norte do país
O norte do país foi a região que mais recebeu cloroquina do Exército e Marinha em relação à sua população: 591 mil unidades do medicamento foram enviadas a secretarias de saúde estaduais e municipais dos estados da região.
Cerca de um quinto de toda a cloroquina enviada ao norte do Brasil foi parar no Acre, colocando o estado no topo dentre os que mais receberam cloroquina em relação à população em todo o país.
Foram mais de 100 mil comprimidos despachados à Secretaria de Saúde do estado. O primeiro envio aconteceu em abril, com 8 mil comprimidos, mas a maior parte, 94 mil unidades, foi enviada em julho.
Após o norte do país, o sul foi a região que mais recebeu cloroquina das Forças Armadas em relação à população. O sul também foi a região que mais recebeu cloroquina em números absolutos: mais de 652 mil unidades do medicamento foram enviadas entre abril de 2020 e janeiro de 2021. Mais de 76% desses comprimidos foram enviados ao Rio Grande do Sul — também o estado que mais recebeu cloroquina em número absoluto de todo o Brasil.
Dos dez municípios que mais receberam cloroquina proporcionalmente no país, cinco ficam no Rio Grande do Sul
Dos dez municípios que mais receberam cloroquina proporcionalmente no país, cinco ficam no Rio Grande do Sul: Silveira Martins, São João do Polêsine, Quevedos, Ivorá e Pinhal Grande, localizados na região central do Estado. São todos municípios pequenos: a população dos cinco, somada, está em torno dos 14 mil habitantes.
A Pública questionou o Exército sobre o motivo da produção e envio de cloroquina, que respondeu que “o LQFEx recebe demandas dos Ministérios da Saúde e da Defesa, por meio de Termos de Execução Descentralizada”. O Exército afirmou que não produziu cloroquina em 2021.
“O LQFEx recebe demandas dos Ministérios da Saúde e da Defesa, por meio de Termos de Execução Descentralizada”
A reportagem questionou também o Ministério da Saúde sobre os critérios de distribuição do medicamento, mas não obteve resposta. Através de um pedido de acesso à informação, o Ministério respondeu que a cloroquina, originalmente produzida para combate à malária, também foi distribuída para o enfrentamento da Covid-19 “quando solicitado pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde”.
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O governo reconheceu ter enviado cloroquina até agosto de 2020, mas informou que a partir de setembro os pedidos de envio do remédio por governos estaduais teriam caído.
Em Porto Seguro, 40 mil comprimidos de cloroquina chegaram após pedido no Instagram
Segundo a Pública apurou, em alguns casos o envio da cloroquina produzida pelas Forças Armadas ocorreu após os municípios pedirem o medicamento através de um formulário online no sistema do DataSUS, que não está mais disponível.
Esse processo foi confirmado pelas prefeituras de Vitória, capital do Espírito Santo, e de Ivorá e São João do Polêsine, no Rio Grande do Sul. Dados do Exército enviados à Pública apontam que Vitória recebeu 54 mil unidades de cloroquina.
De acordo com documento obtidos pela Fiquem Sabendo, agência de dados independente especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI), municípios também enviaram ofícios diretamente para o LQFex, solicitando cloroquina ou hidroxicloroquina.
O Exército, entretanto, afirma ter produzido em 2020 apenas cloroquina, e não hidroxicloroquina. Em resposta a pedido de informação da Pública, o Ministério da saúde informou que a hidroxicloroquina 400mg não é comprada de forma centralizada pelo ministério, mas sim pelas secretarias de saúde estaduais.
Já em Porto Seguro, o caminho da cloroquina foi diferente: o medicamento chegou à cidade depois de um pedido feito pelo Instagram por uma médica diretamente ao presidente Jair Bolsonaro. Segundo Kerrys Ruas, que era secretário de saúde da cidade em 2020, Porto Seguro recebeu do governo federal dois lotes de 40 mil comprimidos de cloroquina: o primeiro, em julho do ano passado; e o segundo, fabricado pelo Exército, em agosto.
Ruas afirmou que, em maio, a prefeitura, então comandada por Cláudia Oliveira (PSD), lançou um protocolo de tratamento farmacológico da Covid-19. O documento orientava o uso de hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina e vitamina C, entre outros medicamentos, mediante prescrição médica.
“Nós adotamos o protocolo, fizemos a nota técnica, mas tivemos dificuldade de encontrar a medicação”, explica. “Não se vendia com facilidade, não existia no mercado, as empresas distribuidoras de medicamentos que trabalhavam com o município não tinham disponível para fornecer – não sei por qual motivo.”
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Foi então que a médica Raíssa Soares – à época, integrante do Comitê de Operações de Emergência criado para enfrentar a pandemia em Porto Seguro – decidiu postar um apelo no Instagram para que Bolsonaro enviasse cloroquina ao município do sul da Bahia. “Já estou constrangida, presidente, de pedir aos empresários, de continuar pedindo doações, para eles manipularem a medicação, obterem a medicação. E a gente vê na mídia que o Exército está assim de remédio, que o Exército está lotado de hidroxicloroquina”, disse no vídeo, postado em 30 de junho.
Soares, que hoje é secretária de Saúde de Porto Seguro, ficou conhecida por defender publicamente em diversas ocasiões o uso da cloroquina para enfrentar o coronavírus. Ela integrou o grupo de médicos defensores do medicamento recebido por Bolsonaro em agosto de 2020 no Palácio do Planalto. “Ela fez o contato direto, sem nenhuma autorização nossa, gravou o vídeo para o presidente solicitando a cloroquina, e o vídeo chegou até ele”, relata Ruas.
Em 3 de julho, poucos dias depois do pedido virtual de Soares, o primeiro lote de 40 mil comprimidos chegou à cidade. Bolsonaro divulgou em suas redes sociais um segundo vídeo da médica agradecendo o envio.
Antes da cloroquina ser encaminhada a Porto Seguro, Ruas disse que recebeu apenas uma ligação de um representante do Governo Federal. “Recebi um telefonema justamente querendo pegar o endereço, perguntando se a gente tinha realmente necessidade, e eu disse que a gente não conseguia encontrar [a medicação] no mercado. Foi uma tratativa bem superficial”, narra. Ainda segundo o ex-secretário, o medicamento foi totalmente doado ao município, que, por sua vez, encaminhou gratuitamente parte da quantidade recebida a outras cidades da região.
Já o segundo lote de 40 mil comprimidos, este produzido pelo LQFex, foi enviado ao município em agosto. “Só soube depois de uns cinco dias que havia chegado”, indica Ruas. “Da primeira vez fui eu [que recebi] porque chegou na secretaria, teve aquela situação do presidente ter visto o vídeo da [atual] secretária. Já o segundo lote não teve tanta repercussão, chegou direto no almoxarifado central do município, da Secretaria de Saúde, e a farmacêutica recebeu.”
A Pública questionou o Ministério da Saúde sobre a fala de Ruas e o envio de cloroquina Porto Seguro, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem. Também solicitamos, sem sucesso, uma entrevista com a médica Raíssa Soares. Tampouco conseguimos posicionamento oficial da atual gestão na Prefeitura de Porto Seguro sobre o recebimento dos 40 mil comprimidos de cloroquina fabricados pelo laboratório do Exército.
Milhares de comprimidos de cloroquina das Forças Armadas “empacam” no estoque de cidades
Algumas das cidades que mais receberam a cloroquina fabricada pelas Forças Armadas comunicaram à Pública que os comprimidos praticamente não foram utilizados. É o caso de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, que afirmou ter recebido, via Ministério da Saúde, 59 mil comprimidos de cloroquina. A Prefeitura informou que 26,5 mil “foram remanejados para outros municípios”. Dos 32,5 mil que restaram, apenas 446 foram enviados para os postos e centros de saúde na cidade.
Outro exemplo é Bento Gonçalves, também no Rio Grande do Sul, que recebeu, em 2020, 27 mil unidades de cloroquina. De acordo com a secretária municipal de Saúde, Tatiane Misturini Fiorio, “até o momento não houve consumo”, por isso, a prefeitura doou 26 mil comprimidos e ficou apenas com mil em estoque.
Bento Gonçalves foi uma das cidades que, no ano passado, firmou um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Ministério Público Federal (MPF) para disponibilização de cloroquina na rede pública de saúde. Como mostrou a reportagem da Pública, a iniciativa para a assinatura do acordo partiu de um dos procuradores que atua no município, que procurou os prefeitos da região e iniciou as negociações.
O município gaúcho de Ivorá, com pouco menos de 2 mil habitantes, recebeu do Ministério da Saúde 500 comprimidos de cloroquina, mas não usou nenhum até o momento, segundo a farmacêutica da Prefeitura, Jessica Barbieri Schumacher. “Os medicamentos são sim disponibilizados, mas os médicos daqui estão seguindo protocolos que não incluem a cloroquina no tratamento da Covid, e não consideram o tratamento eficaz”, respondeu à reportagem por e-mail.
Produção e distribuição de cloroquina e atuação de Pazuello são investigadas pelo TCU
Segundo a reportagem apurou, atualmente, a produção, envio e recomendação de cloroquina pelo Governo Federal são alvo de três processos no Tribunal de Contas da União (TCU).
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Um deles investiga possíveis irregularidades relacionadas à compra de insumos para produção de cloroquina pelo Comando do Exército. Além de questionar o governo sobre as dispensas de licitação para produção desses medicamentos, o TCU perguntou sobre a distribuição da cloroquina, se ainda há estoque do remédio e se haverá produção em 2021. O Tribunal também investiga o destino de 2 milhões de comprimidos de cloroquina recebidos do governo dos Estados Unidos, à época comandado por Trump.
Após pedido de informação da Pública, o Ministério da Saúde confirmou o recebimento de hidroxicloroquina 200 mg dos EUA e da empresa Sandoz/Novartis e disse se tratar de uma doação.
Além desse processo, o TCU também investiga irregularidades cometidas pelo ministro Pazuello na gestão de recursos públicos e na recomendação do uso de hidroxicloroquina nas fases iniciais da covid-19 e sobre a denúncia que membros da força-tarefa do Ministério da Saúde fizeram pressão para que unidades de saúde em Manaus difundissem a utilização de medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina ou ivermectina no tratamento precoce dos pacientes com covid-19.
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À Pública o TCU informou que os processos, de relatoria do ministro Benjamin Zymler, ainda não foram apreciados pelo Tribunal.
Metodologia da análise de dados
– Foram obtidos, via Lei de Acesso à Informação, o Formulário de Rastreamento de Produto Terminado com informações referentes aos destinatários da cloroquina produzida por lote e a quantidade produzida e custo mensal de produção de cloroquina durante o exercício de 2020;
– Após a conversão do arquivo, os dados foram limpos e padronizados. Nomes como “Secretaria Municipal do Amazonas” se referem à capital do estado, portanto foram substituídos por “Secretaria Municipal da Capital do Amazonas”;
– As informações padronizadas foram separadas por cliente (bases militares, secretarias de saúde, hospitais, entre outros), UF e município do destinatário (no caso de secretarias municipais de saúde e prefeituras). – Os dados limpos podem ser conferidos aqui.
Anna Beatriz Anjos, Bianca Muniz, Bruno Fonseca, Larissa Fernandes, para a Agência Pública
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