Após o golpe perpetrado contra a presidente Dilma Rousseff (PT), em agosto de 2016, e o desastroso mandato presidencial de Michel Temer (PMDB, 2016-18), a elite brasileira, pela sua incompetência e falta de coragem para construir propostas e forjar lideranças capazes de encarnar um projeto de país, teve que assumir decididamente uma opção retrógrada (Jair Bolsonaro, do PSL), que ao fim e ao cabo pode se voltar contra seus próprios interesses, ao aprofundar ainda mais a divisão do país.
Sem projeto, sem inserção internacional inteligente que preserve interesses nacionais, sem reconstrução do Estado (muito pelo contrário!), sem apoio consistente à ciência e à pesquisa e inovação tecnologia, com a educação ladeira abaixo, o Brasil foi e vai ficando para trás irreversivelmente, comprometendo as futuras gerações. Observa-se o empobrecimento do país em todos os sentidos, sem resgate imaginável nos curto e médio prazos. Valoriza-se a mediocridade e a ignorância, no seu conservadorismo e crendices plasmados pelas igrejas evangélicas. O retrocesso bolsonarista alimenta o atraso, e é por sua vez por ele alimentado. O mais estarrecedor é que a elite – o vértice da pirâmide -, na falta de projeto e perspectiva civilizatória, colhe os frutos imediatistas (“depois de mim o dilúvio…”) de uma privatização geral e irresponsável, arruinando o patrimônio nacional edificado ao longo de boa parte do século XX.
Visualizamos, sem nenhuma pretensão profética, dois cenários possíveis nos próximos anos, a seguir sumariamente resenhados.
O primeiro deles é a continuidade e o aprofundamento do retrocesso atual (atual aqui, leia-se, o primeiro ano do governo Bolsonaro). Nesse caso teríamos, sob um liberalismo de fachada, dilapidação do patrimônio público com o incremento das privatizações, aumento da desigualdade e da riqueza da “nova elite” , uma simplificação tributária que melhora o custo Brasil sem resolver o tema da regressividade e da injustiça na distribuição da carga fiscal, entrada adicional de capital estrangeiro com as renovadas oportunidades de negócios – sobretudo no agro, nos serviços e no setor imobiliário – e de controle das riquezas minerais e energéticas. O mercado experimentará surtos dinâmicos e crises periódicas, muitas delas associadas a nova condição de dependência do país (escassez de divisas, desequilíbrios no balanço de pagamentos, fuga de capitais, apostas especulativas de diversas naturezas).
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Jair Bolsonaro
A população, em sua maioria, domada por doutrinações religiosas, circuitos de renda alternativos (inclusive ilegais), simulacros de programas distributivos e caritativos, aumento da violência policial, aprofundamento do fosso no capital cultural entre a fração mais pobre da população e os segmentos de classe média alta e do “andar superior” da riqueza, pelo acesso desses últimos a condições residenciais, serviços educacionais, de lazer, de saúde, entre outros, de que o conjunto do povo está irremediavelmente apartado. Alguns segmentos populares mais organizados e reivindicativos merecerão, por parte das autoridades constituídas, um tratamento mais duro, que mesclará uma boa dose de repressão com tentativas de cooptação e concessões tópicas. Em todos os casos, a divisão do país alcançará novos patamares. Espasmos de violência disruptiva eclodirão aqui e ali, descortinando cenários distópicos; mas é provável que as classes dominantes tenham capacidade reforçada de subjugá-los.
Importa dizer que esse quadro comporta variações que não alteram seu sentido fundamental. Penso em projetos de poder de segmentos da elite com os mesmos vícios imediatistas e excludentes, mas com uma aparência mais “moderna” e atualizada em face de algumas pautas sociais. Por exemplo, o projeto arrivista do governador de São Paulo, João Dória Júnior (PSDB). Mais do mesmo, senão até pior (se é que isso é concebível…). Em todos os casos, o Brasil se verá reduzido a mero coadjuvante na arena internacional, a margem das revoluções tecnológicas que alteram radicalmente o modo de vida e de trabalho em todo o mundo, e sem esperanças de um futuro melhor para o conjunto de sua gente pelo prazo previsível de algumas gerações.
O segundo cenário, que chamaríamos “nacional-democrático”, envolveria um conjunto de políticas e iniciativas já bastante debatidas, mas não menos urgentes, no campo tributário, produtivo, fiscal, participativo, agrário, urbano, ambiental, entre outros. Contudo, estão longe de serem consensuais. E falta, nesse cardápio de mudanças, um projeto abrangente e corajoso de reforma do Estado (indispensável!) e de política industrial. Além disso, aquelas propostas têm o defeito de circunscreverem-se ao espectro político dito progressista, tendo dificuldade para abranger segmentos mais conservadores, empresários industriais e novas camadas de empreendedores urbanos de diferentes faixas de renda, tocando negócios por conta própria ou nos chamados startups.
Em termos pragmáticos, seria uma agenda que um agrupamento político ou liderança de centro poderia encampar. Mas eles não existem nem dão sinais de aparição, pelas razões que já enunciamos ao longo dessas reflexões. E a esquerda encontra-se circunscrita por uma ação reativa, fragmentada, tolhida pela onda ideológica nacional e internacional adversa e pela incapacidade de pensar estrategicamente. Tudo isso pode mudar com certa rapidez, pelas reviravoltas inesperadas que a história propicia. Mas no momento em que essas linhas são escritas, não se visualiza essas forças de mudança com o impacto, a criatividade e o poder de aglutinação imprescindíveis para reverter os rumos das coisas. Resultado: o Brasil, enquanto povo e nação, torna-se extremamente vulnerável em face dos impactos inevitáveis, já sentidos, da Revolução 4.0 no mundo. Talvez esse seja a maior dano no longo prazo. E o “homem medíocre” nietzschiano celebra seu melancólico triunfo…
(*) Professor do Departamento de Economia da FEA – PUC-SP e colaborador do Diálogos do Sul.