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ToggleDe uma forma abrangente a série aborda pautas muito importantes relacionadas a vivência da mulher e o que é ser uma, no Brasil em meados da década de 50. Feminismo, violência e até o feminicídio são enfocados de forma explícita e direta no enredo da série, entretanto a abordagem ao racismo e as outras formas de opressão sofridas por diferentes grupos de mulheres não foram tratadas com a mesma urgência, o que soa o discurso um pouco vazio, artificial e preocupante.
A série conta com quatro mulheres que exercem os papais principais e entre elas há somente uma mulher negra: Adélia.
Adélia é uma mulher negra e se formos observar de uma forma crítica é possível perceber que o papel exercido por ela é o mais comum entre as pessoas negras: moradora do morro, tem uma filha pequena, de início é mãe solteira e trabalha como empregada doméstica. Efetivamente esse perfil condiz com a realidade de uma mulher negra da época.
Contudo é notório a forma como a voz de Adélia é silenciada durante a série e como ela estava sempre em degraus a baixo em relação aos outros personagens. Sempre obedecendo e agindo de maneira retraída, a personagem nunca se destacou de forma grandiosa como as outras personagens. Até aqui a gente precisa entender que a luta de uma mulher negra vai além das lutas por igualdade de gênero, pois além dessa precisamos lutar pela igualdade racial, o que torna o processo extremamente mais complexo e doloroso.
De uma forma muito clara a série apresenta a diferença do que é ser uma mulher branca que pertence a alta burguesia e uma mulher negra moradora do morro. As lutas são diferentes: enquanto Malu lutava por independência e uma vida livre do patriarcado, além desses, Adélia buscava igualdade racial, alfabetização e valorização enquanto uma mulher negra em uma sociedade machista e racista.
É nítido a forma como Adélia continua em posições subalternas quando conhece Malu, estabelece uma sociedade e coloca em andamento a ideia do Clube de músicas. Os serviços mais baixos são destinados à Adélia, enquanto Malu, por sua vez, é quem decide, resolve e vai atrás de todas as coisas.
Netflix | Reprodução
Steel da série "Coisa mais linda"
Problemas sem soluções
O grande problema é que em nenhum momento a série apresenta “soluções” para o racismo como faz com o machismo. Em todo o tempo a gente percebe que, ao se impor, as mulheres brancas ganham destaques na sociedade, enquanto a única mulher negra ~como personagem principal~ continua nas mesmas posições e sofrendo as mesmas opressões desde o início. Mesmo se tornando sócia e parceira de Malu, Adélia segue se submetendo a situações de humilhação e continua obedecendo às relações de poder de forma indireta como acontece na sociedade atual.
E pensando em um contexto atual e real, imagino que uma imensidão de mulheres negras tenha se identificado com o papel exercido por Pathy Dejesus (Adélia). Todos os dias somos silenciadas ou tidas como ignorantes e mal educadas quando reagimos ao racismo… Da mesma forma que ouvimos diariamente que precisamos ter calma, já que a estrutura social é racista e muitas pessoas não percebem que estão reproduzindo um comportamento ruim e prejudicial.
Ainda citando a sociedade atual, é perceptível as diferenças de raça e classe que permeiam entre as mulheres. Dificilmente vemos uma mulher ocupando lugares de poder e quando esse evento raríssimo acontece, mais difícil ainda que seja uma mulher negra nessa posição.
O que precisamos ter em mente para desconstruir é que a base do feminismo, em si, é seletiva desde sua primeira onda, pois nessa época as lutas eram em prol da garantia de direitos das mulheres da classe média, enquanto os direitos das mulheres negras e marginalizadas continuavam sendo negados com força. O feminismo atua de uma forma universal e excludente esquecendo que mesmo dentro do “coletivo mulheres” há também formas de opressão e dominância entre as mesmas.
Partindo dessa linha, a gente consegue entender que o movimento não pode tratar tudo como sendo algo universal, pois essa universalidade gera exclusão e seletividade quando trazemos à tona que mulheres brancas fazem parte de uma raça dominante e que, consequentemente, tem o poder de oprimir mulheres negras, indígenas ou mulheres pertencentes a outras raças minoritárias.
Para discutirmos a igualdade de gênero devemos pensar as diferenças raciais como uma estrutura que também mata pessoas diariamente, caso contrário todo discurso não passa de algo totalmente superficial e egoísta. Mas nunca, em momento algum, podemos negar ou diminuir uma luta, no entanto precisamos pensar mais criticamente a forma como o feminismo tem se estabilizado na sociedade e a forma como ele tem excluído – mesmo que indiretamente – as lutas raciais e de outras formas de opressão.
No mais, o enredo trouxe grandes reflexões a cerca da vivência da mulher em um Brasil pouco antigo, mas não ultrapassado. Já conquistamos muito, entretanto ainda não o suficiente para vivermos em justiça e paz. Vamos juntas e com uma luta mais heterogenia para que nenhuma de nós se sinta só!
Luana Caroline Rocha Silva | Portal Geledés
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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