Eram os melhores tempos, quando em casa se organizavam festas de que participavam seletos jornalistas e políticos. Era quando nos vestiam com as melhores roupas para não destoar entre os elegantes convidados antes de mandar-nos dormir.
Talvez eu tivesse apenas 4 ou 5 anos, mas recordo com absoluta clareza a experiência da atenção de alguns convidados que me levantavam em seus braços e com tom meio jocoso reclamavam a meu pai: “Vai reservar para mim, quando seja mais grandinha”, aproveitando para estampar-me um beijo úmido na bochecha. Assim também com os tios e o avô, que não duvidavam em fazer uso de sua autoridade familiar para sentar-nos nos seus joelhos e fazer esse mesmo tipo de comentário, mesmo contra a nossa vontade.
Revolvendo lembranças, aparecem outras de anos depois nas aulas de religião no colégio de meninas onde estudávamos minha irmã mais velha e eu. As aulas eram dadas por um sacerdote católico muito respeitado na comunidade, que se entretinha olhando as pernas de suas alunas; estas, conhecedoras dos costumes do professor, costumavam burlar-se abertamente de suas fraquezas. Ao reclamar desse comportamento para a direção do colégio, desapareceram como por encanto tanto o professor como as aulas de religião.
Isto demonstra que existe uma pedofilia de baixa intensidade como parte do comportamento social, que é considerada algo natural e inofensivo. No entanto, o fato de que eu recorde com prístina clareza esses episódios indica quanto impacto produzem em uma menina as atitudes sexuais dos adultos.
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Qual o impacto produz em uma menina as atitudes sexuais dos adultos?
Algumas pessoas poderiam acreditar que estas são experiências pouco comuns para a maioria. No entanto, na vida das meninas abunda essa classe de aproximações físicas como uma manifestação precoce de uma sexualidade que não corresponde à etapa de desenvolvimento infantil.
Nelas se põe em evidência o desequilíbrio de poderes, dado que uma menina em seus primeiro anos é incapaz de fazer valer sua vontade e o respeito pelo seu espaço pessoal. Esta última consideração passa inadvertida mesmo para os pais mais atentos ao cuidado de suas filhas, devido à visão patriarcal predominante em nossas sociedades.
Na mente de muitos adultos existe a ideia de que uma menina é um fruto em etapa de desenvolvimento e algum dia, não muito longínquo, virá o tempo de colhê-lo. Ou seja, é um ser supostamente para ser aproveitado por outros para seu desfrute pessoal. Não é apreciada como um ser completo, sujeito de direitos inalienáveis, nem como objeto de respeito por sua integridade física e psicológica.
Em outras palavras, desde a infância se produz um processo de alienação capaz de privá-la de um dos aspectos mais importantes para o desenvolvimento de um ser humano: a liberdade pessoal. Compreender este fenômeno pode abrir a porta para uma compreensão mais racional de como os estereótipos de gênero golpeiam de maneira brutal o desenvolvimento de um dos segmentos mais sensíveis da população.
O nascimento de uma menina costuma ser considerado um acontecimento de menor importância do que o de um menino. Desde então vai se impondo um marco cheio de restrições e valores elaborados para colocá-la em um degrau inferior da escala social.
A revisão profunda deste sistema é uma condição essencial para alcançar um equilíbrio justo na reestruturação de nossas comunidades, eliminando de maneira radical os comportamentos que causam danos profundos e duradouros na psique desse setor de vital importância para a cultura e o desenvolvimento da Humanidade.
*Carolina Vásquez Araya é colaboradora de Diálogos do Sul desde a cidade da Guatemala
**Tradução: Beatriz Cannabrava
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