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ToggleCom a decisão de fundar uma coalizão regional para promover direitos e maior participação em fóruns e decisões nacionais e internacionais, concluiu-se o I Encontro Latino-Americano e Caribenho de Entidades de Pessoas Afetadas pela Hanseníase, popularmente conhecida e estigmatizada como lepra.
A sessão final do encontro, no dia 14, aprovou 40 das 58 propostas apresentadas em três dias de debates pelos 111 participantes, na sede da Fundação Oswaldo Cruz, renomado centro de pesquisas científicas, médicas e epidemiológicas da cidade brasileira do Rio de Janeiro.
José Picanço, de 46 anos, separado de sua família e entregue recém-nascido a um orfanato porque seus pais foram diagnosticados com a doença em 1972, é uma das pessoas cujos direitos a uma reparação ainda não foram cumpridos, assim como de seus três irmãos.
Quando a família conseguiu se encontrar novamente, oito anos depois, o pai rejeitou os filhos. A mãe acolheu-os, mas morreu pouco depois. “Eu só vivi cinco meses com ela, uma santa”, lembrou Picanço, mal contendo as lágrimas durante seu depoimento no encontro.
“Humilhados como filhos de leprosos, sofrendo assédio escolar e sexual, muitos dos meus companheiros de orfanato entraram na droga, alcoolismo. Foi um holocausto”, disse Picanço. “Eu acertei meu irmão na cabeça, sem saber que ele era meu irmão”, lamentou.
“Das 15 mil a 20 mil crianças separadas de suas famílias, mais de 80% sofrem de depressão”, informou Picanço em entrevista à IPS, detalhando parte dos danos causados pela antiga regra de segregar os chamados leprosos.
O isolamento obrigatório foi generalizado no mundo, durante diferentes períodos históricos, e continua em alguns países, mesmo depois de se saber que a doença tem cura e deixa de ser contagiosa pouco depois de se iniciar o tratamento.
Oficialmente, o Brasil aboliu essa prática em 1976, mas de fato ela permaneceu por mais dez anos. Suas vítimas diretas foram compensadas a partir de 2007, mas não seus filhos. Estimular políticas de reparação para crianças separadas, propuseram os ativistas reunidos no Rio de Janeiro.
Suas reivindicações e propostas serão levadas em setembro ao Congresso Mundial das associações de pessoas afetadas, a ser realizado em Manila, nas Filipinas, que também vai acolher as contribuições da África e da Ásia, aprovadas em encontros semelhantes realizados anteriormente.
“O objetivo é formar uma grande rede de ativistas, para fortalecer o movimento” pela erradicação da doença e os cuidados para as pessoas afetadas, destacou Kiyomi Takahashi, da Fundação Nippon, que promove o processo internacional de debates e cooperação.
A reunião no Rio de Janeiro levou a um “diálogo de alto nível, resultado da longa história de atividades do Morhan e da Felehansen”, admitiu a especialista japonesa à IPS, referindo-se ao Movimento de Reintegração das Pessoas Afetadas pela Hanseníase, do Brasil, e a Federación de Entidades de Personas Afectadas por la Lepra, da Colômbia, os dois organizadores do encontro regional.
“O Morhan é meu porto seguro para propagar que crianças separadas devem ser ouvidas e ter oportunidades”, pontuou Picanço, lembrando que ingressou no movimento em 1992. Hoje ele dá palestras sobre os efeitos diretos e indiretos do estigma que ainda hoje a doença acarreta para os afetados e seus familiares.
IPS / Mario Osava
Participantes do I Encontro Latino-Americano e Caribenho de Entidades de Pessoas Afetadas pela Hanseníase
Uma benção
A doença “foi uma bênção para mim”, testemunhou à IPS Isaías Dussan Weck, vice-presidente da colombiana Felehansen, de 50 anos. O diagnóstico, em 2006, derrubou-o, contou. Ele perdeu o desejo de trabalhar ou sair, deixou falir seu negócio de fornecimento de produtos de limpeza, e até pensou em suicídio. Ele ignorou as manchas em seu corpo que não o impediam de trabalhar e viajar, até que se espalharam para o rosto, e ele notou partes insensíveis.
Foi tratado e curado, deixando apenas uma certa insensibilidade no braço e dores na perna esquerda. Mas tudo foi mal até que foi convidado para reuniões com outros pacientes ou portadores de sequelas. “Comecei a entender, ouvindo seus testemunhos e prantos, porque uma garota negra com deficiências severas disse que a lepra foi uma bênção para ela”, explicou Dussan.
O ativismo em benefício dos afetados, contra os estigmas e os danos causados pela doença, na associação do departamento de Huila, no sudoeste da Colômbia, permitiu a ele “ganhar novo sentido para a vida, conhecer e praticar o verdadeiro amor ao próximo”.
“Ajudar e ver melhorar a vida de um paciente é uma emoção maravilhosa, levar vontade de viver para outras pessoas”, concluiu. Essa nova paixão levou-o à Felehansen e a assumir funções de liderança na federação.
Uma experiência semelhante foi experimentada por sua compatriota Irma Romero, 42 anos, presidente da Fundação Nuevo Amanecer, de Barranquilla, na costa norte da Colômbia. Sua longa odisseia, até o diagnóstico de um especialista há cinco anos, revela a incapacidade do sistema médico de atender a chamada hanseníase, doença ainda encarada como “um castigo divino”.
Romero parou de trabalhar na indústria têxtil devido a uma deficiência e à depressão. “Eu nem podia andar”, lembrou. “Até reneguei a Deus”, confessou à IPS. Um tratamento com plantas medicinais, automedicação, a rejeição de familiares, tentativas de separá-la dos dois filhos e o abandono do marido compuseram seu martírio, que não terminou com o tratamento e a cura.
Fisicamente só restou insensibilidade nas mãos e nos pés, bem como dores no nervo ciático, mas a discriminação continuou. “Minha vida mudou ao entrar na associação das pessoas afetadas”, há quatro anos. “Lá encontrei afinidades, despertou-me um amor pelo meu próximo que não sentia antes”, disse a ativista, que chegou à presidência da fundação no ano seguinte e reconciliou-se com Deus.
Sua fundação possui 60 associados, com adesões e abandonos frequentes. Em Barranquilla, ela estima que há “cerca de 200 afetados, mas muitos mais ocultos”. Esta é uma das dez associações que compõem a Felehansen, das quais oito abordam a enfermidade como hanseníase ou doença de Hansen, uma fala lepra e outra deficientes, mas que de fato limita-se àqueles que têm diagnóstico tardio.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a lepra, como a denomina, como uma doença infecciosa e crônica, que “não é muito contagiosa” e “é transmitida por meio de gotículas nasais e orais durante contato próximo e frequente com casos não tratados”. Seus últimos registros indicam que, em 2017, houve 211.009 novos casos globais, segundo dados oficiais de 159 países. Isso corresponde a 0,3 casos por dez mil habitantes, o que o torna “eliminado”, segundo o critério da OMS.
Mudança de denominação, outra proposta
Propor a hanseníase como denominação oficial é uma das propostas do encontro latino-americano, liderado pelo Brasil que já a adotou, proibindo inclusive a menção a lepra no sistema de saúde desde 1995.
São conceitos diferentes, porque lepra e leproso têm conotações muito negativas, de “sujeira, praga, impurezas e punição divina”, reforçadas por numerosas menções com essa carga moral na Bíblia, argumentou Faustino Pinto, um dos coordenadores nacionais do Morhan.
Os colombianos, no entanto, não estão convencidos dessa mudança. “As pessoas só conhecem a lepra, não sabem o que é hanseníase. Para levar e explicar a questão para a população, é preciso dizer lepra”, argumentou Romero.
“Teremos que educar as novas gerações com o conceito de Hansen”, ressaltou o médico norueguês Gerhard Hansen, que descobriu o bacilo causador da doença, porque os adultos dificilmente esquecerão o estigma. “É mais difícil desaprender do que aprender”, opinou Dussan.
Outra proposta do Encontro é ampliar o atual Comitê de Assistência ao Imigrante Brasileiro Afetado pela Hanseníase a todos os latino-americanos e caribenhos, além de estendê-lo a outras regiões. A referência dessa questão é Evelyne Leandro, uma brasileira de 37 anos que vive na Alemanha há nove anos e teve muitas dificuldades para ser diagnosticada com a doença em um país onde é muito rara e quase não há médicos que a conhecem.
Ela foi ajudada pela suspeita da mãe, informada no Brasil por uma campanha de divulgação sobre a doença, e pela existência de institutos de medicina tropical na Alemanha. Seu caso e o de outros imigrantes na Europa estão relacionados em seu livro Hanseníase, a Luta Contra uma Doença há Muito Esquecida.
Mario Osava é diretor de IPS no Brasil e colaborador de Diálogos do Sul – Edição: Estrella Gutiérrez
Tradução: Beatriz Cannabrava