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Foto: Renan Olaz/Câmara do Rio
Não devemos esquecer o 10 de outubro de 1917, quando o industrial Delmiro Gouveia foi executado.
Por Ceci V. Juruá (*)
Os dicionários são objetivos quanto ao significado da palavra sicário — ASSASSINO PAGO. Mas convém agora resgatar seu histórico em nosso país.
Uma das primeiras aparições de um sicário no Brasil ocorreu há um século, em 10 de outubro de 1917, por ocasião da execução de Delmiro Gouveia, industrial brasileiro sobre cuja execução a crença popular assim se pronunciou:
… o pioneiro, fundador da nossa primeira e promissora fábrica de linhas, fora morto pelo truste internacional, que, se não assalariou, pelo menos favoreceu o seu atentado.
Na Enciclopédia dos Municipios Brasileiros , organizada pelo IBGE, no capitulo sobre a cidade de Delmiro Gouveia, lê-se a afirmação:
– que o seu fundador morreu barbaramente assassinado, vitima de interesses de trustes estrangeiros. Ficou sobejamente provado que a indústria nacional sofrera forte concorrência do grupo da Machine Cotton, encabeçado pela firma inglesa J.P. Coats & Co., subsidiária, inclusive, da Companhia Brasileira de Linhas para Coser, estabelecida em São Paulo. (idem, p. 194)[1]
Para entender o contexto de Delmiro Gouveia, devemos lembrar que no governo Campos Sales (1898-1902) tiveram lugar impactantes reformas institucionais em favor do livre comércio e da livre circulação de capitais, das quais decorreu a primeira onda republicana de modernização da economia brasileira. Foi então que se instalou no Brasil a Light & Power, com base em decisão tomada no Canadá por banqueiros e empresários estrangeiros (europeus e estadunidenses), conforme nos relatam alguns livros. Um dos mais recentes, é de autoria do professor Alexandre Macchione SAES “Conflitos do Capital. Light versus CBEE na formação do capitalismo brasileiro (1898-1927)”[2]. Sua leitura vale a pena, é quase obrigatória, pois é uma obra rica em circunstâncias contextuais e conjunturais.
Em seguida, a obra do canadense Duncan MCDOWALL, “Light, a história da empresa que modernizou o Brasil”, publicada no Rio de Janeiro pela Ediouro, em 2008, com tradução de Helena Maria Andrade do Nascimento. Neste livro personagens sombrios de nossa história, como Farqhuar, Mackenzie e Pearson, são vistos como aventureiros racionais, pelo autor da Apresentação do livro – MV Serra, Diretor executivo do Instituto Light.
Não seria demais aproveitar esta ocasião para enfatizar que a Light continua presente na economia brasileira, através de companhias associadas à sua matriz canadense, a Brazilian Traction. Um exemplo até há pouco tempo, foi a Brascan. Hoje temos a Brookfields.
Voltando a Delmiro Gouveia, foi após os governos de Campos Sales e de Rodrigo Alves, que ele decidiu organizar, com sucesso, uma fábrica de linhas e uma pequena usina hidrelétrica, com a água de Paulo Afonso. Tendo suas demandas parcialmente negadas por Dantas Barreto, governador de Pernambuco, Delmiro Gouveia concentrou-se na fábrica de novelos de fio (da qual sairia a linha de marca Estrela) e em uma hidrelétrica instalada com base na queda do Angiquinho no rio São Francisco. Em 1912, organizou a Companhia Agro-Fabril Mercantil, que importou os primeiros carretéis da Finlândia o algodão do Egito! Pouco depois este foi substituído pelo Seridó, algodão cearense.
A iniciativa industrial de Delmiro Gouveia foi muito bem sucedida financeiramente. Para algumas pessoas, sua obra criou uma “Manchester sertaneja do Norte”. Com mercados que extrapolaram os limites regionais, pois mantinha depósito nas principais cidades – Rio, Recife, Paraíba e Fortaleza – … [realizando] em 1916… as primeiras exportações feitas para a Argentina, Chile, Peru e outros países dos Andes[3].
Assim conta Magalhães Martins a ação dos sicários que executaram Delmiro Gouveia, há um século:
A cena do nefando crime foi rápida e brutal! [Delmiro] prepara-se para ler… senta-se na sua cadeira de vime, colocada entre outras no alpendre… São quase 21 horas. Três vultos vindos da pequena curva da linha férrea, em frente, se dirigem para as proximidades da casa… Da penumbra parte a descarga inesperada e certeira, ouvindo-se os tiros de rifle … um dos projetis atinge-lhe o braço, outro o coração e o terceiro se perde na amplidão. (Magalhães Martins, p. 175-176)
Nesta nova onda de modernização republicana, inaugurada em maio de 2016, assistimos hoje, como cidadãos e cidadãs absolutamente passivos e idiotizados, à volta da abjeta figura do sicário, paralelamente ao rápido desmonte e à inacreditável dilapidação do valioso patrimônio institucional e econômico construído pelos brasileiros e brasileiros a partir do governo de Getúlio Vargas. É no bojo desta malfadada modernização que voltam os sicários. Como exterminadores de uma mulher guerreira, defensora da nossa gente humilde e dos direitos humanos universais, a vereadora Marielle Franco.
Há suspeitas de que Marielle tenha sido executada por sicários. Talvez cumprindo ordens de inimigos históricos do povo brasileiro. Em tempo dado a feminicídios, onde corre solto o ódio a mulheres fortes, livres e competentes. Ódio que já se exprimiu em vaia pública a outra mulher brasileira, presidente da República, mulher não só forte, mas honesta e digna. É hora de resgatar nossa história e partir para a identificação dos inimigos do povo e do desenvolvimento do Brasil.
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[1] F.MAGALHAES MARTINS. Delmiro Gouveia, pioneiro e nacionalista. RJ: INL e Civilização Brasileira, 1979
(2ª edição, p. 193 e seguintes)
[2] Bauru/SP: EDUSC, 2010
[3] Idem, p. 131
*Ceci Juruá, economista e pesquisadora independente, mestre em desenvolvimento e planejamento econômico, doutora em políticas públicas, membro atual do Conselho Consultivo da CNTU e colaboradora de Diálogos do Sul