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Castillo conseguiu um voto de confiança ou de desconfiança para seu gabinete no Peru?

O que se discute é se daremos passagem ao esforço por iniciar a mudança social ou se esta ficará sepultada pelos que preferem o acomodo e o imobilismo
Gustavo Espinoza M.
Diálogos do Sul
Lima

Tradução:

O debate parlamentar em torno do voto de confiança para o gabinete de ministros de Pedro Castillo foi, de alguma maneira, como a deliciosa comédia de Shakespeare escrita em 1592. Ninguém sabia cabalmente onde estava a verdade. Um prometia o que não pensava fazer e os outros aceitavam o que não podiam acreditar. Ao final, todos se sentiam satisfeitos. Algo assim acaba de ocorrer no Palácio das Leis.

Héctor Vargas Haya, o antigo e honrado deputado aprista é, certamente, uma fonte inesgotável quando se trata de analisar o que se conhece com o pomposo nome de “hermenêutica parlamentar”, ou seja, um conjunto de procedimentos formais dos quais se vale a Poder Legislativo para exercer sua função deslizando-se entre as gotas da chuva sem se molhar. 

Dom Héctor — como bem merece que seja chamado — nos recorda que o bendito “voto de confiança”, que é outorgado ao Gabinete Ministerial, constitui realmente uma ficção. 

Foi uma invenção criada pela Constituição de 1979 como uma primitiva vingança proposta pelo Partido Popular Cristão (PPC), e oferecida como resposta às sucessivas interpelações de ministros populistas durante o primeiro governo de Fernando Belaunde, entre 1963 e 1968. 

Constitui uma ficção por uma razão elementar: o Presidente a recebe se contar com uma maioria parlamentar; e sempre lhe será negada se seus adversários somam um maior número de votos. Além de razões, o tema tem que ver com uma correlação de forças concreta, a que existe, ou a que é laboriosamente trabalhada em base a concessões e acordos, nem sempre santos. 

No caso que observamos — o Gabinete de Guido Bellido na Câmara — o assunto é claro; o governo carece de maioria parlamentar própria e a aceitação do Gabinete é supeditada não aos projetos que propõe, nem às ideias que sustenta, mas sim à boa vontade de bancadas que buscam “o seu” para colocar-se na proximidade da luz, não tão perto que queime, nem tão longe que não ilumine. 

Também acontece que “os partidos adversos” — aqueles que se opõem ao governo e que podem estar em maioria ou minoria, conforme o caso — agem impulsionados não por razões essenciais, mas sim por interesses. E atacam o Gabinete que assiste em uma busca de “confiança” para censurá-lo ou simplesmente para arrancar concessões.  

O que se discute é se daremos passagem ao esforço por iniciar a mudança social ou se esta ficará sepultada pelos que preferem o acomodo e o imobilismo

Presidência do Peru
O estilo aberto, combativo e resoluto do Presidente Castillo foi abrindo passagem e ganhando pontos da consciência cidadã.

É por isso que essa espécie de “voto de investidura” é um ritual, uma formalidade que, nestas circunstâncias, polariza o país e interessa a milhões. Habitualmente, trata-se de um evento que passa despercebido para o comum dos mortais, mas não é o que acontece agora.

Desde a noite de quarta-feira, 25 de agosto, milhares de peruanos sentiram-se chamados para expressar seu apoio ao Gabinete Bellido, ameaçado por uma oposição parlamentar variada que sustentava posições dubitativas. A Plaza Bolívar foi cenário de uma concentração cidadã que buscou abrir passagem em um ambiente confuso. 

Enquanto passaram as horas, a situação foi mudando. O estilo aberto, combativo e resoluto do Presidente Castillo foi abrindo passagem e ganhando pontos da consciência cidadã. 

Desse modo, já na quinta-feira (26), milhares de peruanos se mobilizaram com uma só bandeira: a demanda de uma confiança que seria trabalhosamente arrancada de uma maioria parlamentar certamente hostil. 

Quando o Primeiro-Ministro Guido Bellido saudou em quéchua os congressistas reunidos, os parlamentares da oposição lhe disseram a mesma frase que Francisco Pizarro dissera a Atahualpa há 500 anos: fale castelhano, pois não te entendo.

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Em diversos cenários — na Praça Dois de Maio, na Colmena, na Praça San Martin, no Parque Universitário, na Avenida Abancay e até na própria Praça Bolívar, centenas de milhares de peruanos expressaram uma inequívoca vontade de luta.  

Estar entre eles foi, certamente, uma maneira de perceber o sentimento solidário que hoje embarga multidões. 

As consignas foram muitas, mas todas partiram de uma mesma maneira de perceber a realidade. Objetivamente se fez carne na consciência de muitos a imperiosa necessidade de se unir e de combater por uma causa que interessa gradualmente aos peruanos. 

Mas é bom salientar que isto não ocorreu só na capital da República. Em boa parte do território nacional, e virtualmente em cada uma das cabeças das 24 regiões do país e em muitas outras províncias, viveu-se a mesma experiência. As pessoas mobilizadas, exigindo confiança para o Gabinete Bellido, mas por trás disso, demandando uma nova Constituição e uma nova política, um rumo distinto, uma realidade diferente. 

O que está em debate, então, não é pouco. Em boa conta o que se discute é se daremos passagem ao esforço por iniciar a mudança social, ou se esta ficará sepultada pela força combinada daqueles que preferem o acomodo e o imobilismo. 

A luta é entre o Peru que se levanta e uma oligarquia soberba e envilecida que busca dobrar a vontade de milhões usando para isso os recursos mais perversos. 

E no centro desse debate estão as massas, cuja capacidade de mobilização é sempre decisiva. Sua ação mostra caminhos e estimula a vitória. Nenhuma Comédia de Erros poderá desorientar a vontade cidadã. 

* Colaborador de Diálogos do Sul, de Lima, Peru.

** Tradução Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Gustavo Espinoza M. Jornalista e colaborador da Diálogos de Sul em Lima, Peru, é diretor da edição peruana da Resumen Latinoamericano e professor universitário de língua e literatura. Em sua trajetória de lutas, foi líder da Federação de Estudantes do Peru e da Confederação Geral do Trabalho do Peru. Escreveu “Mariátegui y nuestro tiempo” e “Memorias de un comunista peruano”, entre outras obras. Acompanhou e militou contra o golpe de Estado no Chile e a ditadura de Pinochet.

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