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Levante no Peru mostra que povo compreende protagonismo e identidade social

População perdeu o temor à repressão, lúcida da importância que possui para a economia e a política do país
Jorge Rendón Vásquez
Diálogos do Sul
Lima

Tradução:

De repente, em aparência subitamente, as multidões populares começaram a sair às ruas e caminhos em muitos lugares do Peru para protestar, como um movimento que se comunicava de um lugar a outro. A resposta dos titulares do governo foi tratar de pará-los a balaços e abateram mais de 60 pessoas. Mas as multidões não se acalmaram nem se acovardaram e, ao contrário, sem perder a serenidade continuaram seu protesto nas ruas, praças e caminhos e depois inumeráveis delegações delas embarcaram em veículos ou se deslocaram a pé pelas rodovias em direção a Lima. Uma vez na Capital, marcharam pelas ruas e avenidas até que foram contidas por milhares de policiais de choque e bombardeios com gases lacrimogêneos. Tal quantidade de policiais nas províncias e em Lima permitiu à cidadania ficar sabendo de que está cercada por um regime policial, como em um campo de concentração.

Nunca antes havia sucedido em nosso país um fenômeno social de tal magnitude, nem com tais características, longe da capacidade de organização dos partidos políticos e mais longe ainda das possibilidades de agitação dos inúmeros grupos e seitas pretensamente esquerdistas, inclusive se tivessem se unido. Só alguns de seus membros sensibilizados e até provavelmente surpreendidos se uniram a esses manifestantes. Este fenômeno social suscita duas perguntas: quais são suas causas e quais as causas da mortífera réplica dos titulares do governo.

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A primeira interrogação dá lugar a dois níveis de resposta: um imediato e outro profundo.

No nível imediato, as motivações dos protestos são políticas. As multidões populares protestam 1) contra a golpe de Estado parlamentar de 7 de dezembro que depôs o Presidente da República e o encarcerou, violando a Constituição e as leis, culminando numa campanha de fustigação desde antes que assumisse a presidência; 2) porque elas elegeram esse professor do primário, homem do povo, trabalhador e mestiço; 3) porque esse homem lhes havia conferido a dignidade de que, depois de duzentos anos de vida republicana, um dos seus chegasse à primeira magistratura da Nação; e 4) porque em sua mensagem de 7 de dezembro, reproduzindo o que eles queriam, havia dito que fecharia o Congresso da República, para eles um antro de folgados que recebem sem trabalhar, e que procederia a reorganizar o Ministério Público, o Poder Judicial e a Junta Nacional de Justiça.

No nível profundo, estes protestos multitudinários expressam: 1) o sentir e a vontade de vastos setores das classes trabalhadoras que começaram a compreender que têm direito a um tratamento econômico equitativo, a remunerações mais elevadas, a serviços públicos eficientes e oportunos e que seus filhos recebam uma melhor educação, posto que são elas as que criam a riqueza com seu trabalho; 2) que acabe de uma vez a discriminação contra elas por ter uma tez índia ou mestiça; e 3) que vão perdendo o temor à repressão e às balas. Em outros termos, nos homens e mulheres das classes trabalhadoras e camponesas, do artesanato, da pequena produção e do comércio, e nos estudantes e profissionais saídos desses grupos, vai surgindo a consciência de sua identidade social e de sua importância como força econômica e política e, com ela, a aptidão a assimilar a ideologia que os leve a outro espaço histórico do qual eles sejam uma força protagônica.

População perdeu o temor à repressão, lúcida da importância que possui para a economia e a política do país

Foto: Luis Javier Maguila (Reprodução Twitter)
Presença de Boluarte na Presidência é a causa imediata da atual crise política de nosso país

A segunda interrogação, o por que da repressão e das mortes, tem várias respostas: 1) O desprezo dos grupos brancos com poder econômico e seus auxiliares no governo pelas pessoas do povo (que é patente na frase “a esses “cholos” que protestam nas ruas há que mostrar-lhes quem manda”); 2) o medo às multidões populares (“são perigosas, sobretudo quando entendem”); e 3) o desejo obsessivo de corrigi-las (“para que nunca mais voltem a fazê-lo e já não lhes ocorre voltar a crer que todos os homens e mulheres são iguais perante a lei”). Por conseguinte, sem nenhum reparo legal, dispuseram que as forças policiais e do Exército saíssem para reprimir e disparar, sem contemplações.

Os policiais e soldados que executaram essas ordens não consideraram que a cidadania não lhes entregou as armas e lhes paga para que acabem com a vida dos manifestantes e com os direitos humanos, mas sim, ao contrário, para que os defendam. Essa repressão e essas mortes são inimagináveis nos bairros brancos de Lima (“a eles não se tocam nem com uma pétala de uma rosa”). 

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Recordemos que, em julho de 1949, o governo de fato de Manuel Odría expediu o decreto lei de “Segurança Interior da República”, pelo qual estabeleceu a pena de morte por terrorismo e que, embora nunca a tenha aplicado, seus esbirros mataram aproximadamente dez pessoas em operativos contra apristas (que não eram perigosos para eles) e comunistas (seus verdadeiros objetivos). Agora a pena de morte foi decretada, informalmente se diria, e foi aplicada a mais de 60 pessoas que saíram às ruas para protestar, dos quais a imprensa e certos locais policiais inconstitucionais disseram já, para justificá-las sem fundamento, que agiam movidos pelo terrorismo. Como parte do operativo repressivo do governo, os promotores acusaram mais de 600 pessoas detidas nas manifestações. Não seria raro que também denunciem aos que caíram pelas balas, os notifiquem e busquem onde estão agora. 

A senhora reitora da Universidade de San Marcos esteve também pensando que a pena de morte deveria ser aplicada aos estudantes congregados no campus universitário por atender aos manifestantes de províncias que haviam sido hospedados ali, quando pediu a intervenção da polícia para tirá-los? Felizmente, esses estudantes, intuindo o que poderia suceder-lhes se resistiam, se comportaram prudentemente. Mas igual, as forças policiais os humilharam desde que romperam uma porta com um carro de assalto, os fizeram deitar no chão, como aos reclusos das prisões de Lurigancho e El Fronton sob os governos de Alan García e Alberto Fujimori antes de matá-los, os algemaram e os conduziram a uma prisão local. Não foi só um erro. Se não houvesse, o que haveria sucedido? 

Enquanto isso, a senhora Presidenta, autora mediata das execuções das pessoas nas ruas, continua no Palácio, assistida pelos grupos golpistas do Congresso, de direita, centro e pretensa esquerda que derrubaram ilicitamente o presidente Castillo, com a intenção, ao que parece, de ficarem todos até julho de 2026. O artigo 115º da Constituição dispõe que por impedimento permanente do vice-presidente em exercício da presidência, assume suas funções o presidente do Congresso e convocar eleições imediatamente.

Esse impedimento se daria se a Presidente renunciasse. E assim se resolveria a crise política gerada pelo golpe de Estado do Congresso. Se não renunciar, teria que modificar-se a Constituição com 87 votos em duas legislaturas seguidas para chamar as eleições no prazo que queiram os congressistas. Mas tudo indica que essa maioria nunca poderia ser alcançada. A esses grupos é necessário, portanto, manter Dina Boluarte na presidência para ficarem.

Dina Boluarte foi eleita pelo voto dos eleitores dos departamentos que agora a rechaçam. Está, portanto, totalmente desautorizada. E sua presença na Presidência é a causa imediata da atual crise política de nosso país.

Jorge Rendón Vásquez | Colaborador da Diálogos do Sul em Lima, Peru.
Tradução: Beatriz Cannabrava.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Jorge Rendón Vásquez Doutor em Direito pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos e Docteur en Droit pela Université de Paris I (Sorbonne). É conhecido como autor de livros sobre Direito do Trabalho e Previdência Social. Desde 2003, retomou a antiga vocação literária, tendo publicado os livros “La calle nueva” (2004, 2007), “El cuello de la serpiente y otros relatos” (2005) e “La celebración y otros relatos” (2006).

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