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ToggleÉ meio-dia e o termômetro marca 41 graus neste remoto povoado colombiano, situado a poucos quilômetros da fronteira com a Venezuela e apontada pela ONU como o lugar do mundo onde mais se produz coca.
A esta hora, a ruidosa ebulição de sempre entre em pausa e o tempo parece deter-se no sopor de um calor extremo, espelho do clima de alta tensão que se vive aqui. Tibú é terra quente, dizem as estatísticas de sua violência e as notícias cotidianas. Seu prefeito, Nelson Leal, afirma que optou por não viver no município: “a governabilidade no povoado é impossível”, se queixa, enquanto evoca as ameaças que foram feitas a ele por grupos armados irregulares da região.
“O senhor prefeito pode governar, o que não pode é roubar”, lhe responde “Richard” uns dias depois, quando o La Jornada chega a seus domínios no Catatumbo profundo. “Richard” é um dos comandantes da frente 33 das dissidências das Farc e o Catatumbo é uma região mágica que desfruta todas as noites de sua própria explosão ininterrupta de luz, conhecida como o relâmpago do Catatumbo.
As paredes repletas de pinturas alusivas às Farc e ao ELN também gritam que Tibú é terra quente. Há um par de meses, o povoado foi notícia nacional quando se difundiram as imagens de guerrilheiros da frente 33 patrulhando suas ruas em plena luz do dia. Antes de terminar seu recorrido, os rebeldes se colocaram na frente da sede da prefeitura, um edifício de três andares que se eleva à margem da 5ª avenida, a só 500 metros da delegacia de polícia.
Os empresários da região também testemunham a quentura de Tibú: “Nos últimos 20 anos, nós, setores produtivos, sofremos os efeitos de uma guerra cruel que afetou 1.500 famílias cultivadoras de palma”, diz o dono de uma processadora que pede anonimato. A palma domina boa parte da paisagem da área rural do município. Caminhões carregados até o topo com as enormes “pinhas” que serão processadas para produzir azeite e combustível, circulam em fila indiana pelas deterioradas estradas da região em meio de reclamações de moradores: “Essa palma seca a terra, a deixa sem água”, asseguram com raiva os camponeses.
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Além da odiada palma, o norte oriente de Tibú faz divisa com uma sucessão de pequenas montanhas que fazem o papel de limite entre a Colômbia e a Venezuela. As estradas se tornam estreitas e a pobreza extrema se assoma ao outro lado da janela do veículo que nos transporta. Crianças famélicas jogam futebol com uma garrafa de plástico em frente a suas casas de madeira e teto de lata. As paredes de algumas moradias são de plástico negro. “Aí vivem famílias venezuelanas que acabam de migrar”, explica o chofer.
A coca
Misael nasceu em Tibú, se casou quando mal saia da adolescência e levou sua mulher a uma zona conhecida como O 25, onde levantou uma família de seis filhos, “cinco mulheres e um homem”. Começou “raspando” as folhas de coca na propriedade de um tio, “quando plantar a coquinha era o melhor negócio do mundo”, e com perseverança logrou comprar um terreno de 25 hectares. Os anos de “raspachín”, nome com que se denomina os jovens que recolhem a folha, o tornaram especialista na plantação e no processamento da planta. Aprendeu a converter a coca em pasta base de cocaína, um trabalho extenuante e daninho pelo contato direto com gasolina, ácido sulfúrico, éter, amoníaco e cimento.
Quase dez anos e muitas colheitas de coca depois, Misael era um camponês rico que pode enviar seus filhos a estudarem em Cúcuta; andava pelas estradas do 25 em uma caminhonete para todo terreno cujo esqueleto oxidado pelo sol se assoma em uma improvisada garagem ao lado de sua modesta, mas digna, moradia.
– Vivemos durante anos uma miragem, mas não me arrependo porque pelo menos hoje meus filhos são profissionais e ainda conservo a terrinha – diz esse camponês com um sorriso que delata saudades.
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Misael continua cultivando coca, mas é um entre mais de milhares de lavradores que se perguntam a que horas e por que os preços da pasta caíram com um castelo de cartas.
Transmito-lhe o que alguns especialistas me disseram: que a pandemia deixou gigantescas reservas de cocaína armazenadas e que ainda a demanda mundial não as consumiu. Que os antigos compradores temem entrar nos territórios, hoje dominados por novas forças irregulares. “Alguns intermediários foram despojados do dinheiro que levavam para pagar a pasta base e depois foram assassinados”, informo a Misael e agrego que os hábitos dos consumidores, especialmente nos Estados Unidos, estão mudando para drogas sintéticas mais baratas.
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Foto: Jpallares59/Wikimedia Commons
Em Tibú, nunca se apaga a esperança da paz, assim como não se apaga jamais o relâmpago do Catatumbo
Misael coça a cabeça e confessa que pensou em vender sua terra para ir com sua esposa a alguma cidade para abrir um pequeno negócio.
– O senhor não estaria interessado em comprar essa terrinha, jornalista? – me pergunta com picardia.
O repórter sem-terra encontra um par de dias depois um ex-cultivador de coca, agora guerrilheiro da frente 33 das dissidências das Farc. Seu nome de guerra é Albeiro e está “ranchando” (cozinhando) em um acampamento junto a cerca de 20 jovenzinhos que terão seu armamento em alguns dias, quando terminarem o curso militar de três meses que estão fazendo.
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– A última colheita me deixou 500 mil pesos (120 dólares) assim que decidi deixar a coca e vir para a guerrilha – diz Albeiro, que esclarece que na realidade está de regresso, pois já havia sido combatente antes da assinatura dos acordos de paz de 2016.
Aponta para a formação militar onde se empurram entre si os rapazes e diz que muitos deles eram “raspachines” há poucos meses. Uma evidência a mais de que a guerrilha e a coca sempre caminham de mãos dadas, comenta Albeiro.
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Daniel, um advogado que assessora as Farc, chega ao acampamento e se senta para conversar com “Richard” sobre as últimas notícias dos contatos com o governo para abrir uma mesa de diálogos. É impossível evadir o assunto dos cultivos de uso ilícito em uma negociação, mas – diz o jurista – há que fazê-lo de uma maneira criativa.
– Não há que acabar com os cultivos de coca, ao contrário, há que estimulá-los, mas não para produzir cocaína, e sim remédios – diz.
Se há diálogos de paz, este será um dos temas que se discutirá na mesa de conversações.
A guerrilha
O campo de reabilitação de dependentes químicos está rodeado de um mar de plantações de coca. Cerca de 100 jovens, mulheres e homens, vivem ali em alojamentos austeros, mas limpos e cômodos, onde descansam após extenuantes jornadas de trabalho.
Segundo “Richard”, o campo foi criado pelas Farc para atender o clamor de centenas de mães que viam seus filhos se precipitarem pelo abismo do “perico” (cocaína) e o bazuco, um pó residual do processamento da cocaína que se fuma compulsivamente.
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Ao lado do lugar se erige uma curiosa edificação de paredes altas, com uma chaminé enorme, onde se processa a cana-de-açúcar para convertê-la em rapadura: um trapiche. Enquanto trabalha sob os raios do sol implacável, uma mãe de três filhos conta que passava o dia fumando bazuco em sua casa e à noite cheirando cocaína em um prostíbulo, onde conseguia dinheiro para “pagar o vício”. Alta, morena e esbelta, seu rosto exibe os traços da dependência e suas olheiras profundas revelam todo o tempo que chorou por seus filhos.
– Estou há um mês e meio aqui e me sinto muito melhor, mas não quero ir embora, pois temo a recaída – confessa com um mirada diáfana que parece mais uma súplica de ajuda.
O comandante guerrilheiro presencia nossa conversa e comenta que a guerrilha está se ocupando do que deveria fazer o Estado. “Também construímos estradas e pontes, reflorestamos a região e dotamos as escolas para que as crianças possam estudar”, assevera “Richard”.
Em Tibú, nunca se apaga a esperança da paz, assim como não se apaga jamais o relâmpago do Catatumbo.
Jorge Enrique Botero | La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.
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