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Brasil x Nova Zelândia: uma mesma semana, cem lições urgentes sobre a pandemia

No mesmo fim de semana em que o Brasil registrou 100 mil mortes, a Nova Zelândia comemorou 100 dias sem um único caso de transmissão comunitária
Antônio Lima
Sul 21
Porto Alegre (RS)

Tradução:

No último final de semana, Brasil e Nova Zelândia alcançaram números emblemáticos em meio à pandemia global do novo coronavírus.

Nosso país alcançou no último sábado (08/08) a terrível marca histórica de 100 mil mortes (apenas entre as oficiais), no mesmo fim de semana em que a Nova Zelândia comemorou 100 dias sem um único caso de transmissão comunitária do vírus (e apenas 22 mortes desde o início da pandemia).

Por que tamanha diferença? E que lições imediatas podemos tirar de ambos os casos?

Não vamos, claro, enumerar aqui propriamente cem lições. Isso demandaria um livro. Mas podemos destacar alguns pontos que ainda podem diminuir o tamanho da tragédia brasileira, já incalculável, ao mesmo tempo em que apontar saídas mais estruturais para o futuro.

No mesmo fim de semana em que o Brasil registrou 100 mil mortes, a Nova Zelândia comemorou 100 dias sem um único caso de transmissão comunitária

Foto: Mauricio Vieira/Fotos Públicas
Na Nova Zelândia, o combate à pandemia se baseou na estratégia de isolar, testar e mapear

Um primeiro ponto a destacar: o Brasil tem, por sua formação histórica, a tendência a naturalizar este tipo de barbárie. Vivemos 400 anos de escravidão e genocídio negro e indígena. Convivemos com a miséria e desigualdade. Somos campeões mundiais de feminicídios, assassinatos de LGBTs, matamos mais jovens negros por ano do que guerras oficiais matam pelo mundo. E tudo isso precisa deixar de ser aceitável.

Já na Nova Zelândia, criou-se essa espécie de “intolerância ao horror”. Claro que não é um país perfeito. Mas eles não deixam mais passar batido esse tipo de coisa. Pois se o país se acostuma, um horror apenas virá após o outro.

Bom, mas vindo mais próximo à conjuntura recente, os dois países também têm governos nacionais muito diferentes.

Em 2017 Jacinda Ardern foi eleita primeira-ministra da Nova Zelândia, aos 37 anos, liderando uma coalizão de centro-esquerda. No Brasil, em 2018, elegeu-se Jair Bolsonaro, um miliciano, liderando um movimento de extrema-direita. Entretanto, mesmo a direita que governou a Nova Zelândia por 3 mandatos seguidos até 2017, jamais comungaria com o que está ocorrendo no Brasil hoje.

Porém, a maior lição que podemos tirar de ambas eleições é: na Nova Zelândia, a esquerda soube analisar a conjuntura com frieza. O até então líder do Partido Trabalhista, Andrew Little abriu mão de concorrer ao cargo de Premiê apenas dois meses antes das eleições ao constatar que Jacinda traria um novo ar e teria mais chances de vitória. E, na verdade, o governo só saiu da mão da direita porque a esquerda soube se unir e, inclusive, fechar acordo com o centro.

Já em 2020, quando o mundo começava a alertar-se para o início da pandemia, novamente posturas diferentes. No Brasil, Bolsonaro chamou o vírus de gripezinha, estimulou e participou de aglomerações, sempre menosprezando a gravidade da situação. Jacinda, por seu turno, desde o princípio levou tudo muito a sério. E os resultados estão hoje aí para demonstrar.

Detalhe importante: que não se justifique a diferença apenas pelo número populacional. O Brasil tem uma população 40 vezes maior. Mas caso as mesmas políticas tivessem sido aplicadas, o Brasil poderia ter perdido talvez mil vidas (o que já seria triste), mas não 100 mil. E a contar.

Pessoalmente, analiso que Bolsonaro e seu governo utilizam a pandemia de forma estratégica. Tudo me faz crer que, para eles, quanto mais confusão no país, melhor. Assim, ele consegue distrair a sociedade dos crimes que sua família e seu governo seguem cometendo. Como vimos pela filmagem da famosa reunião ministerial. E até mesmo seu impeachment acaba sendo adiado e adiado, em meio a tamanhas urgências.

Não à toa Bolsonaro sempre se manifestou publicamente contra o isolamento. Até uma criança sabe que não adiantaria deixar apenas os idosos em casa. A contaminação do vírus seria ainda muito maior se os estados e municípios tivessem seguido a visão do presidente.

Já na Nova Zelândia, o sucesso veio justamente pela política nacional. A tal ponto que a NZ levou 65 dias para controlar a pandemia, e já alcança 100 dias sem transmissões comunitárias. E se prepara inclusive para um eventual retorno de transmissões, quanto mais as atuais medidas forem sendo relaxadas. Mas devido ao controle rápido e forte inicial, hoje tal reconstrução econômica e planejamento são possíveis.

Ponto importante no tema reconstrução. No Brasil, Bolsonaro apenas defendia manter a economia como estava, mas com pessoas não-idosas se infectando livremente. Na Nova Zelândia, fez-se o sacrifício de restrições à economia durante mais de 2 meses. Mas o governo deu apoio imediato às empresas e aos trabalhadores, empregados e desempregados. E agora aponta um plano chamado de “reconstrução verde”, apostando na recuperação da economia a partir de geração de empregos e empresas voltadas aos temas de preservação ambiental e sustentabilidade.

Pesquisa recente da Massey University indica que 7 em cada 10 neozelandeses apoiam essa chamada “recuperação verde”.

Outra lição que ainda se pode tirar para o Brasil. Na Nova Zelândia, o combate à pandemia se baseou na estratégia de isolar, testar e mapear. Ou seja, sim, lockdown de verdade, mantendo aberto por alguns dias ou semanas apenas raros serviços essenciais, muda a curva. O tema dos testes merece um destaque particular.

Mas a partir deles, os governos nacional, estaduais e municipais puderam mapear as pessoas contaminadas, tratá-las, e sabendo onde estavam os números mais críticos, agir de forma pontual e resolutiva, inclusive avisando pessoas com as quais elas eventualmente tenham tido contato.

Os testes aí cumprem um papel determinante. Na Nova Zelândia, o sistema de testagem não foi perfeito. Mas se estimulou até mesmo pessoas sem sintomas a testarem. Os testes eram não apenas uma medida paliativa para quando as pessoas já chegavam mal aos hospitais. Foram usados como instrumento científico para se descobrir previamente inclusive onde o vírus estava escondido. Evitando que, no momento de reabertura gradual, a doença não se espalhasse sem controle.

Já o Brasil, por ser o 63º país em número de testes, se tornou o 2º em número de mortos e infectados. Mas os testes ainda podem ajudar a reverter a situação e salvar dezenas de milhares de vidas, se usados como medida de mapeamento e controle.

Por fim, antes que cheguemos mesmo a cem lições, uma última observação por ora. Agora, a única saída para o Brasil é a mesma da Nova Zelândia: unidade e ação coletiva, rápida e forte.

Infelizmente, essa unidade não é possível de contar nem com o presidente, e provavelmente com 20 ou 30% da população que ainda acredita nele. Mas se pelo menos os demais 70% tiverem de fato unidade de ação, e decisão de agir de forma rápida e forte, como foi na NZ, ainda muitas vidas podem ser salvas.

O isolamento ainda é necessário. As cidades com maiores números precisam sim de lockdown. E mais testagens precisam orientar as próximas decisões.

A ciência precisa guiar as próximas decisões. E se tivermos unidade para vencer esta curva ascendente do vírus, em seguida poderemos derrotar também o vírus Bolsonaro, caso esta unidade também seja mantida.

Antônio João Lima, Mestre em Sociologia pela UFRGS/BR e Pós-graduado pela SIT/NZ


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Antônio Lima

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