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Cannabrava | A Ucrânia é aqui: O neoliberalismo é tão ou mais devastador que as guerras

Em 10 anos, os brasileiros viram, sem expressar escândalo, o assassinato de 424.609 pessoas, um verdadeiro genocídio da população negra
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

O Brasil emplacou 662 mil mortes pela Covid-19 na semana passada. Quantos serão os mortos hoje? Na semana que passou, de 4 a 10 de abril, a média móvel de mortos por dia baixou um pouco, de 200 para 150. Gente, 200 mortos por dia não comove mais ninguém?

O cientista Miguel Nicolelis perplexo: estão subestimando esse vírus que, se não mata, causa grandes estragos. E são 30 mil novos infectados a cada dia pelas novas variantes do vírus. 3.100 mortos para cada milhão de habitantes coloca o Brasil em 14º lugar no ranking mundial.

Se no ápice, em abril de 2021, quando ultrapassou 3 mil mortos por dia, país não comovia, vão se comover agora que são 200 mortos por dia? A Ucrânia é aqui… lá não morrem 200 pessoas por dia.

De 2007 a 2017, “a sociedade brasileira testemunhou sem expressar escândalo o assassinato de 424.609 negros” revela indignada Eliane Brum em seu livro Brasil, construtor de ruínas: Um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago Editorial – 2019 pág 44).

Se fossem 400 mil judeus, seria um novo holocausto a escandalizar o mundo. Não estou subestimando o genocídio nazista, estou evidenciando a diferença de critérios na apreciação dos mortos. Um milhão de iraquianos mortos para o império se apoderar do petróleo foram ignorados pela mídia, para não dizer aplaudidos.

Nesse mesmo decênio, segundo o Monitor da Violência, parceria entre o Núcleo de Estudos da Violência da USP, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o G1, da Globo, foram assassinados no Brasil nada menos que 563.236 pessoas, média de 56,4 mil por ano.

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A partir de 2018, esses números foram reduzidos, mas ainda continuam inaceitáveis. No quadriênio 2018 a 2021, os assassinatos somaram 178.475, média anual de 44.619. O Recorde deu-se em 2017, 59.128 homicídios por violência.

País do machismo escravagista em que a cada onze minutos uma mulher é estuprada, onde a cada sete horas se consuma um feminicídio, ou seja, mulheres são assassinadas pelo único fato de ser mulher. 30% das mulheres já sofreram ameaça de morte.

Em 10 anos, os brasileiros viram, sem expressar escândalo, o assassinato de 424.609 pessoas, um verdadeiro genocídio da população negra

Agência Brasil Fotografias – Wikimedia Commons
Em 10 anos, foram assassinados no Brasil nada menos que 563.236 pessoas, média de 56,4 mil por ano




Ecocídio

Incêndios florestais, desmatamento, avanço sem controle da fronteira agrícola pelo agronegócio e a exploração mineral, garimpo ilegal, madeira ilegal, poluição dos mananciais. Morte dos rios a custa de um verdadeiro ecocídio e de um genocídio dos povos originários, das populações ribeirinhas, dos posseiros e do pequeno produtor agrícola. Tudo feito com beneplácito do governo de ocupação e conivência das forças armadas.

O desmatamento é crônico, começou com Pedro Álvares Cabral que, segundo a lenda, num dia 21 de abril, descobriu o Brasil. Mas com o governo de ocupação a destruição atingiu recordes inimagináveis. Surpreendente, tratando-se de um governo ocupado por militares, sendo as forças armadas constitucionalmente as guardiãs das riquezas nacionais e da soberania.

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Em 2017, o desmatamento alcançou a incrível cifra de 2.337 Km²; em 2018, primeiro ano do governo militar, subiu 5.375 Km². Apesar de ter sido um escândalo de repercussão mundial, em 2019 houve novo recorde, alcançando 6.200 Km².

Na comunidade internacional, houve quem pediu intervenção da ONU no país, pois as consequências climáticas do desmatamento afetam o mundo inteiro. Como se fosse nada e tivessem nascido para derrubar árvores, em 2020 superam os recordes anteriores atingindo 8.096 Km².

Não satisfeitos, em 2021 voltam a se superar e o desmatamento atinge uma extensão de 10.326 Km², uma área maior que o estado de Sergipe. Entramos em 2022 batendo novos recordes, com 941,34 Km² apenas no primeiro trimestre. A soma de 2018 a 2021 resulta em 30.033 Km² de floresta devastada.


Povos indígenas

O mesmo mapa da violência indica 2.074 assassinatos de indígenas entre 2009 e 2019. Em 2019, segundo relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), houve 256 casos de invasão de território para exploração ilegal dos recursos em 151 terras indígenas.

Note-se que a população total dos indígenas está em torno de 900 mil, espalhados em 23 estados. Em 2020 foram 182 assassinatos, 61% a mais que os 113 do ano anterior.

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O Inesc, Instituto de Estudos Socioeconômicos, faz um balanço do Orçamento da União de 2021, comparando com os dos três anos anteriores. Importante para se entender como funciona e como deixam de aplicar recursos nas coisas essenciais.

Dele sacamos alguns dados para essa análise. O informe completo pode ser visto aqui.


Apropriação do Orçamento pelo Centrão

Na prática, houve uma apropriação do Orçamento pelo Congresso, privilegiando os deputados do Centrão, a base civil de apoio ao governo dos militares, com objetivo claramente eleitoral. Querem reeleger os candidatos militares e assegurar maioria parlamentar para continuar despojando o país. 

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Desde 2017, as verbas destinadas aos órgãos criados para a proteção do ambiente e dos povos originários vêm sendo reduzidas a cada ano. A cada redução orçamentária, ocorre demissão de pessoal técnico que, somada à nomeação de incompetentes para os cargos de direção, contribui para o aumento da devastação das florestas e do genocídio indígena.

No Ibama, por exemplo, o déficit de servidores é de 2.311 e, no ICMBio, de 1.317. O que era a Sesai, para cuidar da saúde indígena, nas mãos de um coronel do exército deixou de funcionar.


Educação sucateada

Do Ministério da Educação, no quadriênio 2019-2021, foram contingenciados R$ 38 bilhões. Em outras palavras, tinha dinheiro no orçamento para educação, mas foi retirado e gasto em outra área. Do FNDE foram surrupiados R$ 18 bilhões.

O dinheiro desse fundo estava comprando ônibus escolares pelo dobro do preço, e servindo para alimentar um propinoduto armado por pastores evangélicos para liberar verbas da educação para os municípios. Esse esquema do MEC envolveu 2.480 municípios.

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As universidades federais, institutos e organismos de financiamento de pesquisa estão à míngua. Sofrem corpo discente e docente e perde o país, ficando na rabeira do desenvolvimento científico e exportando cérebros quando deveria importar.

Tomemos como exemplo a UFRJ, emblemática por ter sido a única por muito tempo: de um orçamento de R$ 4,1 bi em 2018, foi reduzindo, R$ 3,9 bi em 2019, R$ 3,6 bi em 2020 e R$ 3,3 bi em 2021..

Não há planejamento que suporte tal situação. Isso se repete nas 15 universidades federais. Professores sem aumento por décadas, às vezes sequer recebem o salário, mas estão mantendo as aulas e as pesquisas para não prejudicarem os alunos.


Fundo partidário e emendas parlamentares

Falta dinheiro para investimento em Educação e Saúde, onde se repete o esquema de roubalheira, obras de infraestrutura paralisadas, mas sobra dinheiro para a festança dos políticos, principalmente neste ano em que dispõem do fundo eleitoral e partidário de R$ 6 bilhões.

E mais, R$ 18 bilhões para emendas parlamentares e R$ 16,5 bi para o orçamento secreto. É bom esclarecer o que é esse orçamento secreto que o Bolsonaro disse que serve para acalmar os deputados.

Para as emendas parlamentares, foram designados, em 2019, R$ 12,9 bilhões, em 2020, R$ 35,1 bi e, em 2021, R$ 33,3 bi. É certo que nem tudo o que foi assinado foi efetivado, mas não por decoro, sim por falta de dinheiro.

Os deputados têm o privilégio de aprovar emendas ao Orçamento Geral da União. Essas emendas podem ser:

  • individual – o deputado aprova uma verba que será destinada para uma obra num município ou para favorecer um time de futebol;

  • de bancada – a bancada do boi, da bala ou da bíblia aprova uma emenda destinada a favorecer seu campo de interesse;

  • de comissão – a comissão de saúde, por exemplo, entende que é necessária verba suplementar para atender a uma emergência;

  • do relator – o relator do orçamento fica com uma parte do dinheiro para distribuir para o que ele quiser e sem ter que prestar contas a ninguém. Essa emenda, conhecida como Orçamento Secreto, foi de R$ 16,8 bilhões em 2021 e R$ 16,2 bilhões este ano.


Ouro saqueado

O ouro vem sendo sistematicamente saqueado, quando poderia ser lastro para uma moeda forte e reserva para contingência, como a para enfrentar uma pandemia. 49 toneladas de ouro foram saqueados ilegalmente nos dois primeiros anos do governo de ocupação. Se guardado pelo Tesouro Nacional esse ouro, cotado hoje em R$ 294,00 o grama, valeria R$ 14,4 bilhões.

Quem explora e saqueia o ouro legalmente são empresas canadenses que vendem o ouro para governos inteligentes que estão fazendo reservas de ouro para se livrarem do dólar volátil dos especuladores e da expansão da hegemonia imperial – leia-se Estados Unidos, imperialismo ianque.

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A República Federativa do Brasil está sendo saqueada, continuamente, desde a apropriação indevida dos recursos do orçamento, pagamento de propinas milionárias, passando de compras supervalorizadas a gastos inúteis com picanhas e viagras.

A palavra corrupção não aparece nas notícias sobre os descalabros do governo. Todos os dias, a imprensa reporta algum malfeito do governo, como se fosse a coisa mais natural do mundo, e escrevem editoriais indignados com a corrupção de Lula. Até quando?


Oficialização da Tortura

O decreto 9.831/19 extinguiu o Mecanismo Nacional de Prevenção e Controle da Tortura e demitiu os onze funcionários especializados encarregados de monitorar os diferentes órgãos do governo relacionados com segurança e defesa. Não só oficializou a tortura, como promove e homenageia torturadores e zomba dos que defendem os Direitos Humanos, consagrados na Constituição e em acordos internacionais.

Um estudo do Instituto Geni, da Universidade Federal Fluminense, sobre o acervo do Disque Denúncia, revela que 58,6% do território do Rio de Janeiro está controlado por milícias, envolvendo em torno de 2,1 milhões de pessoas, 33% da população. Essa situação se agravou depois da intervenção militar que foi comandada pelo general Braga Netto, que recentemente deixou o Ministério da Defesa para compor a chapa do continuísmo como vice do capitão Bolsonaro. 

Tal como o palhaço que ocupa o governo na Ucrânia, produto de uma farsa eleitoral propiciada pelos Estados Unidos, o arremedo de palhaço que ocupa o Planalto diz e repete quase todos os dias que ninguém o tirará do governo. Lá, o ucraniano tem o apoio da Otan; aqui, o brasileiro tem o apoio das tropas do Comando Sul dos Estados Unidos, que é quem comanda a Otan para tais rompantes.  

Com apoio da mídia, Bolsonaro mente para prejudicar a imagem de Lula. Diz que o ex-presidente, favorito nas pesquisas, é favorável ao aborto, tema sensível entre os cristãos. Na verdade, o que Lula disse, como qualquer bom cristão, é que o aborto é questão de saúde pública.


Judiciário e urnas eletrônicas

Desde que assumiu, Bolsonaro investe contra membros do Judiciário, desqualifica a urna eletrônica e diz que “o povo em armas jamais será escravizado, reagirá a qualquer ditador de plantão que queira roubar a liberdade de seu povo”. 

Um discurso roubado da Venezuela, onde as forças armadas e o povo armado defendem a pátria soberana. Que povo é esse? Está ameaçando com as milícias urbanas, com os bandos armados a serviço do latifúndio, com os grupos fascistas e nazistas que estão se armando para perpetuar a dependência ao império.

Qual o significado do discurso? Tal como planejado, eles estão fazendo a lição de casa para ganhar a eleição e poderem dizer-se legitimados pelo voto. Como eles não admitem derrota, é uma guerra sem volta, estão avisando que não pretendem entregar o poder caso percam a eleição. 

O que nós temos para contrapor? Só o povo organizado, só os trabalhadores organizados e com consciência de que a luta é de libertação nacional, salvam o país da barbárie fascista. Colônia, Não! Fora ao imperialismo ianque. Para ser independente e soberano, é preciso deixar de ser colônia dos Estados Unidos.

Paulo Cannabrava Filho é jornalista e editor da Diálogos do Sul.


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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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