Ao redor do mundo meninas e mulheres sofrem abusos e discriminação simplesmente por serem meninas e mulheres. a elas têm, sistematicamente, negados o seu acesso a direitos e participação nas decisões que afetam sua vida e de sua família, comunidade, estado, país.
A vivência de violações aumenta quando as questões de gênero são aliadas às de raça, classe social orientação sexual, deficiência e segundo dados do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) meninas e meninos com deficiência têm 3,7 mais possibilidades de sofrer violência do que as crianças sem deficiência, e adolescentes, e jovens LGBTQIA+ vivenciam um profundo processo de discriminação relacionado a sua orientação sexual.
Na última semana, acompanhamos o caso da menina de 10 anos, grávida e abusada pelo tio no Espírito Santo. Um exemplo, infelizmente, da vivência de violações que meninas e mulheres passam todos os dias. Não abrir espaço para o debate e a implementação da educação sexual é colaborar para a manutenção da cultura da violência contra meninas e mulheres.
Para entender o contexto acima é preciso ter em mente que, na sociedade em que se vive, as pessoas são valorizadas de forma diferente, dependendo de sua identidade e dos grupos sociais aos quais estão associadas.
Nesse contexto, gênero e idade afetam drasticamente a forma como as pessoas são valorizadas e a posição social das pessoas em sociedade. São esses fatores determinantes para promover ou interditar o acesso a direitos, em que meninas e mulheres enfrentam barreiras, são menos valorizadas e têm menos poder do que meninos e homens.
A percepção de que a desigualdade de gênero agrava todas as outras formas de exclusão é recente no âmbito da promoção de direitos de crianças e adolescentes. Legalmente, essa questão chega às normativas relativas aos direitos de mulheres somente na Plataforma de Beijing (Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher – Pequim, 1995) e, ainda, de maneira discreta.
Nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio não havia a compreensão de um recorte geracional e de gênero que possibilitasse a visibilidade das temáticas relacionadas às meninas. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – agenda a ser implementada até 2030, e composta por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e 169 metas – foram elaborados com bases estabelecidas pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) de maneira a completar esse trabalho e responder a novos desafios para os seguintes 15 anos.
Divulgação/Anistia Internacional
Estima-se que todos os anos, 12 milhões de meninas ne casam antes de 18 anos
O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5 (Promover a igualdade de gênero e empoderar todas as meninas e mulheres) aborda, especificamente, as questões de gênero e estabelece a meta de: “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas” como um objetivo essencial para o desenvolvimento sustentável da espécie humana.
Ou seja, explicita que embora homens e mulheres, meninos e meninas tenham os mesmos direitos, na prática não os acessam da mesma forma, uma vez que meninas e mulheres estão em desvantagem; e ter um objetivo com foco nesse contexto, possibilita atuar sobre as causas estruturais da desigualdade de gênero.
Dentre as mais perversas formas de violência praticada contra meninas no contexto brasileiro, está o casamento infantil. Casamento infantil é toda união formal ou informal na qual pelo menos uma pessoa tem menos de 18 anos de idade. Utiliza-se a nomenclatura “infantil” porque a definição do fenômeno acompanha as normativas internacionais que define, a partir da Convenção sobre os direitos de crianças e adolescentes, que criança é todo ser humano abaixo de 18 anos de idade.
No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é a expressão brasileira da Convenção, e estabelece que abaixo de 18 anos seres humanos não são pessoas adultas, mas faz a divisão entre crianças (até 11 anos 11 meses e 29 dias) e adolescentes (até 17 anos 11 meses e 29 dias).
O casamento infantil é um fenômeno global, de acordo com Girls Not Brides, estima-se que todos os anos, 12 milhões de meninas se casam antes de 18 anos, isso significa dizer que 1 em cada 5 meninas se casa antes dos 18 anos.
Talvez as pessoas tenham alguma referência de casamento infantil, ao lembrar das terríveis imagens de casamento que circulam na internet na qual uma noiva-criança, está vestida como uma mulher adulta e, muitas vezes, chorando ao vivenciar o ritual da cerimônia de casamento.
Meninas que são vendidas por sua família a homens muito mais velhos, que tentam fugir do casamento e, recapturadas, são entregues a esse momento. Essas imagens são verdadeiras. Evocam dor, sofrimento, mas ao mesmo tempo produzem a incapacidade de identificar o fenômeno na América Latina. Por isso precisamos, ainda, de muitos esforços adicionais para enfrentar o problema na América Latina e, especificamente, no Brasil.
Diferente de outras regiões e países, na América Latina ainda paira uma grande falta de percepção do fenômeno. O estudo da Plan Interational Brasil: “Tirando o Véu-Casamento Infantil no Brasil” (2019) chama atenção para esse fato.
Entrevistas realizadas nos âmbitos legislativo, executivo, judiciário e das organizações da sociedade civil, sempre são marcadas pela inicial completa surpresa diante do tema: Casamento infantil? No Brasil? Isso é grave.
O Brasil é o quarto país, em número absoluto de casamentos infantis, está entre os 5 países com número mais alto de casamentos infantis na América Latina.
O IV Relatório Luz da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável no Brasil, elaborado pelo do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil (GTSC2030) sobre a Agenda 2030 aponta em 2019 que 36% da população feminina do país se casou antes dos 18 anos de idade e ainda assim, ninguém sabia disso.
Durante muito tempo, a minha compreensão foi de que a sociedade brasileira não percebia o casamento infantil, hoje, após anos de estudo, estou convencida de que sim, a sociedade brasileira o percebe, apenas não percebe como um problema.
A maneira como a sociedade pensa e conforma as identidades de meninas e mulheres e de meninos e homens é a partir a imposição (muitas vezes pelo uso da força) de normas estereotipadas de gênero, num processo que vítima muito mais as meninas e as mulheres na maioria das sociedades.
Dessa maneira, práticas sociais violentas passam a ser naturalizadas, não coibidas e não-judicializadas. A violência sexual continua sendo naturalizada como desejo masculino e culpa feminina e, nesse sentido, também se produz uma naturalização em torno da ideia do casamento, aqui entendida como um elemento natural da vida de mulheres.
O útero e o casamento como destinos inexoráveis. E nessa sociedade o que são meninas, senão as mulheres no começo de suas vidas? São entendidas como mulheres em miniatura, portanto, não é um problema impor as mesmas aquilo que se impõe as mulheres. Casamento é coisa de mulher. Meninas são quase mulheres.
No Brasil, a média de idade de meninas ao casar é de 15 anos de idade, no entanto, dados da pesquisa Ela Vai no Meu Barco, do Instituto ProMundo (2013) e da pesquisa Tirando o véu (2019) apontam que muito antes disso, milhares de meninas se casam no Brasil, a média de diferença de idade entre meninas e seus cônjuges é de 9 anos.
Uma vez mais, as pesquisas apontam que não é incomum encontrar diferenças superiores a 15, 20 anos de idade. As meninas são em sua maioria pobres, vivem tanto em contextos urbanos quanto em contextos rurais. Muitas em lares marcados pela violência doméstica, frequentemente impedidas de vivenciar seu direito a convivência comunitária: sair com amigas, se divertir em atividades sociais na vizinhança.
A grande maioria praticante de religiões cristãs e quase todas sem perspectivas maiores de realização futura: o casamento era no seu contexto sua melhor opção de realização.
Diferente do que se passa nos vídeos de casamentos infantis na Ásia, aqui no Brasil as meninas “desejam casar”, querem casar para fugir da violência doméstica em suas casas, porque não aguentam mais a fome, porque querem iniciar sua vida sexual.
Questionamos a agência das meninas, acredito que não podemos falar de decisão: quando uma escolha se dá diante de um repertório limitado de possibilidades não se pode considerar essa, como uma escolha válida. Elas escolheram dentre o quê?
O tabu em torno da virgindade é uma das mais frequentes causas para o casamento de adolescentes. Famílias optam pelo casamento como forma de controle da sexualidade de meninas adolescentes, muitas vezes pressionadas por dogmas religiosos.
Muitas adolescentes se casam quando se torna público o fato de que estão mantendo relações sexuais, ainda que famílias não desejem casar suas filhas, temem as represálias das comunidades religiosas das quais fazem parte (Tirando o véu).
A gravidez é causa e consequência imediata do casamento infantil, e grande parte das meninas não desejavam engravidar após o casamento. De acordo com o Documentário Casamento Infantil, produzido pela Plan International Brasil (2018), as meninas relatam que pensavam que, a partir do casamento, elas iam poder vivenciar sua liberdade, poder interagir mais com suas amigas e amigos, no entanto, constata-se que a gravidez muitas vezes é a estratégia de controle mais utilizada pelos homens adultos que se casam com meninas.
Uma maneira de mantê-las em casa, mantê-las ocupadas. Muitas dessas meninas estavam estudando quando casaram, mas a gravidez passa a ser a imediata razão para sua saída da escola: agora devem preparar-se para a chegada do bebê. A gravidez num número significativo de casamentos infantis deve ser entendida como decorrente de estupro de vulneráveis: Meninas menores de 13 anos grávidas de homens adultos.
Essas gravidezes seguem seu curso na maioria das vezes, sem que se questione a violência sexual, sem que se questione todos os riscos inerentes a uma gravidez nessa faixa etária. Riscos para as mães, riscos para os bebês.
No casamento, as meninas são expostas a uma realidade de árdua rotina de trabalho doméstico: agora são responsáveis pelo cuidado da casa, inclusive a realização dos trabalhos domésticos é, frequentemente, a causa de brigas e agressões por parte dos maridos. Eles entendem que as meninas precisam de correção para que possam realizar esse trabalho de maneira mais apurada, elas, oriundas de lares já marcados pela violência doméstica, não entendem que isso é um problema. Acreditam que é natural, que eles se impacientem e que é sua culpa não saber fazer o trabalho como eles desejam.
Em muitos casos, meninas são expostas a situações análogas a cárcere privado, impedidas de manter contato com a própria família, trancadas dentro de casa, com a única demanda de fazer o trabalho doméstico e atender aos desejos do marido. Não têm controle sobre as gestações porque são impedidas por esse companheiro de utilizar métodos contraceptivos e dificilmente retornam à escola, mas ainda assim, ninguém sabe disso.
O casamento infantil não é um fenômeno invisível, ele apenas não é reconhecido pela sociedade brasileira como um problema. Ao se pensar a vida de meninas, pobres, frequentemente, se utiliza a lógica do “pelo menos”: pelo menos agora elas têm o que comer, pelo menos agora elas têm casa, pelo menos agora elas não estão transando com qualquer um….
Eliminar o casamento infantil é uma das metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5, no Brasil, das 85 metas do eixo social da Agenda ODS, apenas 4 estão em progresso e, infelizmente, eliminar o casamento infantil e a gravidez na adolescência não são essas metas, estão estagnadas e em retrocesso respectivamente.
As consequências do casamento infantil se estendem por gerações. As meninas enfrentam sérios agravos a saúde e o risco de morte ao casar e engravidar: a gravidez na adolescência é entendida como uma das causas da mortalidade materna. A gravidez antes dos 13 anos por si já é decorrência de estupro e, no entanto, as Estatísticas do Registro Civil do IBGE registram casamentos formais de meninas menores de 13 anos de idade.
É preciso combater a cultura do estupro. É preciso ampliar o debate em torno da naturalização do estupro de vulneráveis e gravidez na infância.
As meninas param de estudar e não desenvolvem plenamente seus potenciais, muitas vezes abandonadas por esses maridos, ou viúvas – realidade frequente daquelas que se casam com homens adultos no contexto do tráfico de drogas.
Não lhes resta outra alternativa senão casar-se mais uma vez e mais uma vez engravidar, para que esse homem possa sustentar a seus outros filhos ele precisa que ela tenha um filho dele. Assim, ficam presas numa espiral de violência e dor.
Abrir o debate sobre o casamento infantil, suas causas e consequências é essencial para que mais nenhuma menina seja deixada para trás, é impossível avançar se 1 em cada 5 meninas se casa antes dos 18 anos, a maioria no Brasil na faixa etária dos 15.
Precisamos disputar uma nova designação desse fenômeno na América Latina. Plan International, junto a outras organizações como Girls Not Brides, sugere os termos “Casamentos Infantis ou Uniões Informais” pois no Brasil e em América Latina as uniões são em sua maioria informais.
É urgente que se promovam políticas públicas para adolescência e juventude, que lhes permita desenvolver plenamente seu potencial e ter certeza que no futuro existem ouras possibilidades de mobilidade social para que não desejem casar.
Implementar a Lei Maria da Penha e coibir a violência doméstica, aprimorar os programas de transferência de renda e combate a pobreza, para que não sejam a pobreza e a violência o que definam o rumo da vida das meninas.
Discutir e validar os direitos sexuais de meninas, implementar a educação integral para a sexualidade são essenciais para que a vivência da sexualidade de forma segura, responsável baseada em informação e não em curiosidade, para que as meninas reconheçam situações abusivas que violam seu consentimento.
Também é necessário levar em conta a realidade de meninas que se encontram casadas agora, bem como de mulheres que se casaram ainda enquanto meninas. O estudo Tirando o Véu (2019) na escuta de mulheres adultas que se casaram ainda meninas, revela que para todas elas, o casamento não é um caminho que escolheriam para suas filhas.
A maioria, arrepende-se do casamento e gostaria de ter podido estudar, ter uma carreira. Dessa maneira fortalecer os programas socioassistenciais e de educação de modo a considerar adolescentes grávidas dentre público prioritário é essencial para oferecer a cada uma dessas meninas e mulheres novos caminhos dessa vez alicerçados em direitos e essa é a sugestão do estudo do Banco Mundial, Fechando a Brecha, melhorando as leis de proteção à mulher contra a violência, 2017.
É impossível avançar quando metade da humanidade fica para trás, um desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades da geração atual, sem pôr em risco a capacidade de atender às necessidades das gerações futuras. Quando uma em cada 5 meninas se casa antes dos 18 anos, não existe desenvolvimento sustentável nem no presente nem no futuro.
Viviana Santiago é gerente de Gênero e Incidência Política da Organização Plan International Brasil, coordenadora da Rede Meninas e Igualdade de Gênero (RMIG) e colunista do Portal Lunetas.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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