“Acompanhando as primeiras exumações dos cemitérios clandestinos guatemaltecos no começo dos anos 90, tomamos a decisão de tornar conhecidos os mais de 600 massacres promovidos pela ditadura militar com o apoio de assessores a armas dos Estados Unidos e de Israel. Uma repressão horrorosa que, entre 1960 e 1996, provocou mais de 200 mil mortes e 45 mil desaparecidos, entre eles cinco mil crianças. De lá para cá, já são mais de uma centena de documentários para resgatar a memória, a verdade e a justiça em nosso país”.
A afirmação é do cineasta Arturo Albizures, premiado no 21º Festival Internacional do Cinema Latino-Americana e do Caribe, em Cuba, que junto com o amigo Federico Boris Hernández Herrera fundou a Associação para a Comunicação, a Cultura e a Arte (Comunicarte), organização de direitos humanos dedicada à reconstrução da memória histórica da Guatemala.
Nesta entrevista exclusiva, Albizures – que chegou a sofrer um atentado por não se dobrar às ameaças dos fascistas – traça um paralelo entre os crimes que Israel cometeu contra o povo guatemalteco, e o que continua perpetuando na Faixa de Gaza, bombardeando e perseguindo implacavelmente os palestinos por se oporem ao horror da ocupação.
Boa leitura.
De onde surgiu a ideia de fundar a Associação para a Comunicação, a Cultura e a Arte?
A Comunicarte nasceu no final dos anos 80. Inicialmente eu trabalhava com o movimento sindical e chegou em minhas mãos uma câmera doada por um internacionalista. O objetivo era fazer entrevistas com quem estava sendo despedido ou recebendo ameaças. Pego a filmadora e começo a acompanhar os companheiros que chegavam do exterior, nos juntando com mais gente municiada com câmeras.
Tínhamos o espírito de criar um arquivo histórico com testemunhos de quem havia sido perseguido. Logo nos embrenhamos nas comunidades onde tinham ocorrido massacres. Fomos para Alta e Baixa Verapaz, El Petén, para o ocidente. Acompanhando as comunidades, iniciamos a colher imagens e registrar declarações. O que temos de documentos atualmente é resultado deste trabalho.
Nestes anos todos, o que mais te chamou a atenção?
Toda esta ditadura, toda esta repressão militar que se deu após 1954 com o golpe contra o presidente Jacobo Árbenz, a eclosão da guerra em 1960 e a assinatura do Acordo de Paz em 1996, trouxeram muitas consequências. Ocorreram mais de 600 massacres, 250 mil mortos, mais de 45 mil detidos que foram desaparecidos, entre eles cinco mil crianças.
Tivemos o acompanhamento das comunidades que estavam na resistência e que buscaram refúgio no México. Acompanhamos as primeiras exumações junto à equipe forense que se formou com guatemaltecos e técnicos que vieram do exterior. Exumamos pessoas que acabavam de ser desaparecidas e logo surgiam em um cemitério clandestino. Começam a surgir testemunhos e continuamos acompanhando.
Recordo que levamos uma senhora até uma exumação em Verapazes (Alta e Baixa), que junto a Rabinal foi um dos povos mais golpeados. Levamos imagens e as projetamos. E isso impactou. Porque até então, as pessoas não queriam testemunhar pelo medo que o Exército impôs. Apresentamos no salão da Igreja Católica de Rabinal e o resultado foi imediato. Isso foi algo tão grande que até hoje trago comigo. Depois que aquelas pessoas assistiram aos depoimentos, quando perguntamos quem queria dar seu testemunho sobre alguém que havia sofrido ou sobrevivido a algum massacre, logo tínhamos uma fila imensa. A partir daí ficou bem marcada a dor das pessoas. Estás atrás da câmara, escutando seu relato, ouvindo esses horrores, de como sobreviveram, como levaram suas famílias, de como as chacinaram. Eles te contam com lágrimas nos olhos e isso emociona e te deixa mal. Todas essas questões nos atingem profundamente. A partir daí, fomos escutando mais e mais testemunhos.
Quando surge a denúncia do massacre de Dos Erres nos convidam para que os acompanhemos e vamos colhendo informações de onde os corpos foram jogados. Recebemos a denúncia de um Grupo de Apoio Mútuo e de uma organização camponesa, e a partir daí muitas petições. Chegam desde Chimaltenango, que é o local mais próximo da capital, a cerca de uma hora e meia, a Petén onde ocorre o massacre de Dos Erres.
É conhecida a participação da CIA no golpe contra Árbenz, mas pouco se sabe sobre a presença de Israel.
A presença militar de estrangeiros foi nítida, sobretudo de assessores dos Estados Unidos e Israel. Isso está documentado nos informes, é apontado pelas organizações. A ajuda esteve não apenas na entrega de armas, mas em toda a preparação para a contrainsurgência feita por esses dois países. O que os EUA e Israel fizeram foi aplicar métodos de extermínio contra a população civil. Esses 250 mil mortos não era gente que estava ali para a guerra, eram de comunidades cuja maioria foi arrasada. Com os ataques militares, os sobreviventes tiveram que sair do país.
Como vês a relação entre uma tropa de extermínio como os kaibiles e o que está ocorrendo atualmente na Palestina?
Se vemos agora as imagens da Palestina imediatamente recordamos dos testemunhos que nos foram dados na área ixil, onde os militares bombardearam onde sabiam que havia população civil. E bombardeavam, perseguiam, cercavam e bombardeavam. É igual na Palestina. Nos Dos Erres mataram as crianças na frente dos pais para que eles sofressem, tudo isso se repete agora. É algo inaceitável que em tempos “democráticos” nos sigam impondo massacres.
As organizações de direitos humanos falam em 300 assessores militares israelenses na Guatemala durante o período dos banhos de sangue, isso envolveu também a formação para a tortura psicológica?
Claro que sim, é o que te digo: treinaram para acabar com a guerrilha pondo fim às comunidades. A orientação era que “o povo está para a guerrilha como a água está para o peixe. Quem quiser acabar com o peixe, deve primeiro acabar com a água”. Exterminavam aldeias para que não houvesse apoio à guerrilha. Por isso toda a orientação era atingir ao máximo a sociedade civil.
Do ponto de vista de “formação e treinamento especial” também atuando sobre a área psicológica, o exército mantém um centro chamado La Pólvora, em Petén, que acredito que segue sendo assessorada.
Estes documentários são memória viva. Poderias apontar algum?
Destes documentários há “A verdade debaixo da terra”, que fala da repressão do exército no município de Rabinal, em Baixa Verapaz, em que há muitos testemunhos de sobreviventes das aldeias Rio Negro, Chichupac e Plan de Sánchez, que descrevem massacres entre 1981 e 1983; “Morrer para ganhar a vida”, que descreve um dos primeiros massacres, o de Panzós, ocorrido em 29 de maio de 1978, e o de “Dos Erres”, que ainda não subimos à internet.
Agora é importante que esta memória saia das nossas fronteiras e que o mundo saiba o que aconteceu. Quando iniciamos a documentar não tínhamos ideia do significado deste resgate, da dimensão da dor de quem viveu. Nossos documentários trazem a recuperação da memória histórica, do calor dos sobreviventes. São mais de 100 documentários, incluindo o premiado no 21º Festival Internacional do Cinema Latino-Americana e do Caribe, em Cuba, sobre Panzós, com que nos deram o reconhecimento. Precisamos manter a memória viva, para que crimes como os que estão ocorrendo na Palestina nunca mais aconteçam.