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ToggleJason Hargrove, condutor de ônibus de 50 anos, da cidade estadunidense de Detroit, publicou um vídeo na Internet no qual antecipava que achava que tinha a Covid-19; uma semana e meia depois morreu, vítima da pandemia.
Era um afro estadunidense grande e forte que estava perfeitamente bem até aquele dia em que uma pessoa tossiu repetidamente dentro de seu ônibus, sem tapar a boca.
No vídeo se queixava da falta de respeito – por não usar proteção – de alguns passageiros para com trabalhadores que como ele buscavam fazer funcionar a maior cidade do estado de Michigan em meio a uma pandemia.
“Estamos aqui como trabalhadores públicos, fazendo nosso trabalho, tratando de ganhar a vida honestamente para cuidar de nossas famílias”, disse Hargrove, segundo publicou o jornal The New York Times.
Seu caso ilustra a situação de um segmento da população: os negros nos Estados Unidos estão mais expostos ao contágio porque em sua maioria trabalham nos chamados serviços “essenciais” e o distanciamento social é mais difícil para eles, advertiu por sua vez o jornal The Washington Post.
Segundo informes do Escritório de Estatísticas Trabalhistas daquele país, compilados pelo Centro para o Progresso Americano, o segmento dos afro estadunidenses está sobre representado em nível nacional no setor dos serviços, hotelaria e choferes, em comparação com a população total.
O coronavírus SARS-Cov-2 evidencia que não distingue. Ataca a todos sem se deter em castas nem linhagens. Em todo o mundo, desde príncipes, primeiros ministros, artistas famosos, renomados esportistas, até moradores de rua, foram infectados.
“Os ricos contraem o vírus e os ricos morrem (…) mas também é certo que entre os pobres e a classe trabalhadora as taxas da doença são mais altas e eles estão morrendo num ritmo muito mais acelerado que os ricos. Isto é especialmente certo na comunidade afro estadunidense”, afirmou o senador Bernie Sanders.
Prensa Latina
A família de Jason Hargrove, negro e condutor de ônibus de 50 anos, da cidade estadunidense de Detroit
Nem tão iguais assim
Alguns dados nos Estados Unidos evidenciam que, embora a Covid-19 seja um inimigo sem rosto, disposto a infectar qualquer mortal, há um setor da sociedade que sofre um impacto maior pela infecção respiratória que o SARS-Cov-2 provoca.
“Muitos estadunidenses negros correm um risco maior com a Covid-19”, afirmou em uma entrevista à CBS o cirurgião geral do país e um dos porta vozes do governo em temas de saúde, Jerome Adams.
Recentemente o Post publicou uma matéria com o título “4 razões pelas quais o coronavírus está golpeando tão duramente as comunidades negras”.
A análise assinalou que os primeiros dados das jurisdições estadunidenses mostram que o novo coronavírus “parece estar afetando – e matando – os americanos negros em um ritmo desproporcionalmente alto em comparação com os estadunidenses brancos”.
Comprova-se que a maioria dos condados de afro-estadunidenses possui três vezes a taxa de infecções e quase seis a de falecimentos em relação a grande parte dos condados onde residem os estadunidenses brancos.
“Por que é três ou quatro vezes mais para a comunidade negra em comparação com outras pessoas?”, perguntou o presidente Donald Trump em uma reunião do grupo sobre a Covid-19 na Casa Branca, onde ressaltou “não tem sentido, e não gosto disso; vamos ter estatísticas nos próximos dois ou três dias”.
No entanto, na base do que se sabe acerca das desigualdades em muitas comunidades negras, tem sentido que este grupo populacional seja muito afetado pela atual crise sanitária.
Carga adicional
Por exemplo, as maiores taxas de infecções de saúde subjacentes e o menor acesso à atenção médica é a primeira razão que aponta o Post.
Segundo as estatísticas, os estadunidenses negros têm os mais altos índices de hipertensão, doenças cardíacas, diabetes e doenças pulmonares.
“As disparidades de saúde sempre existiram para a comunidade afro estadunidense, mas aqui, de novo com esta crise, está brilhando uma luz inaceitável”, afirmou o doutor Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Enfermidades Infecciosas, em um dos encontros diários na Casa Branca sobre o coronavírus.
Com isso concordou o médico Uché Blackstock, que trabalha em centros de emergência no Brooklyn. “Temos uma carga maior de doenças crônicas que nos predispõem às complicações mais graves do coronavírus”, disse.
Um estudo dos Institutos Nacionais de Saúde de 2014 revelou que os hospitais dos bairros predominantemente negros são mais propensos a fechar do que os localizados nos bairros dos brancos.
“Não temos acesso à atenção e caso tenhamos é provável que seja de pior qualidade porque com frequência são chamados de serviço para as minorias”, lamentou Blackstock.
Nas presentes condições “pode ser que não tenham um especialista ou os recursos necessários para atender os pacientes de Covid-19”, afirmou.
Amitabh Chandra, diretor de pesquisa de políticas de saúde na Escola de Governo da Universidade de Harvard, resumiu os fatores que ajudam a explicar porque a população afro estadunidense é mais vulnerável ante o coronavírus nos Estados Unidos.
“Têm menos seguros de saúde com relação a outros setores da população, menos renda e menos economias; e fazem parte de uma população que continua trabalhando nas ruas durante a pandemia”, afirmou.
Portanto, “são parte da população que continua fazendo o trabalho duro, enquanto nós, os outros, ficamos em casa”, comentou Chandra para a BBC Mundo.
Defensores dos direitos humanos garantem que há um viés implícito por parte dos provedores de atenção à saúde, e os estudos demonstram que esta diferença existe entre brancos e negros.
Também existe a crença de que a maioria dos estadunidenses negros – quase 60% – vive no Sul. Em estados como Flórida, Alabama, Mississippi e Geórgia, seus governadores não divulgaram mensagens sobre como manter-se seguros e frequentemente o que foi divulgado era inconsistente com as pautas do governo federal.
O cirurgião geral, em uma das reuniões sobre a pandemia, destacou que uma das regras principais para evitar a propagação do vírus é o distanciamento social.
Mas os negros nos Estados Unidos em sua maioria “têm mais probabilidades de viver em áreas densamente povoadas e em condições de moradia multigeracional, o que cria um maior risco de propagação de enfermidades altamente contagiosas como a Covid-19”, sublinhou.
Feridas da pandemia
Mais de um milhão de contágios e cerca de 71.065 mortes é o saldo até o momento da Covid-19 no poderoso e rico país do norte, epicentro mundial da pandemia.
Para Sanders, ex-candidato à indicação à presidência do país pelo Partido Democrata, esta emergência epidemiológica reflete a disparidade de um sistema de atenção médica injusto e de uma economia que castiga, de maneira terrível, os pobres e a classe trabalhadora.
Apesar de ser o país mais rico da história do mundo, mostra uma enorme iniquidade na distribuição da renda e da riqueza, escreveu o senador de Vermont em um artigo publicado pelo Times.
Em meio às “crises gêmeas” que enfrentam – a pandemia e o colapso da economia – “é imperativo que reexaminemos alguns dos fundamentos da sociedade estadunidense, compreendamos porque nos estão falhando e lutemos por uma nação mais justa e equitativa”.
Levará tempo para que se entendam todos os efeitos que deixará a Covid-19, mas, para os especialistas, é alarmante e não surpreendente que os afro estadunidenses carreguem uma carga maior de enfermidades crônicas e sejam especialmente menos resistentes aos estragos da pandemia.
E é possível – de fato – que o peso dos males sociais também contribua.
Deisy Francis Mexidor, Jornalista da Redação América do Norte de Prensa Latina
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Tradução: Ana Corbisier
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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