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Toggle(Para Theotônio Dos Santos por sua ousadia revolucionária e humildade pessoal. A Monica, por sua audácia de ter construído seu próprio caminho e pela história que continuará escrevendo).
[…] A verdade científica não tem nada a ver com a linguagem anódina de certos pretensos cientistas sociais. A verdade científica é mais incendiária do que paralisadora. Sob o nome de “ciência”, o que eles ocultam é a aceitação passiva e cúmplice da ordem existente e das formas de barbárie que esta realiza agora e que anuncia praticar muito mais violentamente no futuro (Dos Santos, Theotônio – 1968, p. 61).
A história da tese que deu origem ao encontro
No início do ano de 2011, defini o tema do meu trabalho monográfico de conclusão de curso em História. Realizaria uma análise crítica da Teoria Marxista da Dependência, cujos expoentes principais eram Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini e Theotônio Dos Santos. Temática que cheguei graças à provocação intelectual do meu orientador, Dr. Gustavo Guevara, que me apresentou uma das primeiras obras de Theotônio dos Santos, “Socialismo ou Fascismo: o novo caráter da dependência e o dilema latino-americano” (1972).
Para quem foi formada no marxismo ortodoxo, constituía um descobrimento que claramente abria um novo horizonte histórico, analítico e metodológico, além de me questionar sobre o desconhecimento de sua existência. Em pouco tempo, tive em minhas mãos os poucos livros que haviam ficado em Buenos Aires, depois de sua proibição durante a Ditadura de 1976-1983 e o posterior triunfo da pós-modernidade com o “fim das ideologias”. Por meio deste último, abandonavam-se as explicações macroeconômicas (que abarcavam a compreensão de processos sociais, históricos e políticos mais amplos no tempo e no espaço), sustentando-se na crença da impossibilidade de descobrir as causas profundas que originam os fatos históricos, sendo unicamente acessíveis as interpretações sobre os mesmos.
Nesse contexto, a escolha do tema de monografia resultava demasiadamente estranho. Movida pelo impulso de conhecer os autores, assim como seu pensamento mais profundo, pude contatar-me com Theotônio Dos Santos, com a ideia de entrevistá-lo, o que foi possível em março de 2012, no Rio de Janeiro, perto da Baía de Guanabara, um de seus lugares prediletos. Quando nos encontramos, senti a necessidade de esclarecer-lhe que minha visita tinha um objetivo teórico-político, já que não somente buscava reunir material para meu trabalho acadêmico, mas considerava necessária a reedição de suas obras em Buenos Aires, assim como a reabertura de um debate que parecia haver sido silenciado em todos os âmbitos: universitários e políticos.
Com esse ambicioso objetivo, Theotônio concordou com a ideia e começou a demonstrar seus conhecimentos e anedotas, com uma fala cadenciada e um estilo carismático.
Uma formação intelectual multidisciplinar e aberta ao questionamento
Ao longo do nosso primeiro encontro, ele discorreu sobre sua ampla formação acadêmica: sociólogo, cientista político e economista, nutrido, por escolha, tanto de autores considerados clássicos como aqueles desconhecidos no Brasil da década de 1950: Eduardo Nico e Rodolfo Mondolfo (provenientes da Filosofia).
Seus estudos incluíram um profundo aprendizado cultural, como as artes plásticas, o cinema e o teatro. A literatura, por outro lado, constituiu uma grande paixão, manifestada em numerosos poemas, os quais ainda não foram publicados. No caminho de seu desenvolvimento intelectual, esteve sempre presente o estudo da realidade brasileira, através de autores como Josué de Castro, Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Holanda, assim como o contato direto com pensadores da estatura de Hélio Jaguaribe, Alberto Guerreiro Ramos e Celso Furtado, os quais, entre outros, formaram o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), profundos estudiosos da situação econômico-social de seu país.
Sua aproximação com o marxismo deu-se pela história e pela filosofia, através das obras de Henri Lefebvre e Sartre, que realizavam, nesse período, profundos questionamentos à linha que emanava do comunismo soviético, pelo qual Theotônio Dos Santos nunca teve atração, nem convencimento algum. Por outro lado, transformou-se em uma referência de seus trabalhos a obra de Fernand Braudel, autor dos tempos históricos: os ciclos longos, médios e a curta duração, junto com a abordagem totalizante da história, alimentada pelas diferentes ciências sociais para a profunda compreensão do objeto de análise.
A partir de 1960, começou um estudo sistemático do marxismo, sobretudo a partir de sua entrada na Universidade de Brasília que, sob direção de Darcy Ribeiro, caracterizava-se pela investigação profunda, integradora das diferentes disciplinas sociais e com a abertura à intelectualidade internacional.
Tudo isso, em conjunto, gerava um ambiente propício ao desenvolvimento do debate e o surgimento de novas ideias. Nesse contexto, conheceu André Gunder Frank e aqueles que seriam seus companheiros por anos: Vânia Bambirra e Ruy Mauro Marini e com os quais iniciou um seminário sobre “O Capital”, estudando-o minuciosamente durante três anos”. Finalizado o seminário, trabalharam as teorias do imperialismo (Vladimir Lenin, Rudolf Hilferding, dentre outros), bem como as contribuições de Paul Sweezy e Paul Baran, acerca do impacto do capital monopolista a nível mundial, junto com uma investigação pormenorizada da estrutura econômica e social latino-americana.
Um intelectual saindo da Academia
Finalizado meu primeiro encontro, Dos Santos me convidou para ir no dia seguinte ao seu escritório, onde os livros tinham um lugar privilegiado. Para minha surpresa, me deu exemplares de seus livros, que eu desconhecia e me brindou o acesso a muitos outros títulos, cuja publicação ou difusão haviam sido abortadas pelas diferentes ditaduras de Brasil, Chile e Argentina. A partir daí, comecei um diálogo permanente com ele, não apenas quando ele visitava a Argentina, mas por meio da leitura de suas obras, em uma forma de intercâmbio à distância. Era comum encontrarmo-nos falando dos diferentes momentos de sua história intelectual e militante, matizada por seus inumeráveis relatos.
Sua história militante começou no movimento estudantil, quando deu origem a um jornal (“A Voz Juvenil”), no qual abordava os problemas da cidade, denunciando a classe dominante. Vários anos depois, em 1962, fundou com Vânia Bambirra e Rui Mauro Marini, entre outros, a Organização Revolucionária Marxista Política Operária (conhecida como POLOP). Essa organização representou uma crítica radical ao stalinismo soviético, com uma valorização profunda do processo da Revolução Cubana e a experiência que se vinha realizando nos países do Terceiro Mundo.
Alas – Reprodução
Theotônio do Santos nasceu em Carangola, Minas Gerais em 11 de novembro de 1936 e morreu no Rio de Janeiro em 27 de fevereiro de 2018
A influência da POLOP no Brasil foi muito importante, sobretudo na sua defesa de que era impossível a superação dos problemas do desenvolvimento nacional sem a superação das características da estrutura socioeconômica e sua particular inserção no mercado internacional. Até 1964, Dos Santos teve sob sua responsabilidade a direção nacional do partido, através do qual desenvolveu uma ativa militância tanto no movimento estudantil e sindical, como na organização do movimento nacional de favelas e de camponeses de seus país. Foi a prática mesma, o debate ideológico e a luta política, que o impulsionaram ao trabalho como cientista social, como ele posteriormente afirmou:
[…] A verdade científica não tem nada a ver com a linguagem anódina de certos pretensos cientistas sociais. A verdade científica é mais incendiária do que paralisadora. Sob o nome de “ciência”, o que eles ocultam é a aceitação passiva e cúmplice da ordem existente e das formas de barbárie que esta realiza agora e que anuncia praticar muito mais violentamente no futuro (Dos Santos, 1968, p. 61).
Quando do golpe militar em 1964 – em função de seu compromisso político – foi afastado da Universidade e obrigado a passar à clandestinidade junto com Vânia Bambirra (sua esposa naquele momento) e Rui Mauro Marini, e posteriormente exilar-se no Chile em 1966.
A Teoria da Dependência: um produto coletivo
Uma vez no exílio, foram acolhidos na Universidade do Chile, mais precisamente na Faculdade de Economia e Negócios, onde participaram do Centro de Estudos Socioeconômicos (CESO), dentro do qual desenvolveram um trabalho investigativo de envergadura junto com importantes cientistas sociais, como Orlando Caputo, Roberto Pizarro e Marta Harnecker (discípula de Louis Althusser, na França).
A linha de trabalho de Dos Santos, junto com os integrantes do CESO, levou-os a constatar que a teoria que unia o desenvolvimento latino-americano ao processo de industrialização (dentro do qual se encontrava a visão de Walt Rostow, Raúl Prebisch e da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe – CEPAL) se chocou contra a realidade, dado que o setor industrial que havia crescido entre as décadas de 1950-60 sob o amparo do capital internacional concentrado (e não com capital local) poupando mão de obra, devido à tecnologia sofisticada e com padrão de consumo dirigido a uma minoria da população, havia tomado outro sentido, gerando dependência, concentração e exclusão.
Essa constatação levou-os a aprofundar seus estudos, dando lugar ao nascimento da “Teoria da Dependência” que, nas palavras de Theotônio Dos Santos, constitui um produto coletivo, proveniente de todo um movimento de ideias da época, consequência da crise do modelo de industrialização por substituição de importações e do movimento populista latino-americano. Dentro da corrente da Dependência, surgiram diferentes orientações, dentre elas as de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, André Gunter Frank e a que decidi trabalhar em minha monografia: a liderada por Dos Santos, Bambirra e Marini.
Esse produto coletivo fez com que os autores chegassem a algumas ideias comuns, tais como: o subdesenvolvimento não era um estado inicial do qual se partia para se chegar, em um processo linear, a um estágio de desenvolvimento (mediante o processo de industrialização). Porque a incorporação da América Latina à Divisão Internacional do Trabalho foi em uma etapa onde os papéis estavam definidos, ficando nosso continente na periferia, assumindo a função de provedor de alimentos e matérias-primas, tanto baratas como necessárias para os processos de industrialização dos países que detinham o lugar central, os quais colocariam seus produtos manufaturados na chamada periferia. Dessa forma, ficava claro que desenvolvimento e subdesenvolvimento eram as duas caras de uma mesma moeda, o que gerava um questionamento profundo de todos os pressupostos de tipo evolucionista.
Os estudos de Dos Santos, Marini e Bambirra aprofundaram o tema da dependência, definindo-a como a situação de condicionalidade de um país, a partir da primazia do capital monopolista internacional sobre as estruturas internas do mesmo, que são redefinidas, em última instância, pelos próprios fatores internos.
Os autores estudados definem como modo capitalista monopolista e dependente o imperante em nosso continente. Aqui a industrialização, a partir das multinacionais, teve outro sentido, já que: possuem uma posição monopolista nos mercados internos, portanto não há concorrência entre elas; remetem a suas casas matrizes o excedente, por isso não reinvestem no país; incorporam tecnologia obsoleta, que por sua vez diminui os empregos do mercado de trabalho e obtêm uma alta taxa de lucro pela superexploração da mão de obra, através de baixos salários, que não permitem o crescimento do consumo e do mercado interno. Concluindo: esta lógica de acumulação leva à consolidação política do capital internacional entre as distintas frações dominantes (capital nacional e oligarquia) e, por sua vez, à debilidade da classe trabalhadora pelos baixos salários e o desemprego, levando a um bloqueio das forças produtivas.
Como alternativa, os cientistas marxistas da dependência defendiam que a via ao socialismo é a única possibilidade de superação, já que devido à crise do modo de desenvolvimento capitalista dependente, o grande capital aplicaria um regime fascista baseado no terror, única forma de preservar-se no poder, ante a contradição de interesses entre as maiorias empobrecidas e as minorias, beneficiadas pelo processo de concentração da riqueza próprio dos países dependentes.
A Embaixada do Panamá no Chile: uma oportunidade de vida
Em setembro de 1973, com a chegada do golpe militar liderado por Augusto Pinochet, Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotonio Dos Santos foram perseguidos politicamente e, por isso, tiveram que solicitar asilo na Embaixada da República do Panamá, que por falta de espaço, não conseguiram abrigar as centenas de pessoas ameaçadas pelo regime ditatorial.
Foi assim que Dos Santos ofereceu sua casa particular para funcionar como anexo à instituição acima mencionada. Graças a isto, 350 pessoas puderam se refugiar, as quais, devido à escassez de espaço, estabeleciam turnos para poder se sentar e descansar um pouco, dado que eles só cabiam naquele ambiente parados.
Lembro-me do relato vívido de Theotônio e do que havia significado essa convivência de semanas, sem poder sair, já que era a única opção à perseguição e à morte. Como havia acontecido várias vezes, pensei novamente na coerência que demonstrava entre o dizer e o fazer, mesmo nas piores circunstâncias.
Salvador Allende e a Unidade Popular: uma experiência inédita rumo ao socialismo
As ideias elaboradas pelo grupo sob direção de Theotônio Dos Santos exerceram uma grande influência na plataforma política da Unidade Popular, liderada por Salvador Allende, que obteve o triunfo eleitoral nas eleições presidenciais do Chile em 1970. Isso porque se definia a economia chilena como capitalista dependente, com um alto grau de concentração monopolista. Nesse sentido, o governo avançou na nacionalização dos bancos e do cobre, estabeleceu a Reforma Agrária para eliminar os setores pré-capitalistas do campo e buscou liberalizar-se dos ditames do Fundo Monetário Internacional (FMI). Isso, contudo, não era suficiente para destravar os obstáculos e permitir um desenvolvimento industrial do país; era necessário intervir no setor capitalista monopolista industrial e orientá-lo em favor das necessidades da população, o que terminaria desembocando em um processo socialista.
A partir das medidas implementadas por Allende, houve o lockout dos empresários da indústria e a paralisação dos transportes, fatos que foram enfrentados pelos trabalhadores que tomaram as ruas e conseguiram abrir as fábricas, trabalhando sem os patrões. Dessa forma, o confronto com o setor dominante de direita foi cada vez mais profundo e, por sua vez, dentro do próprio governo, surgiram diferenças táticas, revelando certo receio da radicalização desse processo. Dos Santos trabalhou duro para que, em conjunto com autoridades governamentais e intelectuais internacionais, fosse produzido um aporte teórico, permitindo enxergar as possibilidades e limites do projeto da Unidade Popular. Daí surgiu a análise do papel da pequena burguesia, como central no processo, que já entrava em contradição com a própria legalidade democrática e o avanço das forças populares.
Finalmente, a “via democrática ao socialismo” foi interrompida quando o governo foi derrubado pelo golpe militar de 1973. A natureza da repressão implementada e o grau de interferência que os EUA tiveram nos acontecimentos do período expressavam claramente o objetivo de abortar o processo iniciado pela Unidade Popular, tanto pelo que seus louros significavam, quanto por seu valor como experiência de única via democrática ao socialismo, que poderia ser estendida ao continente. A partir do governo de Pinochet, Marini, Bambirra e Dos Santos foram perseguidos politicamente, tendo novamente que se tornar clandestinos. Em 1974, eles partiram para o México, seu segundo exílio.
Relação com Fidel Castro
Fidel Castro e Theotônio Dos Santos tiveram uma relação muito próxima por vários anos. O líder cubano costumava chamá-lo junto com outras personalidades do mundo para discutir diferentes questões, como, por exemplo, em 1985, quando Fidel fez isso com relação aos problemas da dívida externa na região latino-americana, bem como teve a oportunidade de conversar com Dos Santos sobre a política científico-tecnológica cubana, que já desenvolvia pesquisas de ponta em biotecnologia.
Mas foi em janeiro de 1999, no âmbito das reuniões organizadas por Cuba sobre “Globalização e Desenvolvimento”, que ocorreu um interessante debate entre Theotônio Dos Santos, que estava realizando sua apresentação, e Fidel, que integrava a mesa diretora do evento.
Esse evento contou com a presença de mais de mil intelectuais de todo o mundo e foi realizado dentro das instalações do Centro de Convenções de Havana. No final do debate, depois de ter mostrado algumas diferenças iniciais com relação ao que expunha Dos Santos, o líder cubano disse:
“Theotônio, gosto de debater com você porque sempre aprendo muito”.
Hugo Chávez
Dos Santos foi, em primeira instância, um profundo estudioso e admirador do processo e da liderança exercida na Venezuela pelo comandante Hugo Chávez, que por sua vez era um leitor assíduo das obras do cientista brasileiro, a quem citava em diferentes momentos de suas intervenções. Entre eles se desenvolveu uma relação de amizade e um profundo respeito, como mostra este parágrafo, extraído de uma carta escrita por Theotônio Dos Santos a Chávez, em Lima, durante o mês de março de 2009 e que forma parte do prólogo de sua obra “Bendita Crisis“: (disponível para donwload gratuito)
“[…] A revolução que você preside não é um fenômeno de elites nem uma improvisação histórica. De Bolívar aos nossos dias, nossos povos aspiraram por transformações socioeconômicas profundas e tiveram vitórias importantes e muitas derrotas. Mas não desistiram nunca de seus ideais. O encontro de uma liderança consistente com essa subjetividade histórica, articuladora de tantas experiências, é uma situação excepcional que raramente se repete na história. Este é o privilégio que desfruta o povo venezuelano por contar com a sua liderança […]” (Santos, 2009).
Santos, T. D. (2009). Bendita Crisis . Caracas : El perro y la rana.
Da Teoria da Dependência à Teoria do Sistema Mundo
Uma vez no México, eles se integraram ao Instituto de Pesquisa Econômica da Universidade Autônoma do México (UNAM), onde continuaram seu trabalho intelectual. Em particular, Theotônio Dos Santos realizou pesquisas importantes, apoiado pela infraestrutura da universidade e pela manutenção das relações internacionais anteriormente desenvolvidas. Em colaboração com Bambirra e Marini, ele mergulhou na análise das três formações sociais que se encontravam constituídas naquele momento no mundo: os países centrais, os dependentes e aqueles que estavam na via socialista.
Mas os avanços analíticos exigiam de Dos Santos uma mudança metodológica: observar essas formações sociais no âmbito de um sistema mundial único, conceito que Immanuel Wallerstein, Samir Amin e o próprio Gunder Frank já vinham trabalhando. Com o transcurso da sua pesquisa, Dos Santos concluiu que a teoria do sistema mundial seria uma fase superior da teoria da dependência, onde se encontravam, por um lado, os países centrais cuja expansão embasa a teoria do imperialismo e, por outro, os periféricos que, por sua conformação dependente, não conseguem sair da condição de dominação, sendo necessário recorrerem a um caminho próprio pós-capitalista. Enquanto isso, observava-se claramente um sistema mundial desigual e combinado.
A Revolução Científico-Técnica
Dos Santos, a partir de meados dos anos 1970 e de forma contínua, dedicou-se entre seus temas de estudo, ao que chamou de Revolução Científico-Técnica, entendida como um conjunto de transformações, cujo elemento central é a hegemonia da ciência sobre o sistema produtivo, estabelecendo-se uma ligação estreita com a acumulação de capital, o qual terá um papel determinante na evolução da economia e gerará mudanças no Estado moderno.
Esta extensa investigação começou com a colaboração de Leonel Corona no México, com quem em seguida criou o Conselho Latino-Americano de Ciência e Tecnologia, nesse mesmo país, que contou com a participação de especialistas europeus, a fim de ter uma visão das transformações globais da revolução científico-técnica, observando os ciclos longos, que permitem uma análise mais correta do impacto sobre o processo produtivo.
O avanço a uma cultura civilizatória
Dentro das linhas de pesquisa, resultado de sua participação na Associação Internacional de Estudos para a Paz (IPRA) com sede na Finlândia, aparece uma vocação mais universal no autor, onde o centro do debate era o estudo das causas da guerra e sua superação, cuja preocupação o uniu, em diferentes atividades, com intelectuais de toda a Ásia e iniciou uma fluida colaboração com a UNESCO.
Essa mesma vocação universalista levava-o a estudar os processos de transição para o socialismo, incluindo a URSS, China e América Latina, onde observava a luta por um desenvolvimento nacional, no marco de um sistema capitalista sob a hegemonia dos Estados Unidos. Essa é a razão também de sua presença nas mesas de discussão de Cavtat (Iugoslávia), o único espaço de discussão partilhado pela União Soviética e China, onde houve uma grande abertura para discussão e uma tentativa de compreender as tendências na evolução política e da economia mundial.
A amplitude de seu trabalho levou-o à conclusão de que a crise estrutural que percorre o sistema capitalista mostrava também que o sistema mundial se encontrava em um ponto crítico. Nesse quadro, ele precisava evoluir para um marco de análise mais amplo, para o que introduziu o conceito de dimensão civilizatória. Essa mesma dimensão é a que estava em crise e é a própria humanidade, que deveria se preparar para dar um salto e ser a expressão da pluralidade de civilizações existentes, dando base a uma civilização planetária que reconsiderasse a concepção de desenvolvimento e todas visões restritivas que impedem a reflexão da Humanidade como um todo único (uma visão que supere o capitalismo, o regionalismo, o positivismo, etc.).
O predomínio Neoliberal
Em 1979, ele conseguiu retornar ao Brasil, mas o contexto de seu país, da América Latina e do mundo havia mudado. A derrota do Trabalho pelo Capital explicava o clima de desmobilização política, resultante da imposição de ditaduras no Cone Sul, com regimes altamente repressivos, que derrotaram as forças populares em ascensão. Iniciada a década de 1980, há um lento retorno a regimes democráticos de tom restritivo em nossa região, os quais aplicavam os programas de ajuste estrutural ditadas pelo Consenso de Washington, que permitiram liquidar o Estado de Bem-Estar, implementar o livre fluxo de comércio e capital, bem como a flexibilização do mercado de trabalho e o predomínio do mercado como alocador de recursos.
Por sua vez, a mecânica do endividamento externo seria a forma de suprir a falta de divisas, o que foi adquirindo um peso muito grave na economia dos países latino-americanos. Por último, a queda do bloco socialista gerou um espírito triunfalista no sistema capitalista e o predomínio da doutrina do “não há alternativa”.
As reformas neoliberais, em seu conjunto, permitiram a recuperação da taxa de lucro do capital, em detrimento do salário dos trabalhadores, gerando um novo padrão de acumulação, que permitiu superar a crise sistêmica iniciada em 1968, cujo ápice foi 1973 (crise do petróleo, que Dos Santos havia anunciado em sua obra, no final da década de 1960).
Apesar do contexto de desmobilização popular e democracia restringida, Theotônio Dos Santos continuou trabalhando tanto para revitalizar a organização sindical dos trabalhadores em seu país, como também participando das análises e debates sobre a crise que as dívidas externas geraram na América Latina, dentre eles, o que ocorreu em Cuba por iniciativa de seu presidente Fidel Castro (ver o quadro: Theotônio Dos Santos e Fidel).
Nesse período, a Teoria da Dependência é relegada a um lugar marginal dentro das ciências sociais. A retirada da mesma de todas as áreas foi justificada sob o argumento de que Marini, Bambirra e Dos Santos falharam enquanto, em realidade, se constata que muitos dos seus anúncios se cumpriram no que concerne ao desenvolvimento sistêmico, sem se deixar de lado que houve uma derrota política, no marco da ascensão das lutas continentais pela transformação social, para a qual advogava a mencionada teoria.
O ciclo progressista na América Latina e o aporte da Teoria da Dependência
No início dos anos 2000, chegam ao poder governos de caráter progressista, os quais, embora com diferenças em suas origens e orientação, compartilhavam a rejeição ao ideário neoliberal que implicava um modelo de desenvolvimento e de integração à economia mundial totalmente subordinados aos desígnios do capital nacional e internacional. A busca de maiores níveis de autonomia política e econômica para a região, a problematização dos traços dependentes das economias periféricas que reapareceram com os processos de reindustrialização, assim como a disputa contra as expressões políticas mais puras dos interesses capitalistas e seus discursos, levaram a uma revalorização da Teoria da Dependência dentro dos grupos acadêmicos e intelectuais.
Em particular, o caso da Venezuela e o processo bolivariano, liderado pelo presidente Hugo Chávez, que tinha como objetivo o Socialismo do Século 21, retoma as leituras de Theotônio dos Santos e a necessidade de levar a cabo políticas soberanas.
Outro tema importante que Dos Santos já tinha advertido na década de 1990, foi a presença de condições políticas para a integração regional da América Latina, devido à revolução científico-técnica e à nova divisão do trabalho, que gerava uma tendência para a regionalização da economia mundial. A criação de organismos de integração (Unasul, Mercosul, etc.) pode constituir uma plataforma de desenvolvimento conjunto para uma inserção internacional, de forma mais equitativa e ampliando as possibilidades de negociação com o mundo.
Finalmente, a Teoria Marxista da Dependência, obra conjunta de Bambirra, Marini e Dos Santos foi um divisor de águas no pensamento crítico latino-americano com difusão mundial, revelando assim as causas do atraso da América Latina. Ela propõe um horizonte alternativo, o socialismo, e contribuiu para experiências concretas, além de seu resultado final. Por tudo isso, hoje, com um discurso neoliberal ainda hegemônico, é necessário retomar os postulados desta teoria, para atualizá-las à luz das transformações mundiais e ter a ousadia de ser América Latina, desenhando nosso próprio caminho.
(*) Silvia Laura Rodriguez: Historiadora, especialista no tema da estrutura econômica da América Latina e sua formação dependente. Integrante dos Grupos de Trabalho CLACSO “Neoliberalismo e Políticas Públicas” e “Geopolítica, Sistema Mundial e Integração Latino-Americana”. Professora do Ensino Médio e Superior. Graduada em História pela Universidade de Buenos Aires. Docente- do Programa FORMARNOS –INSTITUTO PATRIA da Universidade de Lanus. Membro do CIGES (Centro de Pesquisa e gestão da economia solidária). Palestrante na ” X Conferência Bolivariana” da Universidade Iela de Santa Catarina (abril de 2014) e no “XXVIII Encontro Nacional de Economia Política” organizado pela Sociedade Brasileira de Economia Política” (maio de 2013). Apresentadora do livro “Marxismo y Ciências Sociales: una revisión crítica” de Theotonio Dos Santos (Outubro, 2011). Em 2014 foi organizadora das atividades de imprensa para a UNASUL na Argentina.
Tradução: Agatha Justen – cientista social, mestre em Políticas Públicas, mestre e doutora em Administração Pública. Professora-investigadora da Universidade Federal Fluminense. Integrante do Grupo de Trabalho CLACSO “Geopolítica, Sistema Mundial e Integração Latino-Americana”.
** Publicado originalmente no Motor de Ideas