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Paris 1968, apontamentos complementares meio século depois de uma revolução

Poderíamos dizer que os estudantes de 1968 se parecem muito com os de agora: os indignados, o movimento mexicano Yo soy 132, los okupa, entre outros
Alfonso Gumucio

Tradução:

Eu quero me referir ao que escrevi, de maneira testemunhal no nº 40 da revista acadêmica Ciencia y Cultura (Vol 22, junio 2018) que é publicada pela Universidade Católica Boliviana San Pablo, mas sem repetir o que está no artigo “Sonhadores indocumentados”, pois não teria sentido abundar nele e perder a esperança de que o leiam, como se diz, “com seus próprios olhos”.

A meio século de maio de 1968 acreditamos já saber tudo sobre esse movimento estudantil revolucionário e ingênuo que derivou na consolidação da ordem hegemônica na França, pelo menos por algum tempo.

Poderíamos dizer que os estudantes de 1968 se parecem muito com os de agora: os indignados, o movimento mexicano Yo soy 132, los okupa, entre outros

Historia Hoy
Daniel Cohn-Bendit / Paris Maio de 1968

Lacan o chamou de “movimento histérico” segundo nos recorda Juan Pablo Nery Pereyra em outro texto da revista. No entanto, Sartre, Simone de Beauvoir, Jean Louis Barrault e muitos outros artistas e intelectuais aderiram com ardor ao movimento estudantil, não com a intenção de recuperá-lo, mas sim com o desejo de sair de seus cubículos e dos cafés de Montparnasse ou de St. Germain, para se sentir úteis na rua.

“Quand la France s’ennuie”, escreveu em 15 de março de 1968 Pierre Viansson-Ponté, respeitado editorialista do Le Monde para descrever uma França aborrecida e estancada na mediocridade. Então chegaram os estudantes e criaram um novo horizonte,

Plus ça change… diz uma expressão francesa para indicar que nada mudou. Nada mudou? Não estejamos tão seguros disso. Contrariamente ao que afirmam quatro ou cinco décadas mais tardes alguns intelectuais que não o viveram (que fácil é opinar sem havê-lo vivido), claro que mudou a França, mudou a vida cotidiana e mudou a cultura das pessoas. 

Se não tivesse mudado, não haveria agora tantos intelectuais que salpicam seus textos com palavras muito inteligentes como  “pós-modernismo”, “pós-colonialismo” e outros pós, com referências suculentas a  Bourdieu, sua teoria do campo, ou à sociedade líquida de Bauman, e tantas outras teorias que só podem ser construídas quando há experiências reais, fortes, como Maio de 1968.

 A política é de todos

Paris foi o lugar de eclosão de um mal estar mundial: a Guerra do Vietnã, os Black Panther, a primavera de Praga, os movimentos  ecologistas de novo tipo, a Guerrilha do Che Guevara, os movimentos de libertação sexual (Wilhelm Reich) , a diversidade sexual, a causa palestina, o aborto livre e gratuito, etc. Sobre a onda do aparente fracasso estratégico dos estudantes apareceram os “novos filósofos” para direitizar o pensamento e estigmatizar os revolucionários de coração e da ação. Não todos: Daniel Cohn-Bendit seguiu em uma linha coerente e é deputado verde no Parlamento Europeu. Mais valor têm os textos críticos do momento, tanto da direita (Malraux) como da esquerda (Pasolini). 

Os operários que aderiram ao movimento apesar de seus partidos políticos, conseguiram em anos seguintes vantagens salariais, menos horas de trabalho, maior seguridade social, e puseram em crise o dogmatismo comunista e socialista, o que não é pouco.

Em educação e em saúde, França e outros países oferecem a melhor qualidade sem custo. Por isso migram dos Estados Unidos para viver ali, segundo vemos em “Sicko”, o documentário de Michael Moore. Ou seja, não foi tudo um fogo de palha. Maio de 68 foi mais revolução que outras porque embora não tenha mudado estruturas políticas e do Estado, mudou profundamente as pessoas. Tudo o que avançamos em 50 anos sobre a tolerância e a aceitação do outro, parte dali.

Para o governo de De Gaulle foi um momento de incerteza e desafio. Não foi um passeio. Não é que maio de 68 não lhe tenha feito nem cócegas. Apesar de todo o respeito ganho depois da Segunda Guerra Mundial e da libertação da França ocupada pelo nazismo, De Gaulle foi afetado. Ganhou terreno no começo, mas o perdeu um par de anos mais tarde.

Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir

Foucault foi mais lúcido que Lacan nesses momentos, porque reconheceu que podiam existir “outros saberes subversivos”, coisa que não agradava a alguns intelectuais que já haviam estabelecido seu reinado em cafeterias de St Germain de Prés ou de Montparnasse. 

O importante é que os estudantes que saíram às ruas em maio de 1968 não pensavam na “análise do discurso”, mas sim em como mudar sua vida cotidiana. E ao fazê-lo deram material aos intelectuais que se ocupam de fazer cerebrais análises do discurso. 

Os que transgrediram as normas foram os estudantes que queriam transformar a sociedade e não os acadêmicos que gestavam pensamento em seus cubículos, fazendo leituras de leituras de outras leituras de seus colegas, com certa incapacidade de articular-se com a realidade social.

Ateliês Populares de Belas Artes

Há certo oportunismo nessa questão de prolongar-se como acadêmicos usando os resquícios e matizes que deixam outros em sua ação sobre a realidade social. Maio de 1968 foi qualificado como “sentido comum” do  “rústico” e “improvisado”, y culpado da onda neoliberal… Se 10 anos depois de 1968 se produz o giro para o neoliberalismo, não é culpa dos estudantes, mas do fracasso do comunismo que os próprios estudantes criticaram. Recordemos que Georges Marchais, futuro Secretário Geral do Partido Comunista, foi um dos que se opôs e atacou o “anarquista alemão” Daniel Cohn-Bendit. 

Os partidos comunistas e socialistas ficaram de fora e tiveram que se somar à força. Não puderam prevenir e muito menos dirigir o movimento estudantil. A mesma coisa aconteceu com os intelectuais, muitos ficaram deslocados porque haviam perdido contato com a realidade da França e do mundo.

Daniel Cohn-Bendit

Para esganiçar-se contra esses estudantes espontâneos chegaram ao extremo, muitos anos depois (Zizek, 2011), de dizer que Maio de 1968 contribuiu para “renovar o capitalismo”… Seria como dizer que o movimento zapatista fortaleceu o PRI e o PAN. Outra frase bastante maliciosa diz agora  que os estudante de Maio de 1968 “clamavam por um novo amo”… 

É certo, como escrevi em meu texto, que o movimento estudantil foi uma explosão falida de vitalidade contida, sem controle vertical nem horizontal, mas se formaram redes horizontais, núcleos independentes em cada faculdade, ateliê de arte, comunidade ou bairro. 

Poderíamos dizer que os estudantes de 1968 se parecem muito com os de agora: os indignados, o movimento mexicano Yo soy 132, los okupa, e outros de curta existência. Mas, a diferença é que o Maio de 1968 transformou a vida cotidiana da sociedade, enquanto que os outros movimentos citados não transformaram nem seus próprios atores. 

Por isso, ler um fato histórico a partir da vivência pessoal é muito diferente de fazê-lo a partir de leituras críticas de outras leituras de outros autores que por sua vez elaboram a partir de suas leituras… Por isso é que o testemunho continua sendo a coisa mais genuína e autêntica quando nos referimos a episódios históricos. 

 

(Texto lido no lançamento da revista Ciência & Cultura, no dia 26 de setembro de 2018)

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“Dans une petite France presque réduite à l'Hexagone, qui n'est pas vraiment malheureuse ni vraiment prospère, en paix avec tout le monde, sans grande prise sur les événements mondiaux, l'ardeur et l'imagination sont aussi nécessaires que le bien-être et l'expansion”.
* Pierre Viansson-Ponté

 

**Colaborador de Diálogos do Sul, de La Paz, Bolívia


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Alfonso Gumucio Boliviano. Cineasta e documentarista. Especialista em comunicação para o desenvolvimento com experiência mundial em comunicação participativa, mobilização social e desenho da estratégia. Foi Diretor de Comunicação da UNICEF na Nigéria e no Haiti

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