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"Qualquer tempo passado foi melhor": O neoliberalismo nas estantes de Arequipa

Uns dias na cidade peruana, no fim de outubro, bastaram para perceber certas manifestações culturais nesta cidade
Jorge Rendón
Diálogos do Sul
Lima

Tradução:

Uns dias em Arequipa, no fim de outubro, bastaram para perceber certas manifestações culturais nesta cidade. Costumo fazê-lo, em verdade um pouco distraidamente, cada vez que a visito desde que me afastei dela quando tinha vinte anos. 

Encontro três referências para este exame: as livrarias, as bibliotecas e as feiras de livros. 

Não há teatro, nem exposições de pintura, nem concertos. 

As velhas casonas de pedra branca, liberadas do revestimento exterior graças à iniciativa do prefeito Villalobos há várias décadas, erguem-se altaneiras proclamando sua rançosa estirpe hispânica e vice-reinal de “branca cidade” às centenas de turistas que chegam para ver se é verdade que seus povoadores convivem amigavelmente com os três vulcões que a aninham.

Procuro as livrarias e só encontro quatro: uma, na rua San Francisco e outra na rua Mercaderes, pertencentes ao mesmo dono, com alguns romances traduzidos (thrillers) que se esforçam por aparecer atrás do material de escritório oferecido; outra na rua Puente Bolognesi de literatura menor para estudantes de primária; e outra na rua Ayacucho com meia dúzia de livros no saguão de uma casa. 

Minha nostalgia me traslada então aos anos cinquenta, quando cursava Letras na Universidade de San Agustín. A livraria mais completa e atualizada estava na rua San José, na frente do Correio Central. Denominava-se Simiente e pertencia ao intelectual comunista Juan Cuentas Zavala. Ali nos sortíamos os estudantes universitários, profissionais, artesãos e operários que ansiávamos ilustrar-nos. Importava os livros de Buenos Aires, do México e de Santiago do Chile. Ali adquiri quase todos os romances franceses do século XIX traduzidos e publicados pelas editoras Sopena, Tor e Losada de Buenos Aires, que haviam sido criadas por alguns espanhóis exilados nessa cidade.

Havia outra livraria no primeira quadra da rua San Juan de Dios pertencente a um jovem sem nenhuma pretensão intelectual que trazia livros e, sobretudo, revistas de Buenos Aires. Graças a esse livreiro, em minha casa como em muitas outras, nos deleitávamos e nos formávamos com o prodigioso material que constituíam as revistas El Tony, El Gorrión, Espinaca, Billiken, Leoplán, Intervalo, Rico Tipo, Para tí e Marivel.

Uns dias na cidade peruana, no fim de outubro, bastaram para perceber certas manifestações culturais nesta cidade

Perú.Info
Ciudad Blanca de Arequipa: Patrimonio Cultural da Humanidade

O que leem as moças e os rapazes de agora, a partir do que encontram nas telinhas de seus celulares?

“Como, a nosso parecer, qualquer tempo passado foi melhor”. (Jorge Manrique).

E depois sempre havia o recurso de prover-nos de livros de mão em mão, clandestinamente, para burlar a vigilância dos espiões da ditadura de Odría que eram encontrados até na sopa.

Aos jovens inquietos desse tempo, o destino, a história ou o que seja, nos deu a oportunidade de nosso batismo de fogo na revolta popular de junho de 1950 (Contei esta epopeia em meu livro “Esos días de junio de Arequipa, cuando la historia tocó las puertas de los vecindarios”, 2014).

A biblioteca mais publicitada é a denominada Mario Vargas Llosa. Está em uma antiga casa da rua San Francisco que pertenceu a um espanhol da conquista e foi por um tempo sede do governo regional. Percorro suas estantes cheias de livros. Todos foram doados pelo insigne marquês espanhol nascido em Arequipa em 1936 e onde teve a sorte de residir uns poucos meses. Reviso os autores, títulos e temas, e percebo que é a classe de leitura que o doador, um dos quadros mais destacados da oligarquia branca e do neoliberalismo, estima que deve alimentar o espírito dos arequipenses. É claro que não há entre esses volumes nenhum crítico do sistema capitalista e, menos ainda, expressivo do afã contestatário das maiorias sociais desta cidade. São livros do mesmo jaez que os artigos deste benfeitor que com seu prêmio Nobel é para os últimos cenáculos da oligarquia local tão grande e onipresente como o vulcão Misti. Ninguém parece se importar em averiguar porque lhe deram esse prêmio. Alguém me disse que na catedral já lhe designaram um nicho onde colocarão sua efígie.

Passei para a biblioteca Ateneo, pertencente à Municipalidade. Está como era quando eu a frequentava em meus anos universitários, para aprender nos livros sobreviventes da pilhagem praticada pela ditadura de então. Olhei seus fichários. Pouco realmente importante. Compram novos livros? Há alguns anos tentei uma entrevista com seu diretor. Levava uma coleção de meus livros e alguns outros da minha especialidade profissional para obsequiá-los. Não me recebeu, mas a secretária me indicou que os entregasse ao diretor de cultura, ou algo assim, do conselho municipal da cidade. Sem perder as esperanças fui até o seu escritório no portal da Municipalidade. Era um homenzinho de rosto redondo que mal se dignou a me escutar e terminou por me dizer que não aceitavam doações de livros. Pertencia a equipe do partido Aprista que acabava de ganhar as eleições municipais. Arequipa tampouco se acha isenta de equivocações tão garrafais. Não por acaso uns dias depois, um grupo de trabalhadores do município retirou o busto do grande pintor arequipenho Manuel Domingo Pantigoso da pracinha Cólon e, talvez por descuido, não o destruíram. Anos depois, outra administração fez o desagravo, colocando seu busto no salão das grandes personalidades arequipenses da casa El Fierro na praça San Francisco, onde está agora.

As feiras de livros são em todas as partes grandes empreendimentos promovidos pelas editoras transnacionais para comercializar a cultura que tratam de meter aos povos escolhidos como mercados: literatura pulp e seus parentes próximos. Hay Festival é outra dessas feiras que foi aclimatada em Arequipa. A publicidade que a acompanha é, claro está, ilimitada, e seus cenários se povoam de autores estrangeiros de talante ideológico compatível com os fins perseguidos por seus organizadores e patrocinadores. Nenhum escritor crítico pode ingressar a esses feudos alegremente iluminados, nem a seus editores será dado jamais ali um stand ou um espaço de exposição.

E enquanto Hay Festival passa seus dias de sonho, multidões aguerridas de estudantes, camponeses, operários, artesãos e ínfimos comerciantes desfilam pelas ruas e praças com cartazes, opondo-se à ameaça da contaminação da água no vale de Tambo por uma empresa mineradora que recebeu uma concessão de algum governo corrompido. 

Duas caras do deus Jano, se diria.

Se trata, como se vê, de uma ofensiva cultural do neoliberalismo para tentar a alienação da maior parte deste povo mestiço e rebelde que há alguns anos olha esperançado ao levante, situado ali à esquerda, e tentar fazer dele um conjunto dócil e manipulável.

*Jorge Rendón Vásquez é colaborador da Diálogos do Sul desde Lima, Peru

**Tradução: Beatriz Cannabrava

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Jorge Rendón Doutor em Direito pela Universidade Nacional Mayor de San Marcos e doutor em lei pela Université de Paris I (Sorbonne)

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