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O vírus nos ensinou dolorosamente a entender relação tão precária com a nossa natureza

Temos a obrigação de destruir os estereótipos com os quais temos vivido em um âmbito interno de falsa segurança, para construir todo um novo sistema de valores
Carolina Vásquez Araya
Diálogos do Sul
Cidade da Guatemala

Tradução:

No princípio tudo foi alarme sem maiores perspectivas. Hoje, depois de tantas semanas de confinamento, se começa a sentir a diferença até nos ossos. Tudo aquilo que consideramos certo: as infinitas possibilidade de fazer coisas, de mover-nos pelo mundo – embora não o fizéssemos, mas aí estava, potencialmente – sair de casa, de repente nos foram cortadas por um bicho microscópico e por uma cúpula de autoridades cujo poder não foi suficiente para reunir o conhecimento e a sabedoria para enfrentá-lo. 

A frustração e as carências para as maiorias estão socavando a moral cidadã. Não bastam as medidas aparentemente humanitárias de alguns dos países mais desenvolvidos para enfrentar o empobrecimento repentino de seus trabalhadores. São só paliativas que não chegam às raízes do problema e não mudam em nada a situação de milhões de famílias sem perspectivas de emprego e com dívidas não pagas, esperançadas em uma cura milagrosa ou em sair indenes deste pesadelo. 

Hoje temos a obrigação de destruir os estereótipos com os quais temos vivido em um âmbito interno de falsa segurança, para construir todo um novo sistema de valores, começando pela erradicação desse classismo inveterado, injetado à força em nosso subconsciente e disfarçado de “bons costumes”. É algo assim como regressar com o pensamento à escola primária e aprender tudo de novo em um silabário onde não existe categorias. 

Temos a obrigação de destruir os estereótipos com os quais temos vivido em um âmbito interno de falsa segurança, para construir todo um novo sistema de valores

YouTube / Reprodução
Começa a se fazer sentir a nova experiência de um encerro obrigatório

Eu escrevi este artigo no Dia das Mães. Enquanto navegava pelas redes e lia as mensagens do WhatsApp cheias de boas intenções, não podia deixar de pensar no novo cenário que nos propõe esta pandemia. Milhões de mulheres ao redor do mundo expostas à violência machista e a gravidezes não desejadas porque, nestas condições, os poucos avanços em direitos sexuais e reprodutivos ficam praticamente anulados. O romantismo em torno de um dia mais destacado pelo seu valor comercial que por sua natureza intrínseca, resulta, portanto, destroçado por uma realidade cruel e concreta. 

Uma das sensações mais potentes nesta experiência desconhecida é uma progressiva perda da realidade e uma perigosa queda em um estado depressivo solapado e escuro, algo assim como se tivéssemos uma pesada capa de que não podemos desvencilhar-nos. Se isto acontece com pessoas razoavelmente saudáveis e com recursos de sobrevivência, imaginemos uma mãe solteira com um número de crianças difícil de manejar, desprovida de uma renda fixa e enfrentada a uma situação tão injusta. É nessa situação de vulnerabilidade extrema em que vemos o retrato de nossa nova condição. 

Não importa de que forma saiamos disto. Nunca seremos os mesmos porque o vírus nos ensinou de maneira ruim a entender a relação tão precária com nossa natureza, com nossos semelhantes e com nós mesmos.  Damos uma olhada pela janela e observamos nossos vizinhos pela primeira vez com um sentimento de solidariedade porque, não importando quem sejam nem quanto possuam, estamos emparentados diante do mistério de um futuro desconhecido, manejados desde as alturas por uns seres também desconhecidos. 

Aproveitemos o tempo para reconstruir-nos – de dentro para fora e sem compaixão – com os elementos residuais do feroz ataque contra nossa cotidianidade; no final do dia contamos com a capacidade sempre poderosa para reinventar-nos e enfrentar as carências. Talvez seja esta a oportunidade para sair fortalecidos e triunfantes. 

Aproveitemos desta vez a oportunidade para nos reinventar.

Carolina Vasquez Araya, Colaboradora de Diálogos do Sul da Cidade da Guatemala

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Carolina Vásquez Araya Jornalista e editora com mais de 30 anos de experiência. Tem como temas centrais de suas reflexões cultura e educação, direitos humanos, justiça, meio ambiente, mulheres e infância

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