Pesquisar
Pesquisar

Das capitanias à sexta República, história do Brasil é marcada pela contínua ocupação militar

Diferente do que se aprende nas escolas, contar a história do Brasil é contar a história militar. Desde 1500 estamos em guerra civil, do Estado contra o povo
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

O Renascimento foi de fato uma Revolução Cultural que se deu nas ciências e nas artes, na filosofia e nos costumes, que irrompeu contra as “trevas” do medioevo. A descoberta das Américas vai provocar uma explosão de liberdade e criatividade, despertando cobiça desenfreada, individualismo, concentração da riqueza e guerras.

Segundo pesquisa realizada por Moema Viezer e Marcelo Grondin, publicada em livro, a conquista das Américas pelos europeus custou a morte de 70 milhões dos povos conquistados. O maior genocídio da história. O Brasil está dentro dessa estatística.

Diferente do que se aprende nas escolas e inclusive nas universidades, contar a história do Brasil, a verdadeira, é contar a história militar. Essa história de descobrimento é balela, posto que depois da chegada de Colombo às Américas, o mundo foi repartido entre os reinos de Portugal e Espanha — e essa parte do continente foi para Portugal. O Tratado de Tordesilhas é de 1494.

Sendo as novas terras habitadas, D. Manoel I — o Venturoso —, em 1498, organizou as primeiras expedições militares. As esquadras tinham que enfrentar no caminho outros aventureiros, ingleses, franceses e espanhóis. Eram realmente bravos soldados portugueses que compunham a tripulação dessas naus.

Sobre o tema: Paulo Cannabrava Filho | Brasil vive sob uma ditadura, você percebeu?

Houve um período, mesmo depois do desembarque de Cabral, em que a terra de Santa Cruz ficou meio abandonada, registrando-se as expedições de Gonçalo Coelho (1503), D. Nuno Manoel (1513) e da Nave do Fernão de Magalhães (1519). Coube a D. João III a decisão de ocupar e tomar posse do território e estabelecer a colônia.

D. João III preocupado com a constância dos piratas organizou, em 1521, uma expedição sob o comando de Cristóvão Jaques, com uma nau e cinco caravelas para patrulhar as costas. Mais adiante, em 1539, organizou as expedições sob o comando de Martin Afonso de Souza que estabeleceu fortificações em Cananeia, onde estava o Bacharel Português, em São Vicente, e no planalto, onde estava João Ramalho, onde hoje fica a capital de São Paulo.

Foi esse João III quem implantou o latifúndio nacional hereditário. Ele dividiu o território em 15 lotes, de 50 léguas de litoral cada, distribuídos para 13 cortesãos que receberam o título de capitão-mor. 

Primeiras ações militares

Tomé de Souza aportou em Salvador, Bahia, em 1549, com 1.300 pessoas, sendo 600 soldados, 300 colonos e 400 degredados. Com ele vieram também os primeiros jesuítas. Foi quem instituiu o serviço militar obrigatório e o direito de todo cidadão (europeu, claro) portar armas. Nessa mesma época, mandou fortificar Cananeia com 40 arcabuzeiros e outros tantos besteiros 

Em 1554, Duarte da Costa substitui Tomé de Souza como governador-geral que, por sua vez, passou o comando para Mem de Sá, em 1558. Lutavam em duas frentes: no litoral contra incursões de ingleses, holandeses e franceses, principalmente, e no interior contra as aldeias dos povos originários.

Em Pernambuco, que ia do Rio Grande do Norte até Alagoas, os indígenas resistiam bravamente à invasão, mas em correlação de força infinitamente desfavorável. Contra armas de fogo, técnicas de guerra e cavalaria, desenvolveram criatividade em técnicas de defesa, como a tocaia, paquera, assalto de surpresa. Eram guerrilheiros autênticos que lutavam pela liberdade e independência.

Os séculos 16 e 17 foram de intensas lutas para os militares. A França foi quem mais insistiu em disputar o território com os portugueses. Sonhavam com uma França Equinocial, em São Luís do Maranhão, e uma França Antártida ao Sul. Ocuparam o Rio de Janeiro (1555-1566) e também da Paraíba ao Rio Grande do Norte. Conflitos se estenderam até 1597.

Os holandeses, aportaram em 1624 e permaneceram até 1650, estiveram na Bahia e se fixaram no território que vai de Alagoas até o Rio Grande do Norte até que foram expulsos com a ajuda dos nativos. A paz com a Holanda só foi conseguida em 1661 quando o reino de Portugal comprou do reino da Holanda o território por cinco milhões de cruzados.

Para conquistar Pernambuco, os holandeses vieram com 70 navios, 1.200 canhões, 7.200 soldados. Há de se imaginar que uma aventura como essa custou muito caro. Quem financiou? As riquezas que pilhavam das embarcações espanholas que levavam o ouro e prata saqueado dos povos originários.  

Nos anos 1700, depois de tantas guerras, estavam melhor organizados como uma grande força armada, com vários Regimentos, cada um com um ou dois batalhões e dez companhias, estas compostas por 98 soldados. O século 18 foi das ideias liberais e libertárias. Em 1776 ocorreu a declaração de Independência dos Estados Unidos, a Revolução Revolução Francesa, de 1789, mesmo ano em que eclodiu a insurreição libertária em Minas Gerais, cujo mártir reverenciamos em 21 de abril, Tiradentes.

Cabe aqui um parêntesis. 

Leia também: Cannabrava | Ditadura brasileira está a serviço da bancada dos B: Boi, Bíblia, Bala e Bancos

Por que Tiradentes?

Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), alcunha Tiradentes, era alferes, uma espécie de sargento do Exército português. Como a nossa história é a história dos militares, usaram sua figura para mostrar o que acontece com quem se insurge contra o poder da coroa. Não só foi condenado à morte como foi esquartejado e seu corpo foi espalhado por Vila Rica, uma das cidades mais povoadas do mundo ocidental daquele tempo.

O movimento ao qual ele pertencia ficou registrado na história como Inconfidência ou Conjuração Mineira. Horror! Termos dos mais depreciativos. Inconfidência é infidelidade, traição; enquanto conjuração é uma trama clandestina contra algo, ou seja, o mesmo que traição. 

Tiradentes pertenceu a um movimento que lutava contra o colonialismo opressivo e sonhava com a independência. Já ninguém fala de seus companheiros civis. Foi um movimento de rebeldia que deveria estar na história como a Revolta ou a Rebelião Mineira e ser reverenciada como precursora da independência.

Foi a rebelião de um grupo de poetas sonhadores. Claudio Manuel da Costa (1729-1789), escritor e poeta foi suicidado no cárcere. Apareceu enforcado, assim como séculos depois apareceu enforcado no cárcere o jornalista Vladimir Herzog. 

Tomás António Gonzaga (1744-1810) foi condenado ao degredo. Morreu em Moçambique. Inácio José Alvarenga Peixoto (17452-1792), também condenado ao degredo, morreu em Angola. Foram condenados pelo crime de pensar e sonhar. Esses intelectuais se reuniam em tertúlias e se eternizaram nas obras que escreveram. 

Nessa época, começam, no Norte, as guerras por demarcação de fronteiras que se estenderam ao Sul, onde os conflitos permanecem até fins dos 1800.

Diferente do que se aprende nas escolas, contar a história do Brasil é contar a história militar. Desde 1500 estamos em guerra civil, do Estado contra o povo

Reprodução
O nosso império territorial é uma conquista das nossas armas.

Bandeiras e rebeliões

O que foram as Bandeiras? A estrutura era militar e os homens, armados. O objetivo era a caça aos indígenas para escravizá-los ou simplesmente assassiná-los em massa com o fim de exterminá-los.

A hidrografia do Brasil foi fator facilitador tanto para os primeiros conquistadores como para os bandeirantes. Bastava subir ou baixar um rio para adentrar o território. Com isso, a marcha para o Oeste jogou às traças o Tratado de Tordesilhas e motivou as guerras por demarcação de fronteiras.

Além da matança dos indígenas, os militares se aperfeiçoaram também no combate aos brotes independentistas ou simples revoltas populares contra a opressão. Merecem um livro essas manifestações libertárias de nosso povo, que se conhece apenas pela versão dada pelos vencedores.

O Quilombo dos Palmares, de 1675 a 1678, resistiu a mais de 20 expedições militares; também tivemos a Revolta de Bequimão, no Maranhão (1684); a Revolução da Bahia (1682); a Guerra dos Emboabas, em São Paulo e Minas (1708); a Revolta dos Mascates, em Pernambuco (1710/15) e a Revolução Pernambucana (1817), para citar apenas as mais famosas. 

O século 19 é do Brasil como Reino de Portugal e Algarves e das guerras imperiais. A invasão de Portugal pela França de Napoleão faz com que D. João VI desembarque, em 1808, com a corte e as tropas que se juntam a um Exército já bem organizado que garante a segurança do reino.

As primeiras medidas no reino são a abertura dos portos, uma exigência de ingleses e holandeses. D. João VI criou o Conselho Militar e de Justiça, a Academia Real Militar, a Academia dos Guardas da Marinha, a Fábrica de Pólvora e os Arsenais e também o 1º Regimento de Cavalaria.

Nesse momento, a Inglaterra reina. Em plena expansão imperialista que logo abarcará territórios da Eurasia, da África e das Américas, faz de Portugal uma colônia e também vai se impor sobre os territórios do Prata, domínio de Espanha que já está em declínio, expulsa pelas guerras de independência. 

Militares e República

Já o século 19 é marcado pelos conflitos entre monarquistas, liberais e republicanos. O Brasil não teve guerra de independência. Tudo ocorreu em acordo entre famílias. Salvo a resistência de tropas na Bahia. Com o império herdamos também a submissão aos banqueiros ingleses. 

Com a saída dos portugueses, o novo império se viu obrigado a constituir uma armada para defender sua imensa costa marítima e fluvial. Para isso, foram contratados os mercenários ingleses Lord Cochrane, John Pascoe Grenfell e John Taylor, autores das primeiras façanhas da nascente Marinha brasileira.

Em 1824, a Confederação do Equador — de Alagoas ao Rio Grande do Norte, envolvendo também o Ceará — é sufocada pela Armada e pelas tropas comandadas pelo general Lima e Silva, logo alçado a marechal, conde e finalmente Duque de Caxias. Antes, em 1823, haviam debelado as insurreições independentistas na Bahia, no Maranhão e no Pará. 

A Guerra Peninsular (França napoleônica contra Reino Unido, Espanha e Portugal — 1808-1814) favorece as lutas pela independência nas colonias e beneficia também a consolidação da hegemonia britânica na área econômica. Os confrontos bélicos no Prata envolvendo oligarquias nativas, espanhóis, ingleses, portugueses e brasileiros se estendem de 1810 até 1821, com a anexação da Província Cisplatina.

Leia também: Cannabrava | A nave Bolsonaro está afundando: está armada a maior crise militar da história

Novos conflitos inter-oligárquicos

Na Guerra do Prata, entre os caudilhos argentinos Urquiza e Rosas (Justo José de Urquiza e Juan Manuel de Rosas) e o uruguaio Manuel Oribe, o Brasil interveio com tropas e esquadras a favor de Urquiza, derrotando Oribe e Rosas. 

Como consequência, surge a Confederação Argentina em maio de 1852. A Banda Oriental, ocupada por Portugal em 1816, vira Província Cisplatina em 1822 e só vai ser Uruguai independente com mediação inglesa, em 1828.

Em 1864, começa a maior das guerras imperiais: a da Tríplice Aliança (Argentina, Uruguai e Brasil) contra o Paraguai, que se estende até abril de 1870. Muitos crimes de guerra foram cometidos. Com os paraguaios já vencidos, os brasileiros invadiram Assunção, matando e saqueando. 

A subserviência à coroa britânica iniciada ainda no período colonial vai arrefecer somente no início do século 20 e será substituída pela vassalagem ao novo império, que constrói sua hegemonia a partir do início dos anos 1800, com a formulação da Doutrina Monroe. As guerras inter imperiais que sacudiram a Europa no século 20 vão corroborar para a consolidação do novo império, sob hegemonia dos Estados Unidos.

O que se depreende do exposto é que desde 1500 estamos em guerra civil, guerra do Estado contra o povo.

Um livro interessante, da Imprensa Militar, foi publicado em 1945, escrito pelo tenente coronel A. A. Sousa Ferreira: História Militar do Brasil (Regime Colonial), com prefácio do coronel Santon Teixeira, diretor de Recrutamento, resume bem essa história ao assinalar que

O nosso império territorial é uma conquista das nossas armas, quer o desbravamento do interior pelos bandeirantes, que tinham organização militar, quer a expulsão de invasores ao longo do litoral, que foi feita com o sangue dos nossos soldados, quer a jugulação dos movimentos partidários desagregadores, também obra das forças armadas.

É assim que os militares veem a história. Há como mudar? Haveria se a história fosse outra. 

O que sim dá para mudar é o comportamento civil — da sociedade civil. Desde o ponto de vista gramsciano, é preciso uma profunda revolução cultural para construir sua hegemonia. Protagonicamente assumir a condução da história, realizar um projeto de Nação e configurar um Estado que sirva aos interesses da população. Em outras palavras, sintetizando: descolonizar e decolonizar. 


Assista na Tv Diálogos do Sul

 

   

Se você chegou até aqui é porque valoriza o conteúdo jornalístico e de qualidade.

A Diálogos do Sul é herdeira virtual da Revista Cadernos do Terceiro Mundo. Como defensores deste legado, todos os nossos conteúdos se pautam pela mesma ética e qualidade de produção jornalística.

Você pode apoiar a revista Diálogos do Sul de diversas formas. Veja como:


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

LEIA tAMBÉM

Acordos_de_Genebra_Vietna-França_3
70 anos dos Acordos de Genebra: a vitória de camponeses do Vietnã contra a potência francesa
G20 em quadrinhos | nº 8: Sociedade
G20 em quadrinhos | nº 8: Futuro
image-1200-c98a0a4e5bc2dc2e2419bb901e84fd74
G20 em quadrinhos | nº 7: Sociedade
10259
A epopeia da Marselhesa: hino da revolução francesa