Conteúdo da página
ToggleA liderança russa no desenvolvimento de uma vacina contra o coronavírus SARS-CoV-2 se tornou para o ocidente não apenas uma “má notícia”, mas um desafio ultrajante tanto no campo político quanto financeiro.
Por um lado, a Rússia “antidemocrática e atrasada” parece não ter direito a tais avanços em campos científicos e tecnológicos de ponta. Por outro lado, o simples pensamento de que a Rússia poderá passar à frente das empresas farmacêuticas ocidentais cria “azia”.
Como exemplo de tal desconforto gerado pode-se referir os acordos sobre o fornecimento de 100 milhões de doses da vacina Sputnik V para a Índia.
Não há nada de novo no fato de a Rússia ter se chocado com muitas tentativas de desacreditar o resultado do trabalho dos cientistas russos: grande política, grande dinheiro.
Contudo, da mesa dos senhorios sempre caem migalhas que alimentam os cachorrinhos.
Foi exatamente isso que aconteceu com a publicação dos resultados dos testes da vacina russa Sputnik V em uma das revistas científicas mais conceituadas no mundo, The Lancet.
Sputnik News
O Centro Nacional de Epidemiologia e Microbiologia Gamaleya apresentou à revista o protocolo clínico completo dos testes da vacina Sputnik V
Críticas
A publicação acabou gerando um mar de críticas. Uma notícia foi a publicação de uma carta aberta na qual o professor de biologia Enrico Bucci, da Universidade Temple, na Pensilvânia (EUA), expressou receios sobre erros que “possivelmente ocorreram nos testes russos”. Em seu apoio se juntaram mais de 20 cientistas ocidentais.
Tratando do assunto, The Lancet sugeriu aos cientistas russos que respondessem às questões de seus homólogos ocidentais, o que foi feito.
O Centro Nacional de Epidemiologia e Microbiologia Gamaleya apresentou à revista o protocolo clínico completo dos testes da vacina Sputnik V.
Enquanto isso, o diretor-geral do Fundo Russo de Investimento Direto (RFPI, na sigla em russo), Kirill Dmitriev, publicou uma declaração na qual comentou detalhadamente as reclamações principais dos críticos, aconselhando aos cientistas ocidentais a tirarem a trave de seus olhos.
“Empresário da ciência”
Além disso, tal problema não se observa somente em materiais científicos nos quais se concentraram os pesquisadores russos. Além de seu título científico, em uma matéria da BBC Enrico Bucci é chamado de “conhecido combatente contra a pseudociência”, contudo, seria melhor o chamar de “empresário da ciência”.
Em 2016, Bucci fundou a companhia Resis Srl., especializada na verificação da autenticidade, exatidão e boa-fé de trabalhos científicos.
Tal tema é consideravelmente atual na ciência moderna. Recentemente, erros de cientistas, muitos dos quais grosseiros, têm sido fisgados.
Não se trata necessariamente de engano ou má intenção de cientistas, com frequência trata-se de erros naturais, que acabam sacrificando a reputação dos cientistas e por vezes de institutos inteiros.
Para evitar tais problemas, autores e estruturas de pesquisa recorrem a auditorias independentes de seus próprios textos feitas por empresas especializadas antes da publicação.
Em particular, a empresa de Bucci foi contratada para tal fim pelo Instituto Fritz Lipmann, em torno do qual ecoou um grande escândalo devido a erros grosseiros em trabalhos publicados, um caso que foi tratado pela revista Nature um ano atrás.
Contudo, a atividade de Bucci traz em si limitações éticas, algo bem compreendido pelo mesmo.
Ainda em dezembro de 2019, a Nature publicou uma matéria dedicada à “limpeza e honestidade” de trabalhos científicos e da qual Bucci foi coautor. Na ocasião ficou indicado de maneira franca o fato de Bucci ter um conflito de interesses.
Em outras palavras, quando o dono de uma empresa comercial fala publicamente sobre a atividade na qual ela se especializa, de fato isso se torna publicidade para sua empresa.
No entanto, tal fato foi ignorado no caso da “denúncia” da vacina russa.
O Ocidente acabou por usar a carta aberta de Bucci para lançar mais um ataque contra os trabalhos científicos russos na esperança de atingir sua liderança, ou pelo menos a enfraquecer.
Por sua vez, o cientista acabou ganhando com o caso da vacina russa uma notoriedade que ele não poderia nem imaginar.
Sem dúvidas, isso lhe trará vantagens na forma de contratos comerciais lucrativos, embora tal tipo de maquinação não tenha nada que ver com medicina e com a salvação da vida de centenas de milhares de pessoas.
Irina Alksnis especial para Sputnik Brasil
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
Veja também