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ToggleO conto ideológico: A narrativa do merecimento
Os sistemas precisam construir a justificação ideológica da sua razão de ser. A exploração, ou seja, a apropriação do excedente social por uma minoria, vai buscar uma explicação aceitável, uma narrativa, como hoje dizemos, ainda que enganadora. A superestrutura organizada de poder buscará formar um sistema articulado que se sustente. Será normalmente a combinação de um mecanismo de extração da riqueza social com uma ampla construção ideológica destinada a explicar a exploração em nome de algum tipo de merecimento das classes superiores, justificando uma forma de apropriação do trabalho de terceiros (escravos, servos, assalariados ou, ainda, terceirizados, segundo a época e as regiões), e o uso da força policial e militar em nome da ordem e da segurança do povo.
As “narrativas” não constituem algo novo. Os africanos podiam ser escravizados porque não tinham alma, os servos precisavam obedecer porque o rei era um escolhido de Deus e os senhores feudais tinham sangue azul, os assalariados precisam sobreviver com o que recebem porque os mais ricos são mais ricos por merecimento.
A cada situação, de fato, corresponde um conto de fadas, frequentemente grosseiro, mas suficientemente repetido pelos que controlam e formatam a opinião pública, para “pegar” e se tornar lugar-comum. Como foi que acreditamos durante séculos no conto do “sangue azul”, do rei ser rei “por direito divino”? Com que facilidade assumimos como verdadeiro aquilo que satisfaz o que queremos acreditar, por maior bobagem que seja! O essencial é que seus preconceitos profundos satisfaçam os nossos. O processo se amplia radicalmente quando há uma massa de pessoas dispostas a acreditar na mesma bobagem.
A cretinice coletiva é um flagelo da humanidade. Uma belíssima leitura a respeito é o clássico The March of Folly [A marcha da insensatez], de Barbara Tuchman. “A cabeça oca [wooden-headedness], fonte do autoengano, é um fator que joga um papel notavelmente amplo em governos. Consiste em avaliar uma situação em termos de noções fixas preconcebidas, ignorando ou rejeitando qualquer sinal em contrário. Consiste em agir de acordo com o desejo, sem permitir que os fatos alterem a visão.”1 Homo sapiens?
Mudam os sistemas, evoluem as tecnologias, mas não muda o esquema. Na fase atual, da economia do conhecimento, coloca-se o espinhoso problema da legitimidade da posse do conhecimento. A mudança é radical em relação aos sistemas anteriores: a terra pertence a um ou a outro, as máquinas têm proprietário, são bens “rivais”. No caso do conhecimento, como vimos, trata-se de um bem cujo consumo não reduz o estoque. Se transmitimos o conhecimento a alguém, continuamos com ele, não perdemos nada, e, como o conhecimento transmitido gera novos conhecimentos, todos ganham. A tendência para a livre circulação do conhecimento, para o bem de todos, torna-se, portanto, poderosa. Aqui, faz-se necessário para as oligarquias – além, é claro, de mecanismos inovadores de extração do excedente social – um novo conto de fadas, solidamente reforçado pelo porrete das forças de segurança contra os teimosos que não acreditam em contos de fadas.
Assim é a base da nossa organização social: um tripé composto pelo mecanismo de extração do excedente; pelo conto de fadas, elegantemente chamado de “narrativa”; e pelo porrete para quem não acredita no conto. O peso relativo de cada subsistema de poder muda segundo as circunstâncias. O povo entende perfeitamente o porrete, entende bem menos de onde veio o conto de fadas e não entende nada dos mecanismos econômicos. Os que querem explicitar ou transformar os mecanismos econômicos e os que não acreditam no conto de fadas são evidentemente os primeiros a levar o porrete. Gandhi, Mandela e Lula são, de certa forma, companheiros de cárcere.
Os diversos modos de produção – escravidão, feudalismo, capitalismo – criaram com esses três elementos uma lógica sistêmica que assegurou a sua sobrevivência durante séculos. Mas, quando os mecanismos econômicos na base produtiva da sociedade mudam, é o conjunto do edifício que é abalado. Os nobres dançavam em Versalhes, recomendavam brioches aos que não tinham pão, sem compreender que estavam pendurados num luxuoso limbo artificial, com o solo desaparecendo sob os seus pés. O exercício que aqui fazemos, essa articulação de argumentos, parte da constatação de que os mecanismos econômicos e a base produtiva mudaram e, ainda que subsistam os simulacros da fase democrática e de capitalismo concorrencial, os tempos são outros. Entre Versalhes e Davos, há semelhanças.
A principal narrativa do capitalismo industrial era simples: o enriquecimento dos mais ricos se traduz em fábricas, logo, em empregos, produtos e impostos. E o dinheiro na mão dos pobres se traduziria apenas em consumo improdutivo. A grande transformação, evidentemente, é que o capitalismo atual, que enriquece à custa da “bola de neve” financeira, é ele próprio improdutivo: trava a capacidade produtiva em vez de dinamizá-la. O capitalismo da era “sem capital” está à procura de uma narrativa que justifique uma explosiva concentração de riquezas nas mãos de quem não produz, pelo contrário, trava as iniciativas de quem poderia produzir. Nesse sentido, o imenso poder do sistema informacional/financeiro é muito frágil. O ódio que se expande no planeta ontra os sistemas financeiros de exploração e os sistemas virtuais de controle está simplesmente ligado ao fato de que as pessoas começam a entender a disfuncionalidade do sistema e o engodo a que estão submetidas. A narrativa da era industrial simplesmente não cola para o enriquecimento improdutivo dos rentistas. O que ainda protege o sistema é, curiosamente, a dificuldade da população de compreender os sistemas financeiros.
Para o novo modo de produção que surge, mais importante do que controlar os meios de produção tradicionais é controlar os fluxos financeiros e os meios de comunicação e de informação da população, apropriar-se do mecanismo de mudança das leis por meio do controle dos parlamentos e dos sistemas judiciários, comprar universidades e instituições de pesquisa e tudo que se refere ao conhecimento, gerar plataformas de informação e comunicação que entreguem o controle sobre a própria intimidade das pessoas. Os mecanismos econômicos mudaram e continuam mudando de forma acelerada, o porrete já canta, e o conto de fadas correspondente ainda está à procura de algum argumento que faça sentido. Como justificar uma imensa concentração de riqueza nas mãos de grupos que pouco ou nada produzem, ou a apropriação destrutiva de recursos naturais que farão falta às gerações futuras? No sistema feudal pelo menos havia a justificativa de que o castelo do nobre protegeria os servos em tempos de guerra. Os barões do sistema financeiro têm o que a oferecer em contrapartida do que extraem? O Consenso de Washington se parece cada vez mais com o pacto da nobreza no Congresso de Viena em 1815. As elites sempre tiveram propensão a acreditar cegamente na legitimidade dos seus privilégios. Ou, pelo menos, na sua capacidade de criar o conto que os legitime.
Pawel Kuczynski
Mudam os sistemas, evoluem as tecnologias, mas não muda o esquema.
O estreitamento dos espaços individuais
Tendo a seguir a visão de Wolfgang Streeck, para quem, de certa forma, o animal que surge não cabe dentro da democracia. Ele pode até conviver com o voto, sem dúvidas; mas a que ponto o voto hoje tem sentido, quando as pessoas já não acreditam na sua utilidade, quando se desagregam os subsistemas de organização da participação da sociedade e os mecanismos básicos para que a democracia funcione? Que instrumento efetivo de representação constituem os partidos Democrata e Republicano nos Estados Unidos? O que subsiste dos sindicatos, fragmentados na mesma proporção em que a chamada classe trabalhadora se fragmenta e se desarticula em profissões e níveis diferenciados? O que subsiste das organizações da sociedade civil, perseguidas e restringidas nas suas ações por toda parte? A massa popular não organizada não representa nenhum poder efetivo de controle. Pode haver centenas de milhões de insatisfeitos, mas uma minoria organizada e articulada exercerá um poder muito mais significativo: é a força de penetração dos interesses pontuais ante os interesses difusos das maiorias. Naomi Klein apresenta uma excelente descrição dessa capacidade de ruptura por parte das minorias no poder tanto em Adoutrinadochoquecomo em Nãobastadizernão.
Por outro lado, as novas tecnologias permitem, hoje, um controle individualizado das pessoas que está progredindo com impressionante rapidez. A invasão da privacidade, atualmente, é avassaladora, e as pessoas em geral estão ou pouco informadas, ou indiferentes. Na rotina e monotonia do nosso cotidiano, nos pequenos embates da vida, a quem vai interessar bisbilhotar o que conosco, acontece? A realidade é que interessa, e muito. A pessoa comum vai sentir o impacto da apropriação das suas informações pessoais, por diversos sistemas, ao buscar um emprego, ao contratar um seguro, ao abrir uma conta no banco, ao fazer uma compra no crediário, ao pedir um visto, ao contratar um plano de saúde, ao tentar se proteger de ataques online e bullyingcibernético. Haver informações detalhadas sobre nós – nome, endereço fotos e detalhes íntimos – na mão de poderosas instituições ou simplesmente de irresponsáveis e de inúmeros grupos comerciais, religiosos ou ideológicos é algo que pode afetar profundamente nossa vida, tanto individual como coletivamente.
O primeiro ponto é que as tecnologias tornaram a invasão da privacidade simples e barata. Na era da informática, ter informações pessoais detalhadas e individualizadas sobre milhões de pessoas não representa nenhum problema técnico. Os algoritmos permitem o tratamento e cruzamento de dados de tal maneira que se torna fácil para agentes interessados, sejam governos, sejam empresas ou organizações criminais, individualizar as informações para focar apenas uma pessoa, ou uma família, ou um grupo de trabalhadores de uma empresa, ou um tipo de doente e assim por diante.
A invasão de privacidade pode igualmente ter caráter estratégico nas áreas política e econômica. Para a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (National Security Agency – NSA), gravar conversas privadas entre Angela Merkel e Dilma Rousseff constitui um instrumento de política internacional, inclusive com o repasse das informações para outras instituições interessadas em outros países. Uma Cambridge Analytica brincar de trambicar eleições por meio dos dados do Facebook tornou-se uma obviedade. Acessar as conversas internas de governos antes de reuniões internacionais, para conhecer de antemão as propostas que virão à mesa em reuniões internacionais, constitui uma vantagem estratégica que provocou protestos de países da União Europeia.
Invadir os computadores da Petrobras para ter acesso aos dados sigilosos sobre reservas do pré-sal, iniciativa facilitada com o pretexto de combate à corrupção, constitui espionagem política e industrial com impactos evidentes, de interesse imediato dos grupos internacionais da área. Não é apenas a privacidade individual e pessoal que está em jogo. Uma empresa privada como a multinacional Serasa Experian decide controlar a nossa vida financeira tal como a Fitch, a Moody’s e a Standard & Poor’s se dão ao luxo de avaliar a confiabilidade dos nossos governos. Alguém as elegeu? Existe algum instrumento equivalente para controlar os próprios sistemas financeiros?
Por trás desse acelerado processo de transformação, naturalmente, está a tecnologia. Os avanços são absolutamente impressionantes, e as transformações ultrapassam radicalmente em ritmo os lentos avanços da legislação, da regulamentação, da própria mudança cultural. Os envelopes podiam ser fechados e lacrados, os dossiês podiam ser guardados em cofres, as portas de uma reunião podiam ser trancadas, as fotos íntimas ou simplesmente familiares dormiam na paz dos álbuns. Hoje tudo são sinais magnéticos, informações imateriais acessíveis por toda parte e passíveis de serem armazenadas, tratadas com tecnologias de big data, analisadas por meio de algoritmos, transmitidas para todas as partes do planeta em instantes.
O processo é profundamente assimétrico. Como indivíduos somos radicalmente vulneráveis, mas os gigantes que manejam o sistema, seja no nível governamental, como no caso da NSA ou do britânico Quartel-General de Comunicações do Governo (Government Communications Headquarters – GCHQ), por onde passa o essencial dos fluxos de informação do mundo, seja no nível da informação, como Alphabet (Google), Facebook, Microsoft, Apple, Amazon, Verizon e poucos mais, simplesmente não permitem que tenhamos acesso nem à quantidade de informações captadas, nem às decisões sobre o seu uso. A não ser em raros momentos de vazamentos heroicos, como no caso dos arquivos revelados por Edward Snowden ou das iniciativas de Julian Assange, a população não tem ideia do que acontece com as informações. Na prática, ela se encontra impotente. A realidade é que estamos avançando com muita rapidez para um tipo de Big Brother em que o poder das corporações associado ao poder do Estado muda radicalmente o conceito de cidadão. Obter a submissão das populações será cada vez mais fácil, na medida em que algoritmos identificarão os indivíduos e os grupos inconformados com muita antecipação. O porrete poderá ser reservado para os extremos. Para a massa, bastará o conformismo gerado pelo controle difuso e pelo conto de fadas.
No conjunto, estamos assistindo a uma transformação nas superestruturas, nas formas de organização do poder, que vão se adequando com atraso às profundas mudanças na base produtiva. O tempo do capitalismo com democracia, voto e cidadãos está cada vez mais distante, ou menos significativo. As superestruturas em construção são outras.
As superestruturas do poder, as regras do jogo herdadas – o trabalhador recebendo o que corresponde à sua força de trabalho e o capitalista recebendo o fruto do seu capital –, sugerindo, portanto, que o sistema seria justo e produtivo, perdem claramente a sua legitimidade no novo contexto. Os governos, articulados com as corporações, recorrem a meios cada vez menos democráticos, tentando equilibrar um sistema travado na base da força. Há um desajuste crescente entre a base econômica do século XXI e as regras do jogo herdadas dos séculos passados. É um desajuste sistêmico, não muito diferente do que sofria a superestrutura do sistema feudal, incapaz de se equilibrar frente a uma base econômica que tinha evoluído para a era da manufatura e do capitalismo industrial em expansão.
Com todo o seu poder, e apesar de uma nova coerência sistêmica que essa organização busca, há uma fraqueza básica: o enriquecimento no topo da pirâmide é claramente improdutivo, e a narrativa do merecimento está se desfazendo rapidamente. Em particular, em termos econômicos, não é produzindo ou estimulando a produção que o sistema se apropria do excedente, mas, pelo contrário, gerando escassez. A concentração de renda e de patrimônio aprofunda a desigualdade, e hoje os pobres têm consciência do massacre que sofrem. E são muitos. As formas de produção são um desastre para o meio ambiente e as pessoas no mundo começam a se mobilizar. Tal como funciona, em termos sociais, ambientais e econômicos, o sistema está se tornando cada vez mais disfuncional. As oportunidades surgem, naturalmente, da necessidade e da evidente possibilidade de reversão do que gera atraso, tensões e insegurança no planeta. Os sacrifícios e dramas sociais, econômicos e políticos que sofremos são simplesmente desnecessários. Insensatez, diria Barbara Tuchman.
O problema básico é entender melhor o que está nascendo, quais transformações das regras do jogo serão necessárias para a sociedade que surge – com os seus dois grandes eixos, a economia do conhecimento e o sistema financeiro – dotar-se de regras do jogo e de um sistema político adequados. Por enquanto, o que temos são regras ferrenhas de proteção da propriedade privada, quando a economia está fundada num fator de produção, o conhecimento, generalizável para o conjunto da sociedade. E bancos centrais sem dentes para controlar o sistema global da moeda virtual, em que os bancos privados emitem e controlam os recursos financeiros. O resultado é um rentismo generalizado sem a correspondente contribuição produtiva. E governos nacionais fragilizados frente a uma economia financeira globalizada que lhes escapa. Quando Stiglitz recorre ao título Rewriting the Rules of the American Economy [Reescrevendo as leis da economia estadunidense] para a sua crítica do sistema atual, está abrindo a porta para uma revisão muito mais ampla de como nos organizamos como sociedade. Martin Wolf, comentarista-chefe de economia do Financial Times, conclui corretamente que “o sistema perdeu a sua legitimidade”. Mas o sistema opressivo que vemos no horizonte pode se expandir na própria medida da sua falta de legitimidade.
1Barbara W. Tuchman, The March of Folly: from Troy to Vietnam, New York: Knopf, 1984, p. 8.
Ladislau Dowbor é economista fundador e colaborador da Diálogos do Sul.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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