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Mercosul chega aos 30 anos desconhecido do grande público, com Brasil distante e comércio enfraquecido

Os cidadãos não enxergam a relevância do Mercosul, não cobram dos políticos que atuem a favor da integração. Classe dirigente tem visão incompleta da relevância do bloco
Ricardo Westin
Brasília (DF)

Tradução:

Na avaliação do economista Luciano Wexell Severo, o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) vive um dos piores momentos de seus 30 anos de existência, em razão das trocas comerciais em queda dentro do bloco e também por causa do afastamento do Brasil do papel de líder do grupo.

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“O que o Brasil exporta para a Argentina, o Paraguai e o Uruguai são majoritariamente produtos industrializados. Quando esse comércio cai, como agora, nós perdemos renda, emprego, impostos, ciência, tecnologia. Mesmo assim, não temos visto o governo se mobilizar para devolver o protagonismo ao Mercosul” — diz Severo, que é professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e coordenador do Observatório da Integração Econômica da América do Sul.

O 30º aniversário do Mercosul foi celebrado nesta sexta-feira (26). O bloco nasceu em 26 de março de 1991, quando os presidentes Fernando Collor (Brasil), Carlos Menem (Argentina), Luis Lacalle (Uruguai) e Andrés Rodríguez (Paraguai) assinaram o Tratado de Assunção.

Severo afirma que os brasileiros, em geral, ainda ignoram a existência do Mercosul:

Como os cidadãos não enxergam a relevância do Mercosul, não cobram dos seus representantes políticos que atuem a favor da integração. A própria classe dirigente tem uma visão incompleta da relevância do Mercosul para o Brasil”.

Os cidadãos não enxergam a relevância do Mercosul, não cobram dos políticos que atuem a favor da integração. Classe dirigente tem visão incompleta da relevância do bloco

Fundación para la Integración Latinoamericana Fonte: Agência Senado
"O Brasil deveria reassumir a liderança do Mercosul e reanimar o comércio com os vizinhos"

Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida por Severo à Agência Senado.

Agência Senado — O Mercosul não tem um peso grande no comércio exterior do Brasil. Do valor total dos produtos que nós importamos em 2020, vieram 6,5% dos países do Mercosul. Do valor dos produtos que exportamos, 6% foram para os países do Mercosul. Sendo esses números relativamente baixos, o Brasil precisa mesmo dar prioridade aos sócios do bloco?

Luciano Wexell Severo — É preciso verificar o tipo de produto que exportamos para o mundo e o tipo que exportamos para o Mercosul. Para o mundo, nós majoritariamente vendemos produtos primários, matérias-primas, como soja, carne de frango e de vaca, celulose, minério de café. Para o Mercosul, 85% das nossas exportações são de produtos industrializados, como automóveis, tratores, motores, calçados, alimentos processados, bebidas. Na comparação com os produtos primários, os industrializados acionam uma cadeia produtiva bem mais extensa e complexa e geram mais emprego, renda, arrecadação tributária. O comércio com o Mercosul, com produtos de alto valor agregado, beneficia as pequenas e grandes empresas do Brasil, as cooperativas, os trabalhadores e contribui com o desenvolvimento das nossas universidades, dos nossos institutos de pesquisa, da nossa ciência, da nossa tecnologia. Ainda há muito espaço para o comércio entre o Brasil e os demais países do Mercosul crescer.

“O Brasil deveria reassumir a liderança do Mercosul e reanimar o comércio com os vizinhos”

Os críticos costumam dizer que, na escala da integração regional, o Mercosul está nos níveis iniciais, bem distante da União Europeia, que já se situa no topo. Enquanto os europeus conseguiram se transformar em união econômica, nós apenas chegamos a união aduaneira. Esse é mesmo um ponto fraco do Mercosul?

A teoria clássica da integração estabelece uma espécie de passo a passo a ser seguido pelos países. São cinco passos. Primeiro, eles eliminam as barreiras alfandegárias entre si. Depois, criam impostos comuns de importação no comércio com países de fora do bloco. Em seguida, liberalizam o trânsito de mão de obra e o fluxo de capital. Depois disso, eles fundam um Banco Central para orientar as políticas macroeconômicas de todos os países, incluindo a meta de inflação, a taxa de câmbio e o limite de gasto e endividamento dos governos, de modo a garantir o equilíbrio fiscal. Para concluir o processo, eliminam as moedas locais e adotam uma moeda única.

A União Europeia percorreu todos os cinco passos. O Mercosul, por sua vez, chegou ao segundo. A comparação, contudo, não é adequada. A Europa começou o processo de integração ao fim da 2ª Guerra Mundial, há mais de 70 anos. No caso do Mercosul, a integração está completando apenas 30 anos. De qualquer forma, essa teoria clássica, ditada por pensadores europeus, tem recebido muitas críticas. O principal problema está nos dois últimos passos da integração. A sede do Banco Central Europeu fica na Alemanha, o país mais rico. Foi de lá, no momento de criar a moeda única, no fim da década de 1990, que partiram as instruções que forçaram Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha, os países mais pobres da zona do euro, pejorativamente conhecidos pela sigla Piigs [em referência a pigs, porcos em inglês], a cumprirem uma dieta acelerada e cruel de emagrecimento, com redução do gasto público, corte de direitos sociais, privatização de serviços e empresas estatais. Além disso, assim que perderam suas moedas nacionais, esses países também perderam a prerrogativa de controlar as próprias economias por meio da desvalorização das respectivas moedas.

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Os países menos desenvolvidos têm hoje muitas queixas a respeito da integração. Nos últimos 20 anos, os Piigs vêm experimentando desindustrialização, empobrecimento da população, deterioração da qualidade de vida. Ficaram fortes apenas no setor de serviços. Parte deles, inclusive, ameaça abandonar a zona do euro. Não foi à toa que a Grã-Bretanha aceitou fazer parte da União Europeia sem abrir mão da libra. O Brexit [em 2020], portanto, não foi surpresa para quem já acompanhava a integração europeia mais de perto.

A União Europeia, então, não deveria ser considerada modelo para o Mercosul?

Não deveria. No Mercosul, temos especialistas em relações internacionais e economia suficientes para pensar caminhos alternativos, mais adequados à nossa realidade. Os críticos costumam desdenhar do Mercosul afirmando que se trata de uma união aduaneira incompleta, já que o primeiro e o segundo passo da integração foram cumpridos, mas não integralmente. Não fizemos a liberalização total do comércio entre as nossas economias. Cada país pôde criar uma lista de exceções, estabelecendo impostos de importação a determinados produtos dos demais sócios do Mercosul. O objetivo é defender setores da economia nacional da concorrência externa.

Trata-se, sim, de protecionismo. Do ponto de vista liberal, como se sabe, isso significa fracasso. Do ponto de vista político e estratégico, porém, isso é imprescindível. O Paraguai, por exemplo, impõe taxas às sandálias e aos móveis fabricados no Brasil. Se a liberalização fosse irrestrita e obrigatória, as suas indústrias tradicionais de sandálias guaranis e móveis de vime acabariam morrendo. As exceções protecionistas são necessárias para garantir a sobrevivência de setores que são estratégicos, seja porque empregam muitos jovens, seja porque são compostos de pequenas empresas, seja porque geram significativa renda tributária. No Mercosul, a liberalização não é total, mas seletiva. Existe apenas quando não é negativa para os países envolvidos.

Veículos são principal produto de exportação do Brasil para países do Mercosul (foto: Arquivo/Agência Brasil)Então a criação de uma moeda única no Mercosul, como há na Europa, também seria desaconselhável?

A União Europeia é uma caixa de aço. Para conseguir entrar nela, o país precisa se dobrar, se comprimir e até sofrer fraturas, por causa das exigências de política fiscal. Foi o que aconteceu com os Piigs e é o que acontecerá com a Ucrânia e a Turquia se o processo de ingresso delas se concretizar. O Mercosul, por sua vez, é uma caixa de borracha. Ela se adapta ao formato dos diferentes países. As gigantescas assimetrias entre eles, incluindo o porte das economias e as estruturas produtivas, são levadas em consideração. A economia da Argentina equivale a 25% da economia do Brasil. A economia do Uruguai equivale a 10% da economia da Argentina. A economia do Paraguai é um pouco menor que a do Uruguai. Se houvesse um Banco Central do Mercosul, ele certamente se localizaria na Avenida Faria Lima, em São Paulo, ou na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. Caso se adotasse uma moeda única, ela seria muito próxima do real. Os demais países seriam obrigados a acompanhar o ritmo e as regras do Brasil. Em especial do Paraguai e do Uruguai, isso exigiria sacrifícios absurdos. Eles, depois de um tempo, acabariam abandonando o Mercosul.

Por que é importante que o Brasil se preocupe com a economia do Paraguai ou do Uruguai, por exemplo?

Se a liberalização fosse completa, as indústrias do Brasil poderiam invadir o vizinho com os nossos produtos. No primeiro momento, isso até seria benéfico para nós. Depois, contudo, veríamos que se trata de um tiro no pé. Se no país vizinho houver desemprego, falências e crise, a sua economia encolherá, haverá ressentimento em relação ao Brasil e o Mercosul caminhará rumo à ruína. Não podemos olhar apenas o curto prazo. Quando os nossos sócios no Mercosul crescem, nós ganhamos espaço para crescer também. O Brasil, para alicerçar o seu processo de desenvolvimento, precisa vincular-se mais aos sócios. Isso inclui comprar mais deles. Hoje há produtos que o Brasil importa da Ucrânia, do Marrocos e de Belarus e perfeitamente poderiam ser comprados dos vizinhos. Se o Paraguai e o Uruguai não se integrarem com o Brasil, vão acabar se integrando com a China, com os Estados Unidos ou com a Europa.

Além disso, quando todos os países do bloco crescem, inclusive os menores, o Mercosul como um todo ganha musculatura para negociar melhores acordos com outros parceiros. E não apenas acordos comerciais, mas também políticos. O Brasil precisa encarar o Mercosul como um trampolim para a sua melhor inserção no mundo.

Como vê o atual momento do Mercosul, passados exatamente 30 anos da assinatura do Tratado de Assunção?

O Mercosul, na minha avaliação, vive um dos piores momentos. O quadro atual é de esvaziamento e paralisia. Desde a criação do bloco até algum tempo atrás, o Brasil, pelo tamanho do território, da população e da economia, exercia naturalmente a liderança e investia na integração. Isso começou a mudar em 2016, quando passou a se afastar do Mercosul tanto em termos políticos quanto em termos comerciais.

A desintegração política se tornou explícita durante a pandemia. O Mercosul pouco fez diante da crise sanitária, enquanto outros blocos regionais do mundo conseguiram dar respostas com agilidade, criando fundos para mitigar os efeitos da doença, cuidando do controle de fronteiras, tomando medidas para que o comércio pudesse prosseguir.

Diante da paralisia do Mercosul, os sócios estão deixando de atuar articuladamente. Veja o caso da Ford, que, após um século de atividades no Brasil, alimentando toda uma cadeia de suprimentos e gerando inúmeros empregos direitos e indiretos, decidiu parar de fabricar carros no nosso país para concentrar a produção na Argentina. O Mercosul, que já teve uma política de integração das cadeias do setor automotivo, nem sequer interveio. A Ford percebeu o descompasso entre os países e tomou a sua decisão. Teria sido meramente ruim se a empresa apenas tivesse saído do Brasil. Foi muito pior porque saiu do Brasil para apostar justamente no vizinho. Países que deveriam ser sócios estão se transformando em concorrentes.

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Veja também o caso da China. Atualmente, os chineses compram de nós apenas a soja em grão. Não compram o nosso óleo de soja, processado, porque custa o dobro do grão. Eles mesmos processam o grão. Note que 75% da soja que a China compra do mundo tem origem no Brasil, na Argentina e no Paraguai. Os três formam praticamente uma Opep da soja [referência ao grupo dos maiores produtores mundiais de petróleo, que ditam as regras do mercado], mas não conseguem agir como tal. Se houvesse articulação, os nossos países poderiam pressionar a China a comprar o nosso óleo de soja. Quando o Mercosul fica abandonado, o Brasil perde muito.

Neste cenário, o Uruguai decidiu se movimentar para tentar ganhar o direito de negociar individualmente com o resto do mundo, sem precisar do Mercosul para isso. Se o país tiver êxito nessa flexibilização do bloco, ideia que recentemente ganhou o apoio dos governos do Brasil e do Paraguai, será o extermínio do Mercosul. O próprio Uruguai, como país, se enfraquecerá. Que força tem ele para negociar sozinho com a China, um país com um PIB [produto interno bruto] 200 vezes maior que o dos uruguaios?

Comércio do Brasil com o Mercosul

Nos primórdios do Mercosul, nos anos 1990, dizia-se que a grande ameaça do bloco eram os Estados Unidos e o seu projeto de criar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), que inclusive englobaria o Mercosul. A Alca acabou não saindo do papel. Que ameaças externas o Mercosul tem hoje?

No jogo político e econômico mundial, os demais blocos e países têm interesse no enfraquecimento do Mercosul. Qualquer grande estrategista, seja chinês, alemão ou estadunidense, sabe a força que um bloco do hemisfério sul pode deter. No Mercosul, temos grandes quantidades de petróleo, gás, água, lítio, carne, soja, celulose e minérios, que são produtos estratégicos buscados pelo mundo inteiro. Os países do bloco estabeleceram o comércio em moeda local, sem a utilização do dólar. Simbólica ou concretamente, é algo que ainda hoje fere os interesses dos Estados Unidos e arranha uma relação centenária de dependência.

O Mercosul continua incomodando os estadunidenses, mas hoje as maiores ameaças são a China e a União Europeia. No caso da China, porque o país em pouco tempo se tornou o nosso maior parceiro comercial comprando de nós apenas produtos primários. No caso da União Europeia, por causa do acordo de livre comércio entre os dois blocos que, após anos de resistência dos governos do Brasil e da Argentina, acabou sendo desengavetado e assinado em 2019. A resistência anterior se explica pelo fato de o acordo não ser favorável ao Mercosul. É evidente que os nossos produtos industrializados não têm condições de competir no mercado europeu, enquanto os produtos europeus podem dominar facilmente o nosso mercado. E os nossos produtos primários, que seriam o grande trunfo, dificilmente conseguirão vencer a pressão dos agricultores europeus e furar o protecionismo histórico deles. Se o acordo não sair do papel, será pela oposição deles, e não pela nossa.

Quando o comércio com o Mercosul cai e o comércio com a China e a Europa aumenta, o parque industrial do Brasil é desestimulado, o desemprego se amplia e o país fica à mercê da variação dos preços internacionais da soja, da carne, da celulose, do petróleo. Não faz sentido que, mesmo dispondo de produtos primários de toda ordem e de sobra e das indústrias necessárias para processá-los, voltemos a ser meros exportadores de matérias-primas e importadores dessas mesmas matérias-primas processadas.

Ao longo da década de 2010, assistimos a rupturas políticas no Paraguai, no Brasil, no Equador e na Bolívia. O Equador é um país associado ao Mercosul, e a Bolívia está em processo de adesão como membro pleno. Essas rupturas contribuíram com o enfraquecimento do bloco, para o benefício dos nossos competidores internacionais.

A população brasileira de uma forma geral tem consciência da importância do Mercosul para o país?

Não tem consciência, e isso é um problema. Pela nossa dimensão territorial e cultural, acreditamos que somos autossuficientes e não precisamos dos vizinhos. Isso é falso. A indústria brasileira se realiza ainda mais quando há a integração. O trabalhador de uma fábrica de carro, de tinta ou de alimento processado muitas vezes não sabe que ele tem emprego e salário porque aqueles produtos são vendidos para os países vizinhos. Como os cidadãos não enxergam a relevância do Mercosul, não cobram dos seus representantes políticos que atuem a favor da integração. A própria classe dirigente tem uma visão incompleta da relevância do Mercosul para o Brasil. A nossa história econômica oscila entre avanços e retrocessos. Estamos num momento de retrocesso, mas acredito que logo voltaremos a avançar. Para isso, é imprescindível que o governo brasileiro entenda que a integração com os vizinhos não tem ideologia. No passado, de distintas formas, atuaram pela integração presidentes tão díspares quanto João Goulart e Costa e Silva, Getúlio Vargas e Jânio Quadros, Luiz Inácio Lula da Silva e Ernesto Geisel, José Sarney e Fernando Collor. A integração regional precisa continuar acima das cores políticas.

Ricardo Westin

Edição: Nelson Oliveira

Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy

Infogafia: Cláudio Portella

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)


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