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Erminia Maricato: "Reconquista da democracia brasileira passa pelas cidades"

"Precisamos recolocar os problemas das cidades no centro do debate nacional ou não alcançaremos as mudanças necessárias a convivência democrática"
Luís Eduardo Gomes
Sul 21
Porto Alegre (RS)

Tradução:

A recuperação da democracia no Brasil passa por recolocar os problemas das cidades no centro do debate nacional ou ela não irá acontecer. Esse é o diagnóstico da arquiteta urbanista Erminia Maricato.

Um dos principais nomes do País em temas relacionadas a habitação e urbanismo, Maricato passou por Porto Alegre na última semana para participar do 21º Congresso Brasileiro de Arquitetos (CBA), que ocorreu entre os dias 9 e 12 de outubro. Foi dela a palestra que abriu o evento. Na última quinta-feira (10), Erminia conversou com o Sul21 sobre o papel da política urbana na conjuntura atual.

“Você tem que pensar que está discutindo a Reforma da Previdência com uma pessoa que está gastando mais de meio salário mínimo em transporte todos os dias, o que é o caso das empregadas domésticas em São Paulo. Elas estão vindo de fora do município e gastando R$ 500 por mês. É mais de meio salário mínimo por mês em transporte. E sabe qual é a renda média das empregadas domésticas? R$ 780, segundo o IBGE. Menos de R$ 800. Ou seja, a vida das pessoas está inviável. Você vai querer discutir a Previdência, que é importante para ela, mas ela está com problema hoje. Então, essa esquerda é surda, está desvinculada dos problemas que o povo está vivendo”, diz.

Professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano da cidade de São Paulo entre 1989 e 1992, secretária-executiva do Ministério das Cidades entre 2003 e 2005, Maricato faz parte atualmente do projeto BR Cidades, um fórum de acadêmicos, pesquisadores, intelectuais e lideranças populares criado dentro de uma iniciativa da Frente Brasil Popular para pensar propostas de política urbana. “Nós queremos repensar as cidades do Brasil e começamos a elaborar um projeto para oito temas. Além dos antigos, como mobilidade, saneamento, habitação, saúde e educação, incluímos agora gênero, raça e juventude e cultura”, diz.

"Precisamos recolocar os problemas das cidades no centro do debate nacional ou não alcançaremos as mudanças necessárias a convivência democrática"

Foto: Luiza Castro/Sul21
Erminia Maricato participou do 21º Congresso Brasileiro de Arquitetos, realizado em Porto Alegre, e concedeu entrevista ao Sul21

A seguir, confira a entrevista com Erminia Maricato.

Sul21 – Há perspectivas para as questões da cidade entrarem na pauta no atual contexto político nacional?

Erminia Maricato: Olha, eu sempre parto um pouco lá de trás porque nós tivemos um ciclo virtuoso muito importante no Brasil na política urbana durante as prefeituras democráticas e populares. Ficaram famosas no mundo inteiro. Orçamento participativo, corredores de ônibus, urbanização de favelas. E, na verdade, se eu olhar para a política urbana, a regressão não começa com o golpe. Ela começa muito antes. Nós tivemos um boom imobiliário e um boom automobilístico a partir de meados da primeira década do século. Tivemos as nossas cidades atoladas de automóveis. Então, apesar da criação do Ministério das Cidades, apesar de toda a esfera participativa municipal, estadual e federal, e apesar do Conselho das Cidades, a política urbana e habitacional do período onde justamente se recuperou investimento, com PAC [Plano de Aceleração do Crescimento] e Minha Casa Minha Vida (MCMV), elas foram, do ponto de vista das cidades, regressivas. Muito dinheiro investido e faço questão de dizer isso antes, senão a gente cai num ponto de vista de Fla-Flu, nós contra o Bolsonaro. E não é só isso que aconteceu. Se eu olhar as nossas cidades, nós realmente estamos passando por uma regressão. Dois mil e treze deixou muito claro o descontentamento dos jovens, por exemplo, com a questão da mobilidade. Na semana passada, o IBGE divulgou que os trabalhadores estão gastando mais com mobilidade do que com alimentação. O transporte coletivo está caro e nós gastamos muito dinheiro com o PAC. Mas, em geral, esse dinheiro não envolveu as necessidades prioritárias da população com mobilidade.

Na verdade, para não jogar toda a crítica sobre o governo federal, porque o governo federal pensou um plano desenvolvimentista para fazer frente à crise de 2008, eu queria dizer que eu cobro dos economistas brasileiros do nosso campo uma política para as cidades. Investimento em obra não é sempre solução, porque precisa ver qual é a obra e onde ela está localizada. Como você vê aqui em Porto Alegre, o investimento foi para onde? Para uma fronteira de expansão do capital imobiliário, que entrou com um novo padrão de verticalização, de ocupação do solo. Em uma combinação, e isso a gente vê em várias cidades, de shopping centers, investimento na abertura de vias e mudança nas taxas de ocupação do solo. Então, é muito importante entender que houve uma regressão apesar do investimento. Se esse investimento tivesse ido para a localização correta, as nossas cidades estariam muito melhores, mas não foram. Isso acarretou um problema gravíssimo de dispersão urbana que aumentou o tempo de transporte das viagens diárias, que foram prejudicadas pelo excesso de automóveis.

Importante ainda nesse tempo anterior que eu estou falando, é que o uso e ocupação do solo é uma competência municipal e os nossos poderes locais foram capturados pelo capital especulativo e imobiliário de norte a sul do Brasil, em cidades grandes, média e pequenas. As cidades ficaram mais caras, o aluguel aumentou exponencialmente e o preço da moradia também, até chegar na crise. De 2016 para cá, o preço não caiu. Para mim é muito interessante, nós vamos ter uma reunião de estudiosos e acadêmicos para discutir porque o preço no mercado imobiliário não caiu e porque a gente está mantendo tanto imóvel vazio e o preço não cai. Enfim, nós precisamos entender o que está acontecendo.

Bom, depois do golpe, o que acontece? Vem esse alinhamento no que é o coração das ideias neoliberais que é a privatização. O que for possível, você privatiza. O parque do Ibirapuera está sendo privatizado, as áreas verdes de Porto Alegre foram colocadas na perspectiva da privatização, assim como tudo o que pudesse render alguma coisa, isso depois de uma campanha avassaladora contra o Estado e contra os impostos. Como se a elite brasileira pagasse muito imposto. O imposto é muito regressivo no Brasil. Então, nós entramos nessa linha do empreendedorismo, da disputa individual. A perspectiva coletiva, solidária, criada durante alguns anos do welfare state [Estado de bem-estar social], desaparece, e vem a ideia de que você tem uma disputa individual. O negócio é você ser dono da sua vida, do seu horário, o que não é totalmente uma coisa ruim. O que aconteceu com isso? A reforma trabalhista, a reforma da Previdência, que está enfrentando alguma resistência, porque se pensava que ela pudesse ser aprovada rapidamente. O que nós temos é um Brasil caminhando para um abismo. Porque uma coisa é o neoliberalismo nos EUA… dizem, por exemplo, que a economia está indo muito bem nos EUA, mas os americanos não estão bem. Você não tem nenhuma cidade no Brasil com 100 mil moradores de rua e nos EUA você têm. Você não tem nenhuma cidade no Brasil com 16 mil pessoas morando dentro de carros, como Los Angeles. Então, a condição do americano é precária. Você fala que a economia está bem por causa da medição do PIB. mas não está bem, e não há uma perspectiva de recuperação no mundo todo pelo que tenho lido das pessoas que eu respeito.

As conquistas no campo da política urbana que a senhora falou no início da conversa se deram graças à mobilização popular. Os movimentos sociais urbanos ganham força nas décadas de 1960 e 1970, o que desemboca em ganhos na Constituição de 1988. A senhora vê algum impulso social que pode trazer, daqui a pouco, novidades nessa disputa pela cidade?

Pois é, eu ia falar exatamente sobre isso. Você tem hoje questões nacionais importantíssimas, como a privatização do pré-sal. O pré-sal é um patrimônio nosso, conquistado com tecnologia nossa, original. O Brasil é um dos países que domina, mais do que qualquer outro país, com exceção da Noruega, a tecnologia de pesquisa de petróleo em águas profundas. Você tem a questão, por exemplo, dos juros da dívida, esse buraco que é a apropriação de dinheiro público por meio da dívida interna. Você tem a reforma da Previdência. Por que isso não mobiliza o povo brasileiro? É isso que nós temos que nos perguntar. Por que, de repente, essas grandes questões não comovem o povo? Porque nós tiramos as cidades da agenda nacional e 85% do povo brasileiro vive nas cidades. É nas cidades que o povo vive o seu cotidiano. Quando a gente conquistou esse ciclo democrático que acabou em 2016, nós estávamos capilarizados nos bairros das cidades. Eu me lembro de Porto Alegre, eu me lembro de todas as cidades, eu atuava nas comunidades de base em São Paulo, nas comunidades com a Igreja Católica. Nós estávamos nas igrejas, nas escolas, nos bairros, reivindicando transporte, reivindicando moradia. Com essa mobilização, nós constituímos prefeituras que foram premiadas no mundo inteiro. O Orçamento Participativo até hoje é referência no mundo todo. No entanto, por que isso desapareceu? Porque o poder local perdeu importância? Porque o capital imobiliário se apropriou do que tem de recurso público para investimento nos governos federal, estadual e municipal? Em São Paulo, você tem os três níveis investindo nos bairros de renda alta. Como é que isso aconteceu? Porque a periferia foi tão esquecida e ignorada a ponto do crime organizado tomar conta, e isso é no Brasil inteiro, assim as igrejas conservadoras, que estão dando de uma ou outra forma, algum respaldo, de apoio?

Como se começa a reverter isso? Que caminhos existem?

Para nós, a reconquista da democracia brasileira passa pelas cidades, passa pelos bairros e passa pelo cotidiano das pessoas. A Frente Brasil Popular nos convidou para repensar o Brasil. Trinta e um grupos de trabalho foram formados. Nós pegamos o grupo de política urbana. Elaboramos um manifesto que foi colocado nas redes sociais e explodiu. Nós estamos em 16 estados do Brasil. Não temos CNPJ, somos uma rede horizontal, não estamos ligados a partidos ou à candidaturas. Nós queremos repensar as cidades do Brasil e começamos a elaborar um projeto para oito temas. Além dos antigos, como mobilidade, saneamento, habitação, saúde e educação, incluímos agora gênero, raça e juventude e cultura. Já fizemos dois eventos nacionais. Não somos movimento de massa, mas estamos em 25 universidades, com pesquisadores, intelectuais, profissionais e lideranças sociais. Tem muita liderança nova nesse país.

Passa por focar nas questões da cidade para se reaproximar do jovem desiludido, da periferia que não se conecta mais com a esquerda, parar de ficar batendo só na questão federal e também discutir temas locais?

Exatamente isso que eu estou dizendo. Você tem que pensar que está discutindo a Reforma da Previdência com uma pessoa que está gastando mais de meio salário mínimo em transporte todos os dias, o que é o caso das empregadas domésticas em São Paulo. Elas estão vindo de fora do município e gastando R$ 500 por mês. É mais de meio salário mínimo por mês em transporte. E sabe qual é a renda média das empregadas domésticas? R$ 780, segundo IBGE. Menos de R$ 800. Ou seja, a vida das pessoas está inviável. Você vai querer discutir a Previdência, que é importante para ela, mas ela está com problema hoje. Então, essa esquerda é surda, está desvinculada dos problemas que o povo está vivendo.

A reforma urbana é muito discutida em meios acadêmicos e por pessoas que são conhecedoras do assunto. Se a gente pudesse traduzir a sua ideia de reforma urbana, em termos mais didáticos, que tipo de mudanças poderiam ser propostas para as cidades?

Deixa eu te explicar, porque a reforma urbana não ficou numa bolha. Nós chegamos na Constituição de 1988, nós chegamos ao Estatuto das Cidades, à lei federal do Saneamento, à lei federal da mobilidade urbana, construímos o Ministério das Cidades, chegamos a um arcabouço institucional e legal no Brasil, só que ele não foi efetivo. O Ministério das Cidades, quando você olha o Minha Casa Minha Vida, deu 2% do orçamento para aquele programa virtuoso com participação social. Então, o problema é que houve um equívoco dos militantes e da nossa parte. Primeiro, nós fomos capturados pela esfera institucional. Todo mundo foi para os partidos, para os cargos, para os conselhos institucionais e nós perdemos aquela energia que vinha das ruas, dos bairros. A correlação de forças mudou. Claro, existe uma correlação estrutural que é a desindustrialização do Brasil e a perda de força dos sindicatos. Mas, agora nós temos que entender que temos leis ótimas. Nós temos leis entre as mais avançadas do mundo e temos que retomar uma proposta que tem que ser popular. Nós temos que trabalhar. As nossas universidades hoje estão começando a sair para as ruas com uma velocidade incrível, fazendo extensão. Nós estamos em 16 estados da federação, temos um número enorme de parceiros nas áreas de saúde, educação, engenharia, arquitetura.

Quando a senhora fala em ‘nós’, é a Frente Brasil Popular?

É a Frente Brasil Popular, mas é o grupo específico de política urbana, que se chama BR Cidades. Nós já temos uma rede específica no Nordeste. O nosso próximo encontro nacional vai ser no Nordeste. No último encontro nacional, nós tínhamos 200 pessoas, todas ponta de liderança de grupos, de redes que estão funcionando, sem orçamento. Nós estamos mostrando que a gente não precisa se subordinar a nenhuma instituição para fazer política urbana no Brasil. Agora, ou a recuperação vai passar pelas cidades ou ela não vai acontecer. A esquerda precisa entender isso e por as cidades na agenda nacional. No ano que vem, nós temos eleições municipais.

Nesse gancho, qual deveria ser a agenda prioritária de políticas para as cidades?

Cada cidade é diferente no Brasil e é um erro adotar programas nacionais para todas as cidades de qualquer tamanho. Então, nós temos que retomar o protagonismo do poder local, retomar o controle sobre o dinheiro público, pelo amor de deus. Isso é mais importante do que Plano Diretor, do que qualquer lei. O povo fiscalizar, acompanhar o ataque que se faz nesse País ao dinheiro público, a regressão na aplicação do dinheiro público. Estou falando do Orçamento Participativo? Estou, mas é aquele que os bairros acompanhavam, que eu vi acontecer em Porto Alegre, que é o empoderamento da população. Outra questão para nós fundamental está na educação de crianças e jovens. Aquilo que o Darcy Ribeiro propôs no Rio de Janeiro nos CIEPS (Centros Integrados de Educação Pública), três refeições por dia, passar o dia inteiro nas escolas e ter atividades esportivas, de arte, de cultura. Tirar essa moçada da mão do crime, dar uma perspectiva mais científica, mais criativa, do que essa tragédia que é negar a racionalidade, a ciência e o conhecimento que nós estamos vendo aqui no País. A mobilidade, e eu deveria começar por ela, é um assunto absolutamente fundamental. Nós estamos colocando o automóvel no centro da mobilidade há décadas. Há décadas. Nós precisamos conter a circulação de automóveis nas nossas cidades e dar prioridade ao transporte coletivo, sem dúvida nenhuma.

Agora, tem algumas novidades. A questão agroecológica, a questão ambiental, a questão da segurança alimentar, a questão de gênero. Eu estou vendo as mulheres aqui em Porto Alegre, elas que estão levando a nossa rede, praticamente, em Porto Alegre, é maravilhoso o que está acontecendo. E acho que, ou a nossa proposta de cidade vai ser antirracista, ou ela não vai ser nova. É fundamental que a gente entenda que, para superar a desigualdade no Brasil, nós temos que superar o preconceito e esse massacre que se faz à população negra, especialmente à mulher negra. Mas, para tudo que isso eu citei, nós temos novos atores já na política, só que muitos de nós não estão enxergando as mulheres negras, a população negra, os jovens na área da cultura. Eu acho que tem muita coisa nova no Brasil que a gente precisa empoderar e reforçar.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Luís Eduardo Gomes

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