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ToggleO governo libertário argentino deu um novo passo em um dos projetos que obcecam o presidente Javier Milei: a entrada de capitais privados nos clubes de futebol por meio das Sociedades Anônimas Esportivas, apesar da rejeição da Associação do Futebol Argentino (AFA). Acaba o jogo, o esporte, e tudo se transforma definitivamente em negócio.
Apenas 12 horas depois do regresso triunfal da seleção alviceleste, consagrada bicampeã da América, o governo acelerou sua ofensiva para transformar os clubes de futebol em sociedades controladas por corporações privadas: clubes que fazem parte do patrimônio social e cultural não só poderiam mudar de nome como também de cidade, segundo o gosto dos investidores transnacionais.
A meta de Milei é avançar na privatização do futebol na Argentina, entregando-o aos capitais transnacionais: quer transformá-lo no mundo dos negócios. Segundo a Resolução, o governo tentará “corrigir a crise terminal que enfrenta a economia argentina e uma das vias mais efetivas é eliminar as restrições estatais que impedem o normal desenvolvimento das empresas”.
Acrescenta que “para obter os objetivos perseguidos o investimento estrangeiro é fundamental, especialmente nos casos da busca de desenvolvimento dos países emergentes. Então, a chegada do capital estrangeiro permite a criação de novas empresas, a geração de emprego formal e contribui para reduzir os níveis de pobreza e desigualdade”. Ninguém entende o que isso tem a ver com o futebol, o esporte nacional.
“Se estivessem limpos (os clubes) permitiriam que haja concorrência, mas como estão sujos não permitem a concorrência. O melhor sintoma de que há máfia é que não permitem a concorrência. Se você está limpo, não se incomoda”, disse Milei, que revelou que há clubes da Inglaterra interessados em investir no país, e encerrou: “O Manchester City quer comprar um clube da Argentina, um bem grande”.
O diretor técnico campeão do mundo em 1978 que foi diretor de seleções nacionais da AFA até sua morte em maio último, César Luis Menotti, criticou em determinado momento o modelo de Sociedades Anônimas que Milei estimula. “Um clube de futebol é um fato cultural que na Argentina foi fabricado nas esquinas dos bairros, não é que tenham vindo grandes poderes econômicos e dito: ‘Vamos criar clubes’. O clube é criado pelo bairro, o vizinho e os sonhos das novas gerações que continuam defendendo-os”, explicava Menotti.
“A bola, o jogador e as pessoas geraram um convite à poesia. Quando eu vejo que querem transformar o futebol no mundo dos negócios, me dá tristeza porque sinto uma falta de reconhecimento com muita gente que manteve essa paixão que a bola desperta em cada esquina da Argentina”, dizia.
A grave crise que afeta o país também afeta o futebol: há instituições com sérios problemas financeiros e de direção, mas isso não se soluciona com o desembarque de empresários transnacionais. “O futebol está em uma luta cruel com os poderes econômicos, mas depende dos sócios. As pessoas têm que defendê-los porque o clube é das pessoas, pertence ao sócio e à torcida. Não é de nenhuma fábrica”, acrescentava Menotti.
O regulamento de Milei
E assim, a Inspeção Geral de Justiça publicou uma resolução para regulamentar partes do Decreto de Necessidade e Urgência 70/2023, que foi rejeitado pelo Senado, mas continua vigente até que seja discutido por Deputados, e dispôs que “deve-se aceitar a participação das associações civis e fundações como acionistas em sociedades anônimas e a transformação das associações civis em sociedades anônimas”.
Acrescenta que deve “simplificar-se a inscrição de entidades de bem comum constituídas no estrangeiro para o desenvolvimento de sua atividade na República Argentina”.
Trata-se da porta de entrada para os capitais privados – e estrangeiros – na estrutura societária dos clubes, que na Argentina funcionaram historicamente como sociedades civis sem fins lucrativos. Milei vem fazendo campanha por esta mudança, que também é estimulada pelo ex-mandatário Mauricio Macri, ambos perdedores nas eleições do Clube Boca Juniors, cuja massa societária e de seguidores rejeitou a proposta, assim como o presidente do clube.
Socialismo de pobre no futebol
“Não mais socialismo de pobre no futebol”, escreveu Milei no Twitter (X) ao defender o projeto na semana passada. Para isso usou uma falácia como argumento ao afirmar que os 11 titulares da Seleção argentina que ganharam a Copa América jogam em clubes que estão em mãos de empresas privadas, mas omitiu que estes jogadores se formaram primeiro em clubes de bairro e depois em entidades que nunca foram sociedades anônimas, e se negam a ser.
O futebol questiona o presidente porque, se está contra as intervenções do estado, tem que imiscuir-se nas decisões do futebol argentino. Há quem esteja convencido de que o DNU, que obriga todas as organizações reitoras do esporte a incorporar em seu estatuto as SAD no lapso de um ano, é uma devolução de favores a Mauricio Macri.
Os clubes do ascenso argentino e do interior do país não parecem estar dispostos a dar um passo atrás na ideia de Milei e de seus aliados para a instauração das SAD. Os plantéis de Deportivo Paraguayo e de Deportivo Español saíram ao campo de jogo com uma camiseta com o slogan “Clube=Sócios. Eu voto não às SAD”.
Em 14 de novembro último, a Liga Profissional de Futebol expressou sua posição contra as sociedades anônimas depois das palavras do então candidato a presidente pela ‘Liberdade Avança’ de Javier Milei e, além disso, acusou Mauricio Macri por questionar o formato de concorrência da Primeira Divisão. Também a Associação do Futebol Argentino (AFA) questionou o modelo das SAD.
Em 30 de março, a Justiça federal pronunciou-se contra os artigos do DNU de Javier Milei que habilitam as SAD no futebol. O Juizado Federal de Mercedes aceitou uma cautelar apresentada pela Liga de Futebol de Salto, filiada à AFA, contra os dois artigos do DNU de Javier Milei que habilitam as Sociedades Anônimas Esportivas (SAD) no futebol.