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Foto: Adam Jones / Wikimedia Commons

Fim da Usaid | Pt. 2: Agência treinou torturadores e fechou os olhos para abuso sexual infantil

Usaid tornou policiais do Uruguai especialistas em tortura e extermínio contra Tuparamos; a intenção era produzir “dor precisa, no lugar preciso, na quantidade precisa, para o efeito desejado”
Jim Cason, David Brooks
La Jornada
Nova York

Tradução:

Beatriz Cannabrava

Os planos do presidente Donald Trump de fechar a agência de assistência internacional Usaid colocaram sob o microscópio a entidade fundada em 1961 como parte da estratégia estadunidense da Guerra Fria para confrontar a União Soviética e o bloco socialista, tendo entre suas primeiras missões o apoio aos esforços de contrainsurgência no Vietnã e no sudeste da Ásia.

Em seus primeiros dias, a assistência internacional estadunidense era dedicada ao apoio de aliados de Washington na luta contra o comunismo. Segundo um resumo da Oficina do Historiador do Departamento de Estado, uma das primeiras tarefas destinadas ao que se chamava Agência para o Desenvolvimento Internacional (AID) foi somar-se a um “Grupo Especial (Contrainsurgência)” que incluía a CIA, o Pentágono e o Departamento de Estado. O grupo dedicava-se a defender o governo do Vietnã do Sul, e a AID foi encarregada de “coordenar programas de assistência econômica com programas de ação cívico-militares”.

Ao que parece, a agência fazia bem seu trabalho. Em 1962, o assessor de Segurança Nacional da Casa Branca, Robert Komer, escreveu que a AID “era mais valiosa que as Forças Especiais em nossos esforços contra insurgentes globais”. Rapidamente, o papel da agência ampliou-se além do sudeste asiático, e, no final dos anos 60, a AID estava financiando programas de capacitação policial de contrainsurgência ao redor do mundo.

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Quando Dan Mitrione, chefe da Oficina de Segurança Pública da AID no Uruguai, foi sequestrado e assassinado nos anos 70, começou a divulgar-se informação sobre o ex-chefe da polícia da cidade de Richmond, Indiana, e seu papel no Uruguai, treinando a polícia desse país com novas técnicas de tortura e extermínio de guerrilheiros Tupamaros. Uma citação atribuída a Mitrione é que sua meta era produzir “dor precisa, no lugar preciso, na quantidade precisa, para o efeito desejado”. O personagem de Mitrione seria retratado no filme Estado de Sítio, de Costa-Gavras, em 1972. Em 1973, o Congresso dos Estados Unidos ordenou o fechamento da unidade de Segurança Pública da AID.

Capacitação policial

Mas muitas das funções de capacitação policial não foram descontinuadas, apenas transferidas para o Departamento de Estado e outras agências estadunidenses, algo que foi evidente durante os conflitos na América Central nos anos 80. Até agora, a Usaid tem sido percebida em Washington apenas como uma ferramenta da política exterior estadunidense, mas a maior parte de seu financiamento foi direcionada a programas humanitários. No entanto, mesmo nessa área mais “benigna”, vários problemas têm sido relatados.

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Em 2018, o Inspetor Geral dos Estados Unidos para a Reconstrução do Afeganistão relatou que o apoio da Usaid a agricultores naquele país havia “inadvertidamente dirigido à produção de papoula”. Em outro caso, a agência havia concedido mais de 30 milhões de dólares a uma instituição de caridade no Quênia que “sabia ou deveria saber de múltiplos incidentes” de abuso sexual de menores, sem tomar nenhuma ação.

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O financiamento para ambos os programas foi finalmente suspenso. A Oficina do Inspetor Geral da Usaid advertiu na semana passada que o congelamento do financiamento tornará mais difícil a tarefa de detectar casos de fraude ou má utilização de fundos. O inspetor foi demitido no dia seguinte pelo governo de Trump.

Foco em Cuba

Uma das maiores e mais duradouras iniciativas da Usaid é a focada em Cuba. “A Usaid fornece assistência humanitária constante a prisioneiros políticos e suas famílias, e a indivíduos marginalizados para aliviar suas dificuldades devido a suas crenças políticas ou esforços para exercer suas liberdades fundamentais”, escreveu a agência em 2014. Mas há evidências de que fazem mais do que isso. Em 2009, o governo cubano prendeu um contratista da Usaid, Alan Gross, que tentava entrar na ilha com um cartão SIM necessário para ativar um serviço de comunicação via satélite, supostamente para a comunidade judaica em Cuba.

“O tipo de cartão SIM usado por Gross não está disponível no mercado aberto e é distribuído apenas a governos”, relatou a agência de notícias Associated Press na época. Um especialista em sistemas de telefonia via satélite e um ex-oficial de inteligência que usou esse tipo de chip informaram à AP que “os chips são concedidos mais frequentemente ao Departamento de Defesa e à CIA, mas também podem ser obtidos pelo Departamento de Estado, que supervisiona a Usaid”. Um porta-voz da agência comentou à AP que a Usaid não teve nenhum papel na aquisição desse equipamento para seu contratista Gross. “Somos uma agência de desenvolvimento, não uma agência de inteligência”, afirmou.

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O congelamento atual da Usaid também impactou os 2,3 milhões de dólares em fundos que o governo estadunidense concede ao que chamam de “meios independentes antigovernamentais” em Cuba. CubaNet, com sede em Miami, e o Diário de Cuba, com sede em Madri, emitiram solicitações públicas urgentes por contribuições, já que seu financiamento via Usaid está suspenso, relatou a Reuters.

Em 2023, os Estados Unidos forneceram mais de 265 milhões de dólares em assistência a 707 meios de comunicação não estatais e apoiaram 279 organizações civis no setor de mídia dedicadas a fortalecer “meios independentes e o fluxo livre de informação”, segundo a Usaid. Nove dos 10 meios independentes na Ucrânia são apoiados pela Usaid, e o governo estadunidense concede apoio financeiro a organizações da sociedade civil “apoiando meios independentes” em toda a América Latina.

A USAD no primeiro mandato de Trump

Trump, durante seu primeiro mandato, tentou anular alguns desses programas de “promoção da democracia”, mas, no final, os fundos continuaram fluindo após apelos de legisladores cubano-americanos, incluindo o então senador Marco Rubio, hoje novo secretário de Estado. Mas ex-funcionários com conhecimento das discussões internas sobre o destino da Usaid dizem que, desta vez, não está claro se esse tipo de programa será restaurado.

O que se espera é que a assistência exterior estadunidense que permanecer seja mais focada em interesses políticos. “Cada dólar que gastamos, cada programa que financiamos e cada política que promovemos tem que ser justificado com a resposta a três perguntas simples: Isso torna os Estados Unidos mais seguros? Isso torna os Estados Unidos mais fortes? Isso torna os Estados Unidos mais prósperos?”, declarou Rubio sobre a suspensão dos programas da Usaid.

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Mas essas perguntas já foram respondidas pelos feitos e propósitos da Usaid, argumentam os democratas. Na semana passada, o senador democrata liberal Chris Murphy, falando em um comício em frente ao edifício que até alguns dias atrás era a sede da Usaid, declarou: “Todos os dias, os Estados Unidos estão mais seguros por causa do que a Usaid faz. A Usaid combate grupos terroristas em todo o mundo… apoia lutadores pela liberdade em todas as partes do mundo”.

Para o governo de Trump, fechar a Usaid é parte de uma suposta “guerra” simbólica contra um governo federal grande demais, mais do que uma tentativa de reduzir os gastos federais. Mesmo que Elon Musk conseguisse eliminar todo o gasto da Usaid, isso representaria apenas uma redução de 1,2% do orçamento federal. Por enquanto, o que restar da missão e do propósito da Usaid pode se parecer muito mais com o que era quando começou a funcionar.

La Jornada, especial para Diálogos do Sul Global – Direitos reservados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Jim Cason Correspondente do La Jornada e membro do Friends Committee On National Legislation nos EUA, trabalhou por mais de 30 anos pela mudança social como ativista e jornalista. Foi ainda editor sênior da AllAfrica.com, o maior distribuidor de notícias e informações sobre a África no mundo.
David Brooks Correspondente do La Jornada nos EUA desde 1992, é autor de vários trabalhos acadêmicos e em 1988 fundou o Programa Diálogos México-EUA, que promoveu um intercâmbio bilateral entre setores sociais nacionais desses países sobre integração econômica. Foi também pesquisador sênior e membro fundador do Centro Latino-americano de Estudos Estratégicos (CLEE), na Cidade do México.

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