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Foto: UNRWA / Facebook

Fome e espera em Gaza: um dia na fila do pão em Khan Younis

Em meio à destruição de Gaza, restaram poucas padarias para atender à população, que precisa esperar horas sob o sol por um único pão; alguns desistem
Donya Ahmad Abu Sitta
Resumen LatinoAmericano
Gaza

Tradução:

Ana Corbisier

Já amanheceu e o céu está tingido de um suave alaranjado. O sol ainda não brilha totalmente e corre uma brisa fresca. Me pergunto se permanecerá assim, e espero que sim, porque esperar horas na fila do pão com o sol no céu me dá dor de cabeça.

Ponho os sapatos e ouço minha mãe dizer que me apresse, que uma longa fila nos espera.

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O caminho até a padaria Doha, em Khan Younis, dura cerca de 10 minutos. Antes da guerra, eu caminhava até a universidade e, às vezes, perto do mar, e gostava desses passeios. Mas caminhar até a fila do pão, para me juntar a uma multidão imensa pedindo pães, não é a mesma coisa.

Em 2 de março, os preços dispararam em Gaza quando Israel anunciou que fecharia as passagens e impediria a entrada de todos os bens, incluindo alimentos.

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Nas semanas seguintes, muitas padarias fecharam e penduraram placas em suas portas com a mensagem: “Fechado por escassez de combustível”.

A padaria Doha, apoiada pelo Programa Mundial de Alimentos, foi uma das poucas que permaneceu aberta. Isso significa que está especialmente cheia e que teremos que esperar horas para conseguir uma única barra de pão, que custa aproximadamente um dólar.

Um funcionário saiu, empurrou a grade de ferro que cercava a padaria e anunciou: “A distribuição do pão começará às 11h”.

Eram aproximadamente 10h da manhã, ainda faltava uma hora.

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Padaria Doha

A padaria é um prédio de tamanho médio, com uma escada quebrada que leva à entrada. Do lado de fora, há um gerador zumbindo, mantendo o local em funcionamento; dentro, há máquinas rachadas. O edifício está cheio de buracos de bala, e o sol se infiltra por eles e pelas nuvens de farinha que o envolvem.

As crianças subiam na cerca e olhavam pelos buracos das portas para ver os padeiros preparando o pão.

O tempo passava lentamente. Os minutos pareciam horas. O sol, que eu esperava evitar, finalmente nos encontrou na fila.

Estudei para um exame pelo celular, mas tinha dificuldade para me concentrar com todas as vozes ao redor.

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À minha frente, havia uma mulher de cerca de 50 anos, com mechas de cabelo branco visíveis através do lenço. Suas mãos estavam enegrecidas pela fuligem, provavelmente por passar longas horas cozinhando no fogo.

Ela me contou como seu marido morreu em dezembro de 2023, vítima de um ataque aéreo israelense em Khan Younis. Ele estava sentado com os amigos quando a casa onde estavam foi atingida.

“Me disseram: ‘Seu marido foi martirizado’, mas eu não acreditei”, disse ela. “Mas então senti, assim que fui ao Hospital Nasser perguntar por ele”.

Disse que o viu na morgue e que não conseguia parar de gritar. Disse que gritou para ele: “Por que me deixou sozinha?”.

Em 2 de março, os preços dispararam em Gaza quando Israel anunciou que fecharia as passagens e impediria a entrada de todos os bens, incluindo alimentos (Foto: Donya Ahmad Abu Sitta)

Ela me contou a história mais três vezes antes de cansar de esperar na fila do pão e ir embora.

Outra mulher falava com minha mãe. Disse que era de Beit Hanoun, perto da passagem fronteiriça. Tinham se deslocado dali para Khan Younis, depois para Rafah e de volta.

“Agora nos alojamos em uma escola da UNRWA porque nossa casa foi demolida. Uma de minhas filhas vai para a escola, outra vai buscar água e a terceira arruma a sala de aula onde nos hospedamos. A cada dia, trocam de funções, e eu vou à padaria, tentando me adaptar a esta vida tão dura”.

Já eram 11 da manhã. Hora de começar a distribuição.

Primeiras 10 mulheres, primeiros 10 homens

Um trabalhador deixou entrar as primeiras 10 mulheres e os primeiros 10 homens na padaria.

Houve um alvoroço e ouviram-se vozes da multidão.

— Você pode me dar pão?
— Preciso sair para preparar a comida!
— Não aguento esperar mais!
— Tenho um problema cardíaco. Não posso ficar na fila!
— Tenho um bebê em casa, preciso voltar para ele.

Outras vozes ecoaram as mesmas súplicas desesperadas.

Mas a padaria não comportava mais de 20 pessoas, então o trabalhador voltou a fechar as portas, e a espera continuou. Depois de uns 30 minutos, o mesmo processo se repetiu: as portas se abriram; as pessoas pediram pão; as portas se fecharam.

A padaria não fechava antes de 10 minutos para a chamada para a oração do Magreb, por volta das 17h50.

Nossa vez chegou por volta das 14h30.

Quando recebi o pão do padeiro, não senti nada, apenas o cansaço das seis horas e meia que passamos esperando.

Minha mãe comentou que éramos dos poucos afortunados, não só por termos conseguido pão, mas por tê-lo a tempo de preparar a comida antes do iftar, a refeição com a qual rompemos o jejum do Ramadã.

Saímos da padaria, e a multidão não parecia diminuir. Agradeci a Deus por não ter que esperar mais.

Pizza para o iftar

Naquele dia, era o aniversário do meu irmão mais novo, e planejamos fazer pizza para ele.

Reunimos todos os ingredientes e depois levamos as pizzas ao forno de barro comunitário próximo, que custa cerca de um dólar por alguns minutos.

Essa forma de cozinhar é muito mais econômica, já que não temos gás para o fogão. O preço de alguns galões de gás gira em torno de 50 dólares.

Depois começamos a acender o fogo para preparar um pouco de chá.

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Quando a chamada para a oração do Magreb soou, comemos e, em seguida, fui para o computador terminar um exame – aquele que tentei estudar enquanto estava na fila.

Peguei minha xícara de chá de sálvia, fui até minha escrivaninha de madeira feita à mão, abri o laptop e comecei o exame.

Foi bastante fácil: terminei em meia hora e acertei 29 de 30.

Tomei outra xícara de chá e fui direto para a cama, pronto para fazer tudo de novo no dia seguinte.

Leia mais notícias sobre Gaza na seção Genocídio Palestino.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Donya Ahmad Abu Sitta Professora e escritora em Gaza.

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