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Governos devem agir urgentemente contra causas, não só consequências da crise climática

Permitimos que nossos líderes se comportem como burocratas nos quais as palavras apenas disfarçam ou encobrem a falta de ações concretas
Flávio Tavares
Diálogos do Sul

Tradução:

O palavrório rebuscado e genérico, tão comum nas reuniões internacionais e que, em verdade, não revela compromissos, mas apenas meras intenções, reapareceu agora no documento final da conferência sobre o clima realizada em Sharm el-Sheikh, no Egito.

As mudanças climáticas evidenciam a ameaça maior à continuidade da vida no planeta, mas desprezamos os alertas da ciência. Em verdade, permitimos que nossos governantes se comportem como burocratas nos quais as palavras apenas disfarçam ou encobrem a falta de ações concretas. Assim ocorreu no documento conclusivo da reunião no Egito, no final de novembro.

As conclusões não estabelecem nenhum compromisso de cortar as emissões de combustíveis fósseis, como carvão e petróleo, responsáveis diretos pelo aquecimento global.

Ao inaugurar a reunião, o secretário-geral da ONU, António Guterres, havia alertado que o planeta está no limite máximo de sua resistência e acentuou ser obsceno que os governos “continuem a financiar a destruição” ao darem subsídios ou isenções à exploração dos combustíveis fósseis, como carvão e petróleo.

Sem governança global contra crise climática, COPs seguirão produzindo “blá, blá, blá”

Há muito o papa Francisco adverte sobre “os cuidados com a Casa Comum” (o planeta) e prega a “conversão ecológica” da humanidade para preservar a vida como um todo.

As advertências do papa apenas reafirmam as da própria ciência, mas dão a elas uma característica moral e ética que as amplia por si sós, sem que possam ser vistas como simples números estatísticos.

Permitimos que nossos líderes se comportem como burocratas nos quais as palavras apenas disfarçam ou encobrem a falta de ações concretas

William Bossen – Unsplash
Brincar com fogo é, tão só, um passatempo infantil, impossível de ser adotado como regra de Estado ou de governo

Sob pressão dos chamados países industrializados (responsáveis pela maior parte das emissões geradoras do perigoso efeito estufa), a reunião do Egito acabou desconhecendo a principal ameaça à estabilidade da vida no planeta. Desconheceu, de fato, o próprio Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), das Nações Unidas, que estabeleceu o ano de 2025 como “limite máximo” para que a média anual global das emissões de gases de efeito estufa atinja o ponto de inflexão e comece a cair.

Em suma: a conferência do Egito preocupou-se apenas com as consequências, nunca com as causas do efeito estufa e do aquecimento global que provoca. A invasão da Ucrânia pela Rússia dificultou o abastecimento da União Europeia com gás russo e, assim, próximo do inverno no Hemisfério Norte, as consequências da guerra chegaram também à reunião do clima.

Criou-se, porém, um fundo para socorrer os países insulares que irão simplesmente desaparecer com a elevação do nível dos mares. Esses pequenos países-ilhas, localizados quase todos no Oceano Pacífico, não sobreviverão, porém, com nenhum fundo, por mais milionário que possa ser. Dinheiro algum irá conter a elevação dos mares provocada pelo derretimento (gerado pelo efeito estufa) das geleiras do Ártico e da Antártica.

Na Antártica, onde o Brasil tem uma base científica, a cada ano aparece mais “terra preta” em substituição ao gelo. Já não é necessário nenhum sofisticado aparelho de medição, pois o aquecimento é visível a olho nu. No extremo norte, no Ártico, desaparecem paulatinamente os ursos polares e toda a fauna típica da região.

Tudo isso é muito pior do que a infantilidade de brincar com fogo, mas nos portamos como crianças, sem capacidade ou condições de medir as consequências. Nem sequer a brutalidade dos números nos impressiona. Por exemplo, entre 2010 e 2019, a média anual das emissões de monóxido de carbono atingiu os níveis mais altos de toda a História, e a tendência é de que continue a subir de forma avassaladora. Assim, a meta de limitar a alta da temperatura a 1,5ºC até 2030 torna-se totalmente descartada.

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A grande contribuição do Brasil para essa meta está na preservação da Amazônia, cujas florestas têm o poder inato de sequestrar da atmosfera o temível monóxido de carbono. Entre nós, porém, a degradação da Floresta Amazônica se acentuou sob a presidência de Jair Bolsonaro e, mesmo com sua derrota na tentativa de reeleição, não se conhecem até agora os rumos da futura gestão de Lula da Silva na área ambiental.

O candidato vitorioso presenciou parte da conferência do clima no Egito, e, mesmo numa visita rápida, assumiu publicamente o compromisso de preservar a Amazônia. No entanto, enquanto não indicar o futuro ministro do Meio Ambiente e os rumos a adotar, permanece a incógnita – e, com ela, até as incertezas.

Sim, pois a permissividade do governo Bolsonaro quanto à devastação ambiental fez com que, tão só em abril deste ano, mais de 1 mil quilômetros quadrados de florestas (exatos 1.012,5 km²) fossem derrubados na Amazônia. Além disso, calcula-se que, de 2020 a 2021, a devastação da Mata Atlântica aumentou mais de 66%. De fato, é assunto de “segurança nacional”, para usar o jargão utilizado para proteger as fronteiras do País. No caso da devastação florestal, trata-se das fronteiras da vida.

Brincar com fogo é, tão só, um passatempo infantil, impossível de ser adotado como regra de Estado ou de governo.

Flávio  Tavares | Jornalista e escritor, Prêmio Jabuti de Literatura 2000 e 2005, Prêmio Apca 2004, é professor Aposentado da Universidade de Brasília.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Flávio Tavares Jornalista e escritor, professor da Universidade de Brasília, Prêmio Jabuti de Literatura em 2000 e 2005, Prêmio APCA em 2004

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