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Foto: Fernando Frazao / Agência Brasil

“Grande Seca”: a tragédia climática que matou 500 mil pessoas no Nordeste entre 1877 e 1879

Crise no Nordeste foi resultado de uma combinação de fatores, como desmatamento radical, e incluiu epidemia de cólera e varíola
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
Florianópolis (SC)

Tradução:

Hoje todos vivemos a tragédia anunciada que destruiu vidas, casas, propriedades e que assola o Rio Grande do Sul. No entanto, devemos recordar outra sucessão de eventos climáticos combinados, que gerou uma seca sem precedentes em praticamente toda a história recente do mundo! E em seu bojo trouxe doenças e morte de mais de meio milhão de pessoas, tragédia somente superada pela Covid-19 sob Bolsonaro, que levou à morte mais de 750 mil pessoas.

No Brasil, a falta de chuvas no Nordeste foi o primeiro capítulo de um flagelo que incluiu uma epidemia de cólera e varíola e matou pelo menos 500 mil pessoas entre 1877 e 1879, algo como 5% da população de todo nosso país da época! O povo cearense foi de, longe o mais afetado. Só em 1878, no auge da seca, 119 mil pessoas morreram de fome e sede e outras 55 mil foram obrigadas a migrar. A população da província teve redução de 900 mil, para 750 mil, no decorrer de 5 anos!

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A “Grande Seca”, como ficou conhecida, foi resultado de uma combinação de fenômenos naturais, crise econômica, falhas na assistência à população e disputas políticas! Assim como do desmatamento radical realizado, no século XIX, pelos “coronéis” do Nordeste brasileiro, destruindo a mata nativa para a plantação intensiva de cana de açúcar e de algodão.

Apesar da catástrofe humana e ambiental na época, só recentemente a ciência passou a investigar seus fatores desencadeantes

O primeiro trabalho que analisa a Grande Seca é de 2018. A pesquisadora Deepti Singh e seus colegas apontam a combinação de pelo menos quatro eventos recordes e quase simultâneos: um dos piores El Niño de que se tem notícia, redução das temperaturas do Pacífico tropical, aquecimento das águas do Atlântico Norte e uma oscilação de temperaturas no oceano Índico que afetou a temporada de chuvas.

Em um período anterior ao do aquecimento global, essa equação talvez fosse apenas obra do acaso. Mas o resultado da combinação foi tão intenso que, caso algo do tipo ocorresse hoje, “seus efeitos poderiam ser ainda maiores, já que as mudanças climáticas agravam os desastres naturais”, afirmou a pesquisadora há 10 anos, como profetizando ao que ocorre no sul do Brasil. Por outro lado, outros pesquisadores, como Mike Davis, da Universidade da Califórnia, a ação humana ajuda a explicar o número tão elevado de mortes causadas por aquele fenômeno climático. A crise econômica do declínio do II Império e as decisões do poder público agravaram o problema. A ‘invasão’ dos famintos

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Em 1877, praticamente não choveu entre janeiro e março. Sem gado e sem colheita, teve início um grande êxodo dos sertões em direção à capital, Fortaleza. Mas a chuva também não veio nos meses seguintes. E as fileiras de migrantes engrossaram formando um exército de famintos desesperados. “Morria-se de fome, puramente de fome nas ruas da cidade, pelas estradas”, escreveu o médico cearense Barão de Studart. “Depois de alimentar-se de raízes silvestres (especialmente da mucunã), de algumas espécies de cactus (chique-chique, mandacaru) e bromélias (coroatá, macambira), do palmito da carnaúba e de outras palmeiras, das amêndoas e entrecasca de cocos, o faminto passara a comer as carnes mais repugnantes, como a dos cães, a dos abutres e corvos, e a dos répteis.”

Em dezembro de 1877, 80 mil já haviam chegado a Fortaleza, número quatro vezes maior que a população da capital, que era de 20 mil pessoas! O Ceará, além de ser a província mais afetada, foi também a que melhor manteve registros estatísticos da migração dos retirantes e do clima. No entanto, documentos e jornais da época contam como a seca prejudicou também as províncias vizinhas. Os presidentes das províncias de Pernambuco e de Alagoas, quase foram às armas, pois não queriam aceitar e entrada de 9 mil migrantes desesperados que estavam na fronteira.

José do Patrocínio e a “Viagem ao Norte”

O historiador Roger Cunniff esteve no Brasil na década de 1960 para pesquisar o tema. Ele narra o desespero de migrantes que cruzam o rio São Francisco de Pernambuco para a Bahia, menos afetada pela seca do que as demais províncias, e invadiam as fazendas para pedir esmolas e roubar. Se tornaram emblemáticas as imagens chocantes de homens, mulheres e crianças esquálidas feitas dentro do estúdio do fotógrafo Joaquim Antônio Corrêa, em Fortaleza. Ele trabalhou na época com o jornalista José do Patrocínio, enviado pela Gazeta do Rio de Janeiro para o Ceará, de onde narrava a seca sob a rubrica “Viagem ao Norte”.

A ideia de expor e explorar a miséria dos retirantes era sensibilizar a opinião pública e alertar para a gravidade dos fatos que se desenrolavam, que parte das elites do sul do país achava ser exagero. Os jornais contavam histórias de mulheres que se prostituíam por um prato de comida, de pais que vendiam e até mesmo comiam os próprios filhos. Os miseráveis eram mesmo “bestializados” por parte da mídia existente.

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A “campanha para sensibilizar finalmente a corte” deu certo. Na capital do Império e nas províncias do Sul, comitês passaram a organizar bailes e banquetes beneficentes em favor das “vítimas da seca”, que suplementassem o auxílio do governo. A tragédia virou inclusive notícia na imprensa internacional. A Scribner’s Magazine de Nova York chegou a enviar um correspondente ao Ceará para cobrir a seca.

A epidemia de varíola e o “dia dos mil mortos”

A tragédia provocada pela fome virou calamidade com a disseminação da varíola, que dizimou parte da população cearense em 1878, no ano posterior à pior seca. A doença fora registrada antes na província da Paraíba, a primeira atingida: 74 pessoas morreram entre abril e maio de 1877. Nos meses seguintes, o vírus foi percorrendo o caminho da procissão dos retirantes. Subiu à província do Rio Grande do Norte e atingiu especialmente Mossoró, que recebia os sertanejos paraibanos. E entrou no Ceará pelo município litorâneo de Aracati, destino, por sua vez, de levas de migrantes vindas de Mossoró. Quando chegou a Fortaleza, mais de 100 mil sertanejos já estavam aglomerados em campos e vivendo em péssimas condições de higiene. Eram os chamados “currais do governo” ou abarracamentos, a solução encontrada pela administração local para lidar com os refugiados.

O professor Gleudson Passos relata: “Umas colunas de pau, geralmente feitas de madeira de carnaúba, e uma cobertura. Esses espaços eram cercados e lá se amotinavam as populações que vinham dos sertões, para que elas não entrassem na cidade.” Sem saneamento, essas aglomerações foram decisivas para que a varíola explodisse na cidade. Apesar do desastre humanitário, os abarracamentos continuariam sendo usados em secas posteriores, sob o nome de “campos de concentração”, sugestivos, não?

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Nos arredores da capital cearense, dez desses currais reuniam cerca de 110 mil pessoas conforme os registros feitos à época pelo farmacêutico Rodolpho Teóphilo. Em seu livro “Varíola e vacinação no Ceará”, ele descreveu a situação no pico da epidemia, quando hospitais estavam em ocupação máxima e as ruas, repletas de cadáveres — em dezembro de 1878, Fortaleza viveu o que ficou conhecido como o “dia dos mil mortos”.

Sem esperança alguma

No fim de outubro já não havia mais esperanças de restabelecer o serviço hospitalar mais ou menos regular, dada a cifra de varicosos. O pânico já abatera o ânimo da população mais agasalhada e domiciliada na área urbana, concorrendo para isso o triste e repugnante espetáculo do transporte dos cadáveres de variolosos pelas ruas mais públicas de Fortaleza.

“Imagine-se um cadáver, meio putrefato, vestido apenas de ligeiros trapos, amarrado de pés e mãos a um pau, conduzido por dois homens, ordinariamente meio embriagados, e se terá visto o modo como porque iam para a vala os retirantes mortos de varíola em Fortaleza”.

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Em dezembro, a peste atingiu o período agudo. Tinha Fortaleza o aspecto de sombria desolação. A tristeza e o luto estavam em todos os lares. O comércio completamente paralisado dava às ruas a feição de uma terra abandonada. A 10 de dezembro, o cemitério de Lagôa Funda recebia 1.004 cadáveres! Esse assombroso obituário, de um dia, encheu de pânico a quantos dele tiveram notícia. Mitigar os efeitos da recessão no Nordeste não estava entre as prioridades do governo central, que concentrava seus investimentos nas províncias mais próximas da capital do Império.

Mesmo depois que a Grande Seca irrompeu, a região continuou em segundo plano. Não houve urgência para articulação de socorro, fosse financeiro ou material. O Rio de Janeiro demorou a acreditar que havia um problema — e a disputa política entre o Partido Conservador, que estava no poder, e o Partido Liberal contribuiu nesse sentido.

Os negativistas, dentre eles, o autor de “O Guarani”, um cearense!

Em um discurso na Câmara dos Representantes no início de 1877, o escritor reacionário José de Alencar, então deputado conservador, acusou a oposição de fazer uso político da climatologia e afirmou que as chuvas deveriam voltar a cair na região em pouco tempo.  Entre seus antagonistas estavam o senador liberal Tomás Pompeu de Sousa Brasil, que levou uma comitiva do Ceará nessa mesma época para pedir socorro à administração imperial. Pompeu, que era cientista e colecionava estatísticas climatológicas do Ceará, também se contrapôs à ideia popular dentre os negativistas da época de que os responsáveis pela seca eram os próprios retirantes.

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E finalmente, mesmo quando o governo central foi convencido a aprovar o envio de recursos, eles foram muitas vezes utilizados de maneira ineficiente pelos governos locais ou desviados por indivíduos que fizeram dinheiro com “o negócio da seca”.

Substitutos mais baratos que os escravos

E afinal, com a crise do sistema escravagista no Brasil, os refugiados da seca foram considerados candidatos a substituir da força de trabalho dos escravizados. As elites da região Amazônica, por exemplo, os queriam para o serviço nos seringais; já São Paulo, para o trabalho nos cafezais. Em troca: farrapos, palhoças e comida.

Intelectuais liberais da época como o abolicionista André Rebouças defendiam que a melhor maneira de “salvar” os retirantes da fome era pagar-lhes por trabalhos, pequenos ou grandes. No lugar de trazer imigrantes italianos, que era outra solução paulista, ele dizia: “A solução está aqui dentro, é só a gente administrar bem a seca.”

Por outro lado, os refugiados da fome nos sertões, aglomerados nos “currais do governo” e mal alimentados, tinham que trabalhar em obras públicas ou em serviços da administração local para conseguir dinheiro para produtos de necessidade básica. “As pessoas literalmente morriam de fazer esforço nas obras”, dizia Rebouças.

A varíola

Finalmente, a varíola. Foi nessas condições que o vírus da varíola encontrou a população do Ceará em 1878. Além dos abarracamentos cheios de pessoas com a saúde debilitada, foi decisivo o fato de que cerca de 95% da população não havia sido vacinada, a pesar de a imunização contra varíola já ser amplamente conhecida naquela época.

Barão de Studart e Rodolpho Teóphilo acrescentam outros dois obstáculos: de um lado, resistência por parte da própria população e, de outro, matéria-prima de baixa qualidade para a fabricação da vacina no nordeste enviada pelo Rio de Janeiro. A “linfa” que veio da capital, como era chamada a vacina, chegou a causar pústulas e feridas em quem a tomava, aumentando ainda mais a desconfiança.

Em meados de 1878, “a epidemia havia tomado proporções tais que a ação dos poderes públicos se limitava a assistir os doentes que estavam recolhidos às enfermarias e enterrar os mortos”, relatou Teóphilo. “Em forçada resignação, esperava-se que o tempo resolvesse tão angustiosa crise. A solução estava prevista: a varíola só se extinguiria quando atacasse o último indivíduo não imune.”

A situação só começou a melhorar em 1879, depois que os números de infecções e mortes caiu naturalmente.

Mesmo com todas as diferenças entre os momentos históricos, a maior tragédia humana ambiental documentada até então no país se explica por uma combinação de fatores que ecoa nos dias atuais, dias das tragédias naturais sulinas, provocadas pelo aquecimento global e devastações da Amazônia.

Referências:

Michael H. Glantz. Correntes de Mudança: O Impacto do El Niño sobre o Clima e a Sociedade; de 1996, publicado pela Cambridge University Press.

Michael H. Glantz. A Seca Segue O Arado: Cultivando Áreas Marginais; de 1994, publicado pela Cambridge University Press.

Fagan, Brian. Inundações, Fomes e Imperadores: El Niño e o Destino das Civilizações; publicado em 2000 por Livros Básicos.

Nicholas G. Arons. Esperando por Chuva: A Política e a Poesia da Seca no Nordeste do Brasil; publicado em 2004 pela Universidade do Arizona Press.

Euclides da Cunha, Os Sertões.

Proust


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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