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Toggle“Com uma análise rigorosa das coisas, ninguém podia esperar uma mudança substancial na Guatemala. Se olharmos do ponto de vista do campo popular — nós, os pobres a pé, o povo trabalhador, o movimento social —, é verdade que não se vê o avanço positivo que alguns esperavam”. A afirmação é do analista político Marcelo Colussi, em relação aos primeiros oito meses de gestão do governo em exercício no país centro-americano.
“A chegada do partido Movimento Semilla (Semente) e de Bernardo Arévalo à presidência gerou expectativas, claro, isso é humano, [já que] vem algo diferente […] Sempre existe a esperança, é a última que morre, dizem”, segue Colussi, psicólogo de profissão, licenciado em Filosofia, catedrático universitário e pesquisador. Em declarações exclusivas à Prensa Latina, ele reforça que poucos esperavam o triunfo deste agrupamento.
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A seu ver, os mais surpresos foram os próprios membros do Semilla — qualificado em princípio como progressista, socialdemocrata —, “porque não tinham um projeto político para encarregar-se de dirigir a nação. Uma força que falava da luta contra a corrupção, surgida a partir das mobilizações de 2015, não tinha realmente um plano articulado, organizado, de transformação; não tinham gente”.
Segundo o também escritor argentino radicado na Guatemala, de repente ganham as eleições de agosto de 2023 e enfrentam o Pacto de Corruptos, os setores mafiosos, a narco-atividade e o contrabando. Inclui-se ainda o crime organizado, todas as redes de tráfico de pessoas, “que ocuparam boa parte da estrutura do Estado, o sistema judiciário, as Cortes, boa parte do Congresso”, entre outros.
Primeiro dia
Mesmo antes de chegar o primeiro dia, nem o próprio 14 de janeiro de 2024 foi um dia feliz e tranquilo para o Semilla, Arévalo e sua companheira de chapa, Karin Herrera, porque obstaculizaram sua tomada do poder, lembra entrevistado. Em sua opinião, e na de muitos, estes supostos 106 dias de luta popular dos 48 Cantões do departamento de Totonicapán, que defenderam a democracia, parecem um artifício em que houve a mão dos Estados Unidos.
“Eles, os gringos, sabem fazer isso muito bem, são outras tantas revoluções coloridas, e esse movimento indígena tem uma inclinação de direita, votaram inclusive no genocida Ríos Montt (chefe de Estado entre 1982 e 1983). Então – enfatiza Colussi – foi uma mobilização que pedia a renúncia do cargo da Procuradora-Geral Consuelo Porras, também chefe do Ministério Público, apenas isso, mas serviu para que a democracia na Guatemala fosse defendida”.
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“Qual democracia?”, pergunta, ao mesmo tempo em que responde que é só aquela entendida como ir votar a cada quatro anos, a formal, que não muda absolutamente nada: “o povo continua tão pobre como sempre, excluído, reprimido, a democracia é uma piada, não é verdade? Mas, bom, foi defendida”, diz o analista político, que escreve regularmente em diversos meios eletrônicos alternativos.
“De uma posição crítica – acrescentou – como podemos considerá-la real quando há 30 partidos políticos financiados todos pelo grande capital, pela oligarquia tradicional, que continuam sendo os donos do país e escrevem o roteiro? Até 13 de janeiro de 2024, ainda não estava claro se Arévalo e Herrera poderiam assumir; foi necessária a intervenção da embaixada estadunidense, algo de que não se fala muito”, confessou à Prensa Latina.
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Deixaram o Semilla assumir, acrescentou, com o aval da atual administração democrata da Casa Branca, “por isso o Pacto de Corruptos vê Donald Trump como a possibilidade de empoderar-se novamente e fazer qualquer coisa”.
A chegada do presidente Arévalo ao cargo – segue o professor – significou um parto com fórceps, com muito sofrimento, e demonstrou que ia ser difícil avançar com estes grupos incrustados no Estado.
Depois de oito meses
Para o pesquisador social, o atual Governo neste período identificou muitos casos de corrupção, mais de 100, “seguindo sua proposta”, além de atacar em certa medida grupos criminosos, ou seja, agiram em matéria de segurança. “Apoiou o movimento esportivo e sua inclusão com a bandeira e o hino nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, assim como busca a transparência ao tirar uma ou outra ministra por determinados atos”, reconhece Colussi.
“No entanto, o poder continua nas mãos dos empresários, da burguesia ascendente, no que os Estados Unidos desempenham um papel crucial. Há uma luta contra a corrupção e esse é o projeto de Semilla, mas cuidado para que as árvores não nos impeçam de ver o bosque”, insiste intelectual, que descarta que este flagelo seja realmente o grande problema da Guatemala ou do mundo: “o povo está pobre, tem penúria, passa fome, está feito lixo, e não há trabalho, devido ao sistema capitalista”, argumenta.
A corrupção – exemplificou – é a cereja do bolo: “aqui 50% da população está abaixo do nível da pobreza, uma de cada duas crianças, terrível, lamentável”.
“A Guatemala tem a nona economia da América Latina, não é uma nação sem recursos, possui um produto interno bruto maior que o da Costa Rica, Bolívia, ainda que super mal distribuído”, diz o especialista. Arévalo despertou esperanças e rapidamente se viu que era papel molhado, porque – explica – o problema básico do país está em como se distribui a riqueza.
A organização do sistema é absolutamente injusta, com 18% da população em analfabetismo aberto em pleno século 21, 80% funcionais, sublinha. Isso não se resolve com democracia formal, burguesa, representativa, “a chegada do Semilla em uma noite tão escura representou uma luzinha que fez pensar em uma mudança”, insistiu Colussi.
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O que fez, já que não pode grande coisa: “contra a corrupção, tem um discurso politicamente correto? Talvez. Reforma agrária? Nem pensar”, acentuou.
“A promessa de uma nova primavera e de que o filho de Juan José Arévalo (ex-presidente entre 1945 e 1951) leva no sangue a Revolução, aparece como uma forma muito romântica de observar o assunto”, concluiu o analista político.