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Foto: Gage Skidmore / Flickr

“Haitia”, “países do México”: ignorância trumpista é estratégia e garante tempo de tela

Muito se questiona como Trump podem repetidamente fazer declarações confusas, ignorantes e, em alguns casos, sabendo que são mentiras
David Brooks, Jim Cason
La Jornada
Nova York

Tradução:

Beatriz Cannabrava

A ignorância geográfica e as acusações sobre quem é “fascista” ou “marxista” na contenda eleitoral nos EUA exibem como a direita está nutrindo a deterioração do debate político nacional com graves consequências, embora também fornecendo cada vez mais material aos comediantes.

Em Springfield, Ohio, ameaças de bombas e o número de policiais nas escolas foram resultado de Donald Trump e seu vice, JD Vance, terem espalhado relatos falsos de que imigrantes haitianos estavam roubando e comendo os animais de estimação dos cidadãos, provocando ira e medo, mas também risos diante do absurdo desse tipo de declaração na disputa pela presidência do país mais poderoso do mundo.

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“Esses migrantes haitianos ilegais, ninguém sabe de onde vêm”, declarou Trump há algumas semanas em referência à comunidade de cerca de 20 mil migrantes autorizados provisoriamente, em sua maioria haitianos, em Springfield. Uma semana depois, o ex-presidente parecia ter a resposta. “Faremos grandes deportações, vamos devolvê-las à Venezuela”, declarou em um comício com seus fanáticos.

O candidato à vice-presidência escolhido por Trump, JD Vance, formado na prestigiada Universidade de Yale, também parece ter problemas com a geografia. Em um comício, ele declarou que esses 20 mil migrantes são “principalmente de Haitia”, inventando assim um país. O muito popular programa de notícias fictício The Daily Show aproveitou o presente de ambos os candidatos aos humoristas políticos, perguntando: “os haitianos são de Haitia, Venezuela ou de um terceiro país que ainda não identificamos?” E conclui: “seguramente escutaremos mais sobre esses migrantes, desses especialistas mais destacados sobre o Haiti neste país” 

Cinismo, terrorismo e a estranha democracia dos EUA

Mas a maior e mais séria pergunta é: como é que esses políticos, um ex-presidente e um senador neste caso, podem fazer repetidamente declarações que são tão confusas, realmente ignorantes e, em alguns casos, sabendo que são mentiras? JD Vance explicou por que repetiu suas afirmações de que os haitianos em Springfield estavam comendo cães e gatos, mesmo depois de desmentidas pelas autoridades locais e pela mídia. “Se eu tiver que criar histórias para que a mídia preste atenção ao sofrimento do povo estadunidense, então é isso que eu vou fazer”, comentou em entrevista à MSNBC News na semana passada.

Mentiras alcançam novos patamares

Os republicanos não têm o monopólio das mentiras e falsidades. Como o lendário jornalista IF Stone repetia: “Se você quer saber sobre os governos, tudo o que necessita saber são três palavras: todo governo mente”.

Mas na disputa de 2024, essa arte dos políticos tem escalado a novos patamares. E parte disso se exibe no quase infantil deterioro do que agora é parte do debate político nacional. Por exemplo, imediatamente depois de ser informado que um atirador havia sido detectado em um dos campos de golfe de Trump com a intenção de assassinar o ex-presidente, Vance responsabilizou os democratas e progressistas: “a esquerda necessita baixar o tom da sua retórica… Não podemos dizer ao povo estadunidense que um candidato é fascista e que, se for eleito, isso será o fim da democracia estadunidense.”

Nem Trump, nem Kamala: quem vai seguir no comando dos EUA são os bilionários

Ele não mencionou que ele e seu chefe Trump acusam repetidamente que o país está ameaçado por seus opositores democratas. Trump costuma repetir que a candidata presidencial democrata, Kamala Harris, “é uma marxista, uma fascista, e às vezes acrescenta “comunista e socialista” a essa lista, e não deixa de qualificar a administração de Joe Biden e Harris como um “governo de esquerda radical”.

De fato, o Daily Show foi quem melhor captou essas mudanças. E, mais uma vez, essa comédia e outros programas de sátira e comentário humorístico estão oferecendo talvez a melhor cobertura dessa eleição — e o público às vezes confia mais neles do que na mídia séria. Uma pesquisa do Pew Research Center reportou que pouco mais de um em cada cinco jovens entre 18 e 29 anos depende de programas humorísticos noturnos para sua informação política – quase o mesmo percentual dos noticiários nacionais da ABC, NBC e CBS – um aumento significativo em comparação com quatro anos atrás.

Estadunidenses ignoram impactos da eleição nos EUA ao resto do mundo

A aparente falta de conhecimento geográfico do povo da superpotência mundial não é nada nova. Vale recordar, por exemplo, que há cinco anos a Fox News relatou sobre um novo programa do então presidente Trump para reduzir a assistência estrangeira, com a manchete na tela afirmando: “Trump corta assistência a três países mexicanos. Os apresentadores da Fox se desculparam depois, esclarecendo que se tratava não de México, mas de Guatemala, Honduras e El Salvador.

Arrogância e ignorância

Mas para muitos, foi mais uma amostra da arrogância e ignorância de partes da cúpula política deste país, sobretudo a que rodeia o mundo de Trump, incluindo a mídia de direita. Para eles, como disse um comentarista, “todos os países latino-americanos são iguais”.

Para além de se os imigrantes estão comendo cães e gatos, e dos memes (gatos armados para se defender; cães assustados escutando as informações, vendedores de hot dogs anunciando orgulhosamente que os migrantes comem seus cachorros-quentes) e as piadas que isso provoca para zombar desses aspirantes à presidência e vários de seus cúmplices, as consequências sobre alguns dos setores mais vulneráveis – crimes de ódio, ameaças e mais – não são nada engraçadas.

La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

David Brooks Correspondente do La Jornada nos EUA desde 1992, é autor de vários trabalhos acadêmicos e em 1988 fundou o Programa Diálogos México-EUA, que promoveu um intercâmbio bilateral entre setores sociais nacionais desses países sobre integração econômica. Foi também pesquisador sênior e membro fundador do Centro Latino-americano de Estudos Estratégicos (CLEE), na Cidade do México.
Jim Cason Correspondente do La Jornada e membro do Friends Committee On National Legislation nos EUA, trabalhou por mais de 30 anos pela mudança social como ativista e jornalista. Foi ainda editor sênior da AllAfrica.com, o maior distribuidor de notícias e informações sobre a África no mundo.

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