A operação Lava Jato e suas diversas fases desvendaram grandes casos de corrupção no Brasil e se tornaram um fetiche nacional. Um dos pontos mais curiosos é que sendo ao mesmo tempo Brasil rota do tráfico internacional de drogas e grande mercado consumidor de drogas (o que também torna o país importante destino do tráfico internacional de armas), todos os desdobramentos desta operação que tem seu nome derivado da descoberta de uma grande lavanderia de dinheiro só tenha tido novas fases relacionadas apenas à corrupção política.
Olhar a Lava Jato hoje com todos seus desdobramentos dá uma impressão de que é mais uma operação de desconstrução do Estado Brasileiro do que propriamente de combate ao crime nesse país. A prisão de Lula, independentemente do que acha o caro leitor sobre a culpa ou inocência do ex-presidente da República, carece nitidamente de provas e se sustenta em delações feitas sob coação como a do ex-presidente da OAS, Léo Pinheiro, que foi diversas vezes negada e só foi aceita quando finalmente incluiu o líder petista. O desenrolar deste enredo é conhecido, o juiz que condenou Lula virou ministro do presidente que só foi eleito porque Lula não pôde disputar as eleições em consequência da condenação imposta por este juiz.
A Lava Jato se tornou uma ideia. Tanto que uma das medidas anunciadas pelo governo Bolsonaro foi a Lava Jato da educação. No lugar de adotar medidas concretas contra o subfinanciamento crônico das políticas sociais, o atual governo brasileiro prefere a criminalização destas políticas. O desmonte do Estado Brasileiro da Lava Jato enquanto ideia, já provocou a morte do reitor Cancellier da UFSC, uma devassa na UFMG com a abusiva condução coercitiva de diversos profissionais e logo antes do carnaval chegou à UFRJ com a condenação do ex-reitor Carlos Levi e outros gestores da universidade e de sua fundação de apoio.
O caso da UFRJ ilustra bem a lógica do desmonte do Estado Brasileiro que vem sendo promovida pela ideia da Lava Jato. As autoridades judiciais do Rio consideraram que seria crime o pagamento de taxa de administração de 5% à Fundação Universitária José Bonifácio de cerca de R$ 40 milhões doados pelo Banco do Brasil à UFRJ. O primeiro absurdo é que os pagamentos ocorreram entre 2007 e 2010 e Levi, o reitor condenado, ocupou o cargo entre 2011 e 2015.
O segundo e maior absurdo é que a lógica do subfinanciamento crônico obriga as universidades a captarem recursos fora do orçamento da União e para isso utilizam as fundações de apoio para receber tais verbas, porque se fossem depositadas para a União desapareceriam no bolo do orçamento geral. Ademais, a prática adotada pela UFRJ é comum a todas as universidades que possuem Fundações de Apoio justamente para garantir a gestão dos recursos extra-orçamentários de maneira ágil, eficiente e transparente.[i] Tratar o ordinário e regular como criminoso é uma estratégia que busca criminalizar a gestão pública, colocar na defensiva qualquer um que assuma um cargo de gestão e servir de linha auxiliar ao desmonte do Estado Brasileiro.
ALAI
Dallagnol diz que Lula é a peça central da Lava Jato
A ideia Lava Jato se manifesta também na suposta caixa-preta do BNDES. Alvo de mais uma das infinitas operações da Polícia Federal, no caso do BNDES Operação Bullish (mas bem que poderia ser chamada de operação Bullshit, pois só trata de bobagens de blogueiros histéricos), busca-se criminalizar a atividade do Banco para talvez, quem sabe, justificar seu desmonte. Na verdade, em qualquer análise mais detalhada percebe-se que os sistemas internos de controle do banco são mais que suficientes para garantir a regularidade das operações. Há na realidade um ataque ao Banco enquanto instituição, não uma busca por uma real apuração de malfeitos.[ii]
Na verdade, a Lava Jato enquanto ideia pode ser resumida na frase do presidente Jair Bolsonaro: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós iremos construir coisas para o nosso povo. Nós temos que desconstruir muita coisa”. É a desconstrução do Brasil! Nesse sentido que deve ser entendida a reforma da previdência, sob a justificativa de atacar privilégios preserva os três únicos setores privilegiados depois das inúmeras reformas: os militares, o judiciário e o legislativo.
A proposta de reforma da previdência usa inclusive da chantagem, sem qualquer embasamento econômico, de que não haveria recursos para pagar os servidores públicos em 2020 sem reforma. Além de partir do pressuposto errado de que há um problema fiscal, governos monetariamente soberanos não têm restrição fiscal, apenas restrições econômicas. E estas não se aplicam ao Brasil de hoje, que possui grandes reservas internacionais e é um dos 10 maiores países do mundo em PIB, população e território simultaneamente. Em realidade, a discussão da previdência é toda baseada em falsos pressupostos.[iii]
Talvez a reforma da previdência seja derrotada, mas o ministro Paulo Guedes já sinalizou o plano B: a desvinculação dos orçamentos da saúde e educação. O problema não está na desvinculação em si, se esta fosse substituída por pisos elevados de gastos para estas áreas poderia até ser benéfica. Todavia, as vinculações hoje funcionam exatamente como um piso de gastos e seu fim busca rebaixar esse piso e sacramentar a desconstrução do Estado.
A Lava Jato enquanto ideia também tem afetado nossas relações internacionais. Sob o argumento de uma “despetização” ou desideologização das relações internacionais, nunca antes as relações exteriores do Brasil estiveram tão ideologizadas. A Lava Jato supostamente combate privilégios e nada mais natural para essa ideia que o Brasil abrir mão de seus status de país em desenvolvimento na OMC, afinal é um privilégio. Os privilégios são típicos de ditaduras e, em vez de sermos mediadores da crise venezuelana, vamos entrar em guerra com a Venezuela para acabar com os privilégios da ditadura venezuelana.
No entanto, a ideia central da Lava Jato tampouco são os privilégios, mas uma relação subalterna e vassala em relação aos EUA. Talvez por isso tantos analistas afirmem que a operação é comanda a partir de Washington (ou seria de Langley, Virgínia?). É uma operação de desconstrução do Brasil. Se o golpe foi a derrota do Brasil numa guerra híbrida, agora os vencedores vieram recolher os espólios. Há que se organizar a resistência, para ontem.
Post scriptum: Não somos contra o combate à corrupção, mas há maneiras de fazer sem destruir um país. Um exemplo são as empreiteiras que foram destruídas pela operação, sua estatização (ainda que temporária), ao invés da imposição de multas e suspensão de contratos que teriam um impacto muito menor na economia que a forma como foi conduzido o processo. Outros exemplos poderiam ser dados, mas parece que a Lava Jato, desde seu início, optou pela destruição do país, tanto que a operação de lavagem de dinheiro ignorou os outros crimes e se restringiu à corrupção. O fundo bilionário que os procuradores da Lava Jato tentaram construir com o dinheiro da Petrobras também coloca em dúvida a honestidade daqueles que, em tese, deveriam promover a justiça.
Notas
[i] Mais detalhes ver Nota da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (ABED), disponível em <http://brasildebate.com.br/economistas-denunciam-perseguicao-judicial-na-universidade/>
[ii] Maiores informações sobre os ataques ao BNDES podem ser encontrados na página da Associação de Funcionários do BNDES. Solidariedade e compromisso com a verdade, disponível em <http://www.afbndes.org.br/vinc1337/acontece.htm>. Compliance strikes back?, disponível em <http://www.afbndes.org.br/vinc1337/editorial.htm>.
[iii] Se quiser entender a argumentação do autor sobre a reforma da previdência, ver Previdência para além do déficit, disponível em <http://brasildebate.com.br/previdencia-para-alem-do-deficit/>.
– Gustavo Noronha é economista do Incra e colunista do Brasil Debate