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Foto: X de UNRWA

Lucro com desespero: empresa egípcia extorque palestinos que tentam fuga por Rafah

Hala Consulting and Tourism cobra em torno de US$ 5 mil por adulto e concede permissão que em tese só poderia ser emitida pelo governo do Egito
Fabiola Barranco
elDiario.es
Madri

Tradução:

Ana Corbisier

O telefone de Yafa não para de tocar: recebe chamadas e mensagens de familiares, amigos ou desconhecidos que, como ele, se desdobram para buscar uma forma de tirar seus familiares da Faixa de Gaza. Este homem palestino, que prefere proteger sua verdadeira identidade, chegou à Espanha em 2008. “Nasci em Gaza, sendo refugiado, como a maioria da população ali e este ano decidi começar meu processo migratório”.

Naquele momento, o Exército israelense lançou a operação ‘Chumbo Fundido’, a primeira ofensiva contra a Faixa desde que o Hamas tomou o poder em 2007 e Israel impôs um bloqueio ao enclave palestino. As operações militares israelenses se repetiram em 2012, 2014, 2020, 2021 e 2022, até a atual guerra, com certeza a mais longa e mortífera (mais de 33.200 pessoas morreram, inclusive pelo menos 14.500 menores, segundo a última contagem das autoridades de Gaza).

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Yafa reconhece que em 8 de outubro – um dia depois do ataque do Hamas contra Israel – se levantou pensando que “desta vez seria diferente”. “Por desgraça, não me enganei”, lamenta. Os habitantes de Gaza que viveram as guerras anteriores asseguram que “é um genocídio o que Israel está cometendo” nesta ocasião. “Minha mãe me disse muitas vezes: isto não tem nada a ver com outras agressões que vivemos em Gaza anteriormente”, conta o homem de menos de 40 anos.

Sua mãe viveu os primeiros 142 dias da guerra, que no último domingo completou seis meses. Depois, pôde fugir para a Espanha e agora já está a salvo. No entanto, Yafa reconhece que o caminho para chegar até aqui foi “um pesadelo” e não terminou: “Temos outros 19 familiares diretos tentando sair de lá”.

Evacuação de não residentes

No entanto, os pais de Yafa não são residentes de Gaza: “Minha mãe e meu pai são residentes permanentes na Espanha, a guerra os pegou em Gaza. Pedimos ao Governo [espanhol] que os evacuem. É verdade que não puderam chegar à evacuação de novembro e dezembro porque sua casa foi bombardeada e não era possível localizá-los; então a Espanha lavou as mãos dizendo que os que quiseram sair já saíram”, denuncia.

Uma contestação que coincide com a que deram fontes do Ministério do Exterior ao elDiario.es, afirmando que “todos os espanhóis que em algum momento quiseram sair, já saíram”. No entanto, Yafa nega isso e garante que seu caso não é o único, que há mais familiares de hispano palestinos que estão tentando fazer pressão política e midiática para conseguir que o Governo da Espanha evacue seus seres queridos.

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Segundo Yafa, conseguiram “a promessa do Governo de reativar outra evacuação da colônia espanhola em Gaza”, mas ainda não cumpriram, lamenta. As mesmas fontes ministeriais não deram informação sobre a possibilidade de evacuar mais pessoas de Gaza por “razões de proteção de dados”.

“Para salvar minha família, estou financiando a corrupção”

“Depois de tentar todas as vias legais possíveis, que não estão funcionando, em minha família nos vimos obrigados a buscar a única alternativa que existe no dia de hoje: subornar para tirar nossos familiares, por meio da empresa egípcia Ya Hala”, explica Yafa com resignação. Lamenta que esta opção supõe para eles “um conflito moral porque, para salvar minha família, estou financiando esta corrupção”, mas, assegura, “não há outra opção”.

A única passagem fronteiriça de Gaza que conecta com o mundo exterior é a de Rafah, entre a Faixa e o Egito. No entanto, só uns poucos afortunados com passaporte estrangeiro e feridos ou doentes crônicos conseguiram cruzar a fronteira. Os demais devem recorrer à empresa egípcia mencionada por Yafa, Hala Consulting and Tourism, encarregada de cobrar para incluir os familiares na lista de pessoas autorizadas a sair de Gaza por Rafah e, dali, dirigir-se ao Cairo.

Uma ambulância saindo pela passagem fronteiriça de Rafah, de Gaza para o Egipto. Europa Press/Mohammed Talatene/dpa

A empresa, além de vender as viagens até a capital egípcia, fornece permissões para cruzar a fronteira, ainda que supostamente esta autorização só possa ser concedida pelas autoridades egípcias. Em janeiro deste ano, o Serviço de Informação Estatal do Governo egípcio emitiu um comunicado para desmentir as acusações sobre a cobrança de “taxas adicionais” por parte de funcionários aos palestinos que tratam de fugir de Gaza.

“Facilitar as viagens entre o Egito e a Palestina. Nossa ampla experiência nos permite facilitar vistos de viagem e documentos de residência para garantir um processo sem complicações para quem quer viajar”, reza o site do conglomerado Organi Group, propriedade do empresário da península do Sinai, Ibrahim Al Organi.

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A companhia oferece este serviço conhecido como “coordenação” e que já existia antes da ofensiva atual em Gaza, segundo Yafa; assim como a informação que aparece em seu site – que já não se pode acessar da Espanha. Agora, o negócio cresceu ante a magnitude da violência e da destruição provocadas por Israel nos últimos seis meses.

“Você tem que ir a uma loja no Cairo, ali te humilham durante dias para atendê-lo. A tarifa está clara: são 5 mil dólares para os maiores de 16 anos e 2.500 dólares para os menores. Você tem que pagar à vista, te cobram, te dão o recibo e você espera que sua família apareça na lista de pessoas com permissão para sair de Gaza”, explica Yafa, enquanto mostra os recibos que esta agência de viagens no Egito lhe entregou.

Lista de autorizados

Cada noite, é publicada uma lista com os nomes das pessoas que estão autorizadas a cruzar Rafah no dia seguinte. “Todos os nossos familiares estamos em um grupo de Telegram onde publicam estas listas, esperando que apareça o nome de algum dos nossos porque isso significa que já poderão sair”, diz.

“Nos afogamos economicamente, além de moralmente. Nos endividamos até os filhos dos filhos; pedimos empréstimos bancários, além de empréstimos de amigos e familiares; investi todas as minhas economias. Consegui arrecadar quase 40 mil dólares, somente para trazer uma parte [de minha família]: pais, alguns irmãos e sobrinhos, mas não todos porque não podemos”, lamenta.

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O homem se desdobra para que seus seres queridos apareçam nestas listas, para que saiam com vida de Gaza, e não nos intermináveis comboios que recolhem os mortos pelos ataques de Israel ou que sofrem os estragos que está causando a guerra, como a fome. Pelo menos 30 crianças morreram em hospitais por desnutrição e desidratação, segundo as autoridades locais.

Apesar de todos os esforços, ainda há 13 familiares diretos que Yafa quer ajudar a escapar. Por isso, seu irmão lançou uma campanha para arrecadar dinheiro pela internet, com a qual pretende conseguir os 65 mil euros de que necessita para pôr a salvo o resto da família, entre eles irmãos e sobrinhos.

Apelar à solidariedade alheia

Cada vez mais integrantes da diáspora palestina em todo o mundo recorre a esta solução, não só na Espanha. Tanto é assim que a própria plataforma GoFoundMe, “ante o significativo aumento de pessoas ao redor do mundo arrecadando fundos para ajudar os que se encontram em Gaza”, compartilhou em seu site um guia com indicações e sugestões.

“Ajude minha família para que escape de Gaza e possa reconstruir sua vida”, “Evacuar minha família de Gaza”, “Ajude minha família de Gaza a ter uma vida segura”. Estas são algumas das mensagens que centenas de palestinos lançam nas redes, em busca da solidariedade dos demais para pôr a salvo seus seres queridos.

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A irmã de Rita também decidiu lançar uma campanha similar para arrecadar dinheiro que permita evacuar seus pais e avós. Rita já se encontra na Espanha com seus filhos, felizmente, porque em outubro estava em visita e não pôde regressar a Gaza depois do começo da guerra. “Estou feliz por estar aqui, porque qualquer coisa é melhor que a morte. Mas é muito duro porque não é algo que você planejou”, explica esta mulher que também pede para manter o anonimato para não pôr em perigo sua família ainda retida em Gaza.

Embora seja certo que a campanha que empreendeu sua irmã teve bastante êxito, porque arrecadou o dinheiro solicitado em pouco tempo, quando realizou-se esta entrevista, os nomes de seus pais e avós ainda não tinham aparecido na lista de autorizados a cruzar a passagem fronteiriça de Rafah.

“Meus pais não queriam sair até assegurar-se de que poderão evacuar também meus avós. Não podiam deixá-los sozinhos. As pessoas mais velhas nesta situação têm muita dificuldade para sobreviver: precisam deslocar-se para escapar dos bombardeios e estas viagens às vezes têm que ser até em carros de animais [burros ou cavalos]; tampouco á fácil conseguir comida e remédios”, explica.

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“Tenho amigas que me ligam desesperadas, loucas de dor porque perderam filhos nos bombardeios e buscam uma saída, mas eu não posso fazer nada”, lamenta enquanto agarra o cartaz com o mapa da Palestina pendurado em seu pescoço, como se fosse um ato reflexo para acalmar essa impotência que diz sentir.

Olhar para o futuro agora é impossível. “É difícil pensar em mais nada, a prioridade é evacuar meus pais e avós de Gaza; depois veremos”, reconhece Rita. Tanto ela como Yafa garantem viver no presente. Enquanto isso, seus familiares esperam sobrevivendo em barracas de campanha instaladas no sul da Faixa, em precárias condições e com medo da ofensiva que Israel prometeu lançar contra Rafah – a localidade fronteiriça com o Egito, onde se refugiaram mais de um milhão de moradores de Gaza que fugiram de suas casas.

“Tudo isso é só para que cheguem ao Cairo; ali estarão em situação irregular”, destaca Yafa. “Logo veremos mais palestinos buscando rotas para chegar à Líbia e cruzar o mar Mediterrâneo como possam. Porque estão chegando a embaixadas e consulados onde não lhes dão resposta. Não há vias legais nem seguras. Lamentavelmente, veremos mais mortes”.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Fabiola Barranco

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