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Toggle“Nós devemos ser aqueles que decidem quem vem para a UE”. Séria e batendo no peito com o punho, a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, fez esta afirmação em conferência de imprensa no princípio de abril, justo depois que o Parlamento Europeu deu luz verde ao novo Pacto de Migração e Asilo que endurece as condições de entrada no território comunitário e agiliza o processo de expulsão dos solicitantes.
Aprovado com bastante debate e muita polêmica, esta nova lei segue a linha de blindagem de fronteiras que a UE vem aplicando em matéria de imigração durante a última década, desde que a crise humanitária desencadeada pela guerra na Síria fez com que dezenas de milhares de pessoas tentassem entrar na União, fugindo da guerra e buscando amparo administrativo. O último episódio, que pôs Bruxelas à prova, foi a queda do governo do Afeganistão em mãos dos talibãs, o que de novo ocasionou milhares de deslocados e solicitantes de asilo. A isto deve-se somar as contínuas tentativas de chegar ao solo europeu pelo Mediterrâneo.
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Em todos os casos a resposta da UE é sempre a mesma: migrantes amontoados em centros de detenção e campos de refugiados; golpeados nas fronteiras e devolvidos à força ao país extracomunitário desde o qual tentavam chegar; migrantes estafados e vexados por redes de traficantes de pessoas; migrantes deportados em voos charter; migrantes afogados no mar ou mortos de frio em uma mata recôndita dos Bálcãs.
“O pacto padece de uma falta de respeito aos direitos humanos, especialmente nas fronteiras, e não dá resposta a questões como a divisão de responsabilidades e a solidariedade entre os estados”, afirma Nuria Díaz, coordenadora estatal e porta-voz da Comissão Espanhola de Ajuda ao Refugiado (CEAR), que augura que “neste cenário tão incerto em nível global é previsível que as migrações aumentem”, e a legislação da UE “não vai frear esta situação nem dar resposta às necessidades atuais”.
Pessoas e fronteiras usadas como arma
Atualmente, a política migratória da UE se baseia em dois pilares: a construção ou ampliação de valas e muros em seus estados limítrofes — como as de Melilla e Hungria —, e a cessão do controle fronteiriço e do fluxo de migrantes para terceiros países em troca de dinheiro ou de vantagens diplomáticas — como sucede com a Turquia, o Egito e Níger. Deste modo, a UE consegue conter a chegada de refugiados, mas às custas de violar a Convenção de Genebra ao descumprir as garantias do direito de asilo.
“Estas práticas ameaçam reter pessoas em estados onde seus direitos humanos correrão perigo, e tornam a UE cúmplice dos abusos que possam ser cometidos contra eles, comprometendo a capacidade europeia de defender os direitos humanos mais além do bloco”, assegura Eve Geddie, diretora do escritório da Anistia Internacional ante as instituições europeias. Depois da retirada dos Estados Unidos e da tomada do poder pelos talibãs, a UE financiou com mais de 200 milhões de euros a construção de um muro na fronteira turca com o Irã.
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Um exemplo claro desta externalização das políticas de migração se dá precisamente na Turquia. Em 2016, Bruxelas negociou um acordo com Erdogan: 6,6 bilhões de euros dos fundos públicos da UE em troca de as autoridades turcas colocarem guarda-costas e vigiarem a fronteira com a Grécia para evitar a passagem de migrantes para solo comunitário. Em 2021 o acordo foi ratificado e a Europa desembolsou outros 3 bilhões de euros.
Turquia, um sócio eficaz
A Turquia também é um sócio eficaz da Europa no momento de frear a chegada de refugiados afegãos. Depois da retirada dos Estados Unidos e da tomada do poder pelos talibãs, a UE financiou com mais de 200 milhões de euros a construção de um muro na fronteira turca com o Irã, dificultando a entrada dos migrantes na Turquia. Hoje, mais de 2 mil quilômetros de arame farpado e cimento limitam a chegada de migrantes ao continente no que, de algum modo, supõe um deslocamento da fronteira sul oriental da União Europeia. Os afegãos que conseguem pisar o solo turco são recluídos em centros de detenção também financiados pela UE, e outros muitos são devolvidos à força a Cabul, apesar de que ali suas vidas correm perigo, um procedimento que infringe o direito internacional.
No entanto, dar a gestão das próprias fronteiras a terceiros países também propicia que as pessoas migrantes sejam utilizadas como uma arma geopolítica de pressão contra a UE. Em maio de 2021, Rabat desafiou o governo espanhol deixando que em um par de dias cerca de 10 mil migrantes tentassem cruzar as valas de Ceuta e Melilla.
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O Marrocos estava incomodado porque um mês antes a Espanha aceitara transportar para um hospital de La Rioja o líder da Frente Polisário, o movimento de libertação do Saara Ocidental, antiga colônia espanhola cuja soberania o Marrocos reclama. A chantagem funcionou, e semanas depois o Executivo espanhol demitiu a ministra de Exteriores e Madri reconheceu o Saara Ocidental como parte do território marroquino. Segundo um informe da ONG Danish Refugee Council (DRC), em 2023 houve mais de 28.600 devoluções a quente nas fronteiras comunitárias
Bielorrússia
Há dois anos, a Bielorrússia também tentou desestabilizar a Europa utilizando os migrantes como instrumento de pressão. Depois de umas eleições sem garantias democráticas em que Aleksandr Lukashenko revalidou o mandato que ostenta desde 1994, a UE impôs sanções a funcionários bielorrussos por suposta fraude eleitoral e por reprimirem os protestos que surgiram no país.
Em resposta, o governo de Lukashenko atraiu cerca de 40 mil migrantes, a maioria procedentes do Oriente Médio, e os enviou para a fronteira com a Polônia. As forças de segurança polonesas chegaram a utilizar cassetetes, canhões de água e gases lacrimogêneos para repeli-los, e alguns meses depois Varsóvia finalizou a construção de um muro de alta segurança de 200 km na fronteira com a Bielorrússia.
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“Pagar a terceiros países torna as pessoas migrantes e refugiadas moeda de troca para os interesses políticos”, insistem no CEAR. “É uma prática completamente desumana que se vem aplicando na Espanha e na UE com mais intensidade nos últimos anos, e não é a resposta adequada nem às necessidades de proteção destas pessoas, nem às causas de sua fuga. Só o que consegue é externalizar responsabilidades em países que vulneram direitos humanos e onde os migrantes ficam enredados em vez de receber proteção”.
Violações de direitos humanos
Para fechar e controlar as fronteiras de toda a UE, seria necessário um exército de 200 mil efetivos, e a Frontex, agência encarregada desta missão, só tem 1.500, apesar de ter sido quadruplicado seu orçamento em menos de 10 anos. Por isso, Bruxelas tenta primeiro levantar diques de contenção pagando a terceiros países para que mitiguem o fluxo de migrantes sem se importar com o respeito aos direitos humanos, e depois aumenta e reforça seus próprios muros para evitar acolher os que chegam. Segundo um informe da ONG Danish Refugee Council (DRC), em 2023 houve mais de 28.600 devoluções a quente (devoluções ilegais de pessoas com direito a proteção internacional) nas fronteiras comunitárias.
Desde 2016, a UE multiplicou por quatro o orçamento destinado à Frontex, até esbarrar nos 1 bilhões de euros atuais, e também se propôs a aumentar sua presença fora das fronteiras comunitárias implantando efetivos nestes terceiros países como faz por meio de programas como EUCAP Sahel, onde agentes europeus dão formação a policiais autóctones.
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Do outro lado do Mediterrâneo, a estratégia é exatamente a mesma. A Líbia é uma rota importante de trânsito para a Europa para os migrantes subsaarianos, e a UE assinou acordos com várias facções do país depois da guerra que derrubou Kaddafi depois da Primavera Árabe. Do mesmo modo que no caso turco, Bruxelas paga para que as autoridades líbias desloquem guarda-costas e guardas marítimos e se encarreguem de controlar os fluxos de migração por mar.
Há uns anos, tanto a ONU como várias ONGs alertaram que nos centros líbios de detenção de migrantes estavam ocorrendo torturas, violações e assassinatos, de modo que a UE quis evitar as críticas e se pôs a pressionar o Níger, um país mais ao sul, para que endurecesse suas leis de trânsito e continuasse fazendo o trabalho sujo. Ali, de novo os migrantes acabam em centros financiados pela UE onde se lhes impõe uma condição: que aceitem voltar a seus países de origem, em alguns casos em troca de uma compensação econômica que pode chegar a 1.400 euros. Não obstante, muitos rejeitam a oferta e preferem arriscar a vida cruzando primeiro o deserto e depois o Mediterrâneo.
Novas rotas
Quando a Europa fecha uma rota abrem-se outras vias muito mais perigosas para as pessoas que arriscam tudo para chegar ao continente. Uma dessas rotas alternativas é a conhecida como Rota dos Bálcãs, que tem a Sérvia — um país que não faz parte da EU — como protagonista. Aqui Bruxelas aplicou os mesmos métodos que no Níger: primeiro instou a Sérvia a modificar sua política de vistos, pressionando-a com atrasar ou dificultar os trâmites de sua candidatura para ingressar na UE, e depois enviou suas próprias forças policiais, apesar de tratar-se de um território fora da União.
A Dinamarca está adotando o chamado “modelo Ruanda”, baseado em deportar — com prévio pagamento — para o país africano aqueles migrantes em situação irregular que solicitem asilo no estado dinamarquês.
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A vizinha Hungria construiu uma vala de 175 km em sua fronteira sul, no território fronteiriço com a Sérvia. Assim como ocorre com quem tenta entrar na Croácia, a cada ano milhares de migrantes são expulsos a golpes pelos policiais fronteiriços e abandonados à mercê dos elementos e das gangues de traficantes de pessoas. Por ser uma prática ilegal, não há dados oficiais sobre devoluções a quente e é difícil quantificá-las; ainda assim, em 2023 a polícia húngara constatou mais de 60 mil pessoas “presas e escoltadas através da vala”, ainda que ONGs como a neerlandesa 11.11.11 falam de quase 100 mil durante todo o ano passado.
“O Tribunal Europeu de Direitos Humanos condenou a Hungria por suas políticas de expulsão”, esclarece a responsável por políticas de migração da organização humanitária, Flor Didden. “No entanto, não houve sanções financeiras nem de outro tipo, e o mesmo ocorre com a Croácia, onde há muita documentação sobre violações”.
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Didden insiste na opacidade de Bruxelas na hora de denunciar e penalizar estas práticas: “A UE — tanto o Conselho Europeu como a Comissão — manteve silêncio sobre as violações de leis por parte dos Estados-membros […] Documentamos devoluções a quente na maioria das fronteiras da UE sem que a Comissão mostrasse uma reação adequada. Há muito pouca responsabilidade”, acrescenta.
Segundo dados da Frontex, das mais de 330 mil pessoas que entraram de maneira irregular na UE em 2023, 99 mil o fizeram pelas rotas balcânicas, e em 2024 há quase 200 mil migrantes em campos e centros de refugiados, a maioria instalados na Sérvia e na Grécia, tal como detalha um estudo da Organização Internacional para as Migrações (OIM), dependente da ONU.
O modelo Ruanda
O novo pacto de Migração foi projetado para acelerar os trâmites nas fronteiras da União e agilizar os procedimentos para deter ou expulsar aqueles solicitantes de asilo cujas petições tenham estatisticamente menores possibilidades de êxito. “Este pacote de propostas ameaça submeter mais gente, inclusive famílias com crianças, a detenções de fato nas fronteiras da UE ao negar-lhes uma avaliação completa e justa de suas necessidades de proteção. A proposta, além disso, põe inumeráveis pessoas em risco de sofrer devoluções sumárias, detenções arbitrárias e miséria nas fronteiras europeias”, insiste Geddie.
A OIM afirma que em 2023 chegaram de forma irregular às fronteiras da UE quase 300 mil pessoas, e o bloco comunitário recebeu mais de um milhão de petições de asilo, das quais há mais de 800 mil pendentes de solução, segundo dados da Comissão Europeia, que no ano passado também registrou quase meio milhão de deportações.
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Da Plataforma pela Cooperação Internacional sobre migrantes indocumentados (PICUM) asseguram que “agora qualquer pessoa que chegue à Europa sem documentos válidos provavelmente será detida em instalações fronteiriças, sem exceções quanto à idade, inclusive as famílias com crianças”, e alertam quanto aos processos acelerados de deportação, ao desamparo legal nos procedimentos administrativos nas fronteiras, ou à possibilidade de serem deportadas enquanto se resolve o recurso de expulsão.
No entanto, além do marco jurídico estabelecido pelo novo Pacto, alguns países da UE foram um passo adiante no endurecimento da política migratória. O caso mais claro é o da Dinamarca, que está implantando o chamado “modelo Ruanda”, baseado na deportação imediata — prévio pagamento — para o país africano daqueles migrantes em situação irregular que solicitem asilo no estado dinamarquês, sem importar sua procedência.
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A Dinamarca é um dos países que mais endureceu suas políticas migratórias na última década, e embora possa parecer impróprio, esta proposta nasce de uma promessa eleitoral do partido social-democrata, que lhe serviu de impulso para conseguir manter-se no poder frente ao ascenso da extrema-direita, com quem compartilha as principais propostas em matéria de imigração. Também surpreende que a medida fosse defendida pelo ministro da Imigração, Mattias Tesfaye, que é filho de um refugiado etíope.
“A maior parte da sociedade civil dinamarquesa criticou sistematicamente esta proposta, pelo risco de violar os direitos dos refugiados e dos solicitantes de asilo, e por pôr em perigo o sistema de proteção internacional”, afirma, o Danish Refugee Council. A ONG insiste em que a “Dinamarca não assinou nenhum acordo com Ruanda nem com nenhum outro país para transportar para lá os solicitantes de asilo”, ainda que reconheçam que no país “houve uma dura retórica política contra os estrangeiros durante muitos anos, inclusive os refugiados, mas, ao mesmo tempo, existe um forte apoio e compromisso da sociedade civil para ajudar os refugiados e os solicitantes de asilo”.
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Na Itália já se aplica uma receita similar. O governo ultra de Giorgia Meloni negociou com seu homólogo albanês —assim como a Sérvia, a Albânia tampouco está na UE ainda que seja candidata a ingressar — o resgate no Mediterrâneo e posterior transferência para a costa da Albânia dos migrantes procedentes de países considerados seguros. Esta seleção se fará em alto mar, e a intenção é que os solicitantes de asilo permaneçam em centros de acolhida em solo albanês de gestão conjunta com a Itália.
Diferença de tratamento com os refugiados ucranianos
A violência nas fronteiras e a dureza das leis migratórias que a UE aplica aos imigrantes sírios, afegãos ou subsaarianos contrasta com o tratamento que se dá àqueles que solicitam acolhida no bloco comunitário e provêm da Ucrânia. A invasão terrestre do país pela Rússia em fevereiro de 2022 desencadeou uma crise humanitária que deixou mais de seis milhões de deslocados, segundo a ACNUR. Muitos deles fugiram para a fronteira com a Polônia, e a UE em seguida lhes ofereceu proteção jurídica e lhes outorgou o direito de residência, acesso à educação ou ao trabalho e outros benefícios sociais.
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“A migração sempre foi um fato na Europa e sempre será. Ao longo dos séculos definiu nossas sociedades, enriqueceu nossas culturas e moldou muitas de nossas vidas”. Estas foram as palavras de Von der Leyen há menos de quatro anos, quando se apresentou o Pacto sobre Migração e Asilo que acaba de ser reformado. Hoje, esses valores de solidariedade e acolhida transformaram-se em muros e violência institucional.