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Foto: Sebastian Baryli / Flickr

Martí e a necessária evolução das ideias em respeito à natureza

Pertencemos à natureza, e nosso domínio sobre ela consiste em que, diferentemente dos demais seres, somos capazes de conhecer suas leis e aplicá-las adequadamente
Guillermo Castro Herrera
Diálogos do Sul
Alto Boquete

Tradução:

Ana Corbisier

“Andam pelo ar as ideias do século,
porque cada século tem sua atmosfera de ideias:
[com] aquele brio, cor e influxo que têm as ideias vivas,
surgidas, como uma ave do ninho surpreendido,
de cada talhe no peito, ou noite do cérebro,
que traz em seguida a luz.”
José Martí, 1885[1]

Está em curso um vasto processo de mudanças nas formas de pensar, que expressa passo a passo aqueles outros que a espécie humana vai ocasionando no entorno socioambiental de que depende sua existência, e nos valores que norteiam sua conduta. Atentar a isso é tanto mais importante se recordarmos que estas mudanças na intensidade do vento no mundo – para utilizar a feliz expressão do argentino Aníbal Ponce – podem levar-nos tanto a furacões tão violentos como o desencadeado pelo sionismo sobre o povo palestino, como ventos que nos ajudem a chegar a bom porto em um mundo novo.

Estas mudanças nunca ocorrem de repente: chega-se a elas, e é possível até prevê-las se se tem a cultura necessária para identificar e compreender os sinais que as anunciam. Um destes sinais, por exemplo, consiste em nossa percepção dos problemas que esta circunstância significa para o desenvolvimento humano.

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Assim, por exemplo, a cultura ainda dominante nesta época que se encerra percebe a biosfera como uma fonte de matéria-prima para a produção do lucro. Isso, por sua vez, se expressa no fato de que esta cultura faz da racionalidade do capital uma de suas vigas mestras. Hoje, no entanto, a crescente consciência sobre os problemas que emergem em nossas relações com o entorno natural explica a importância que vem adquirindo outra disciplina, a ecologia, como astrolábio maior em nossa circunstância.

O caminho que nos traz a esta mudança vem de meados do século XIX. Daquela época datam as primeiras manifestações da deterioração do entorno natural devido à intensificação das pressões humanas geradas a partir da I Revolução Industrial. E vem de então também a indagação quanto à origem e ao desenvolvimento da matéria vivente, que levou à teoria da evolução mediante a seleção natural, proposta por Charles Darwin (1809-1882) em seu livro A Origem das Espécies, em 1859.

Riqueza e complexidade

A partir dali, conhecer a natureza foi ganhando em riqueza e complexidade. Assim, em 1869 o biólogo alemão Ernst Haeckel (1834-1919) criou o termo ecologia, para designar “o estudo da interdependência e da interação entre os organismos vivos – animais e plantas – e seu ambiente – seres inorgânicos”. Naquele momento, também, Karl Marx entrava em cheio na discussão da especificidade das formas de relação entre nossa espécie e seu entorno natural, e o modo como esta relação metabólica se via alterada pelas modalidades que lhe impunha o desenvolvimento do capital.

Esta expansão do conhecimento quanto à complexidade de nosso entorno natural – a natureza – abriu o caminho pelo qual o biogeoquímico russo Valdimir Vernadsky (1863-1945) chegou – entre meados das décadas de 1930 e 1940 – a dois conceitos de grande valor para o pensar ecológico. Um foi o da biosfera, que designa o âmbito da Terra em que a interação dos seres viventes entre si e com seu entorno abiótico cria as condições para a existência da vida em nosso planeta. O outro foi o de noosfera – ou esfera do saber fazer – que designa as transformações da biosfera geradas pela espécie humana para adaptá-lo a suas necessidades. Os dois conceitos, como vemos, guardam entre si uma relação semelhante aos de natureza e ambiente em nosso tempo.

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Em 1995, os biólogos norte-americanos Lynn Margulis e Dorion Sagan, em um belo livro intitulado O que é a vida?, sintetizam o que vai da obra de Darwin à de Vernadsky nos seguintes termos: Vernadsky fez em relação ao espaço o que Darwin fez em relação ao tempo: assim como Darwin demonstrou que todas as formas de vida descendem de um ancestral remoto, Vernadsky demonstrou que todas as formas de vida habitam um espaço materialmente unificado, a biosfera.

Dali resultou, ainda, que a interação entre múltiplas espécies na Terra dava lugar a um gigantesco ecossistema planetário, capaz de sobreviver a múltiplos desafios, ainda que à custa de extinções massivas em sua biodiversidade. Contribuições como estas foram criando as condições para que, de 1972 em diante, se percebesse que o desenvolvimento da noosfera – sobretudo a partir da década de 1950 – alterava a biosfera de uma maneira que punha em risco a sustentabilidade do desenvolvimento da espécie humana.

Limites do crescimento

Assim viu o informe Os Limites do Crescimento, elaborado por uma equipe de cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e publicado por um centro de pensamento empresarial – o Clube de Roma – às vésperas da primeira conferência das Nações Unidas sobre o Meio Humano, realizada naquele ano em Estocolmo. De então até hoje, e deste legado cultural, provém o vento do mundo gerado pela grave crise socioambiental – como bem definiu o papa Francisco em sua encíclica Laudato Si’ – de que padece hoje a espécie humana.

O vento que impulsiona esta mudança já constitui uma característica de nosso tempo. Ainda assim, para compreendê-lo cabalmente quanto a sua origem e suas opções, é bom recordar a observação de Friedrich Engels em 1876, quando advertia que na natureza “nada ocorre de forma isolada”, pois cada fenômeno “afeta outro e é, por sua vez, influenciado por este; e é geralmente o esquecimento deste movimento e desta interação universal que impede nossos naturalistas de perceber com clareza as coisas mais simples.” E a partir daí ressaltava a característica distintiva de nossa espécie nesta trama de interações.

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Resumindo: a única coisa que podem fazer os animais é utilizar a natureza exterior e modificá-la pelo mero fato de sua presença nela. O homem, em troca, modifica a natureza e a obriga assim a servi-lo, ele a domina. E esta é, em última instância, a diferença essencial que existe entre o homem e os demais animais, diferença que, uma vez mais, vem a ser efeito do trabalho.

No entanto, não nos deixemos levar pelo entusiasmo ante nossas vitórias sobre a natureza. […] Assim, a cada passo, os fatos nos recordam que nosso domínio sobre a natureza não se parece em nada com o domínio de um conquistador sobre o povo conquistado, que não é o domínio de alguém situado fora da natureza, e sim que nós, por nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro, pertencemos à natureza, estamos em seu seio, e todo nosso domínio sobre ela consiste em que, diferentemente dos demais seres, somos capazes de conhecer suas leis e aplicá-las adequadamente.

A isso só caberia acrescentar que a organização destes processos de trabalho está determinada pelos interesses dominantes em cada sociedade. Portanto, se desejamos um ambiente diferente, teremos que construir sociedades diferentes. Desta noite do cérebro, operando na obscuridade da crise, “que depois traz a luz” nos vêm as ideias vivas de que nos falava Martí. Elas nos levam a buscar e encontrar os ventos do melhoramento humano, da utilidade da virtude e do equilíbrio do mundo que nos permitirá estabelecer uma ordem futura em que a harmonia de nossas relações com a natureza expresse a das relações dos seres humanos entre si.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Guillermo Castro Herrera

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