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Entenda o Luanda Leaks, escândalo envolvendo Portugal e a mulher mais rica de África

Investimentos de Isabel dos Santos e outras figuras próximas ao presidente angolano em empresas portuguesas foram acompanhados por cooptação
Luís Branco
Esquerda.Net
Lisboa

Tradução:

“Há momentos em que a responsabilidade do Estado nos impõe contenção”, dizia o deputado Barros Moura, já falecido, para explicar as reticências do PS em aprovar o voto do Bloco sobre a liberdade de expressão em Angola. Estávamos em novembro de 1999 e a votação ocorreu no dia seguinte à libertação do jornalista Rafael Marques, que se destacou na denúncia de vários esquemas de corrupção no círculo próximo de Eduardo dos Santos.

No mesmo debate, o social-democrata Matos Correia pedia para votar em separado o ponto que protestava contra o agravamento das condições de trabalho dos jornalistas angolanos, porque isso seria “partir desta situação concreta para a generalização de uma conclusão que não temos razões ou motivos que nos levem a consubstanciar”. Também o PCP iria se abster, sugerindo que o voto teria perdido atualidade com a libertação do jornalista.

No mês seguinte, um relatório da ONG Global Witness sobre corrupção na guerra em Angola, envolvendo concessões de petróleo e diamantes em troca de comissões para pagar armamento, trouxe de novo a situação angolana ao debate parlamentar. Pelo Bloco, Francisco Louçã dizia que “não existe, hoje em dia, pior inimigo do governo de Angola do que ele próprio”, ao promover “a generalização do nepotismo, de políticas desprestigiantes, da repressão, de atentados aos direitos humanos”. À direita, Paulo Portas aproveitava para atacar PS, PSD e PCP: “é o mais amplo bloco central da política portuguesa, é o silêncio de chumbo a favor do MPLA, em todas as circunstâncias — até daquelas que vos deviam envergonhar”.

Os comunistas defendiam-se e contra-atacavam: “É talvez a hora de sabermos se esta multiplicação de votos sobre a situação interna de Angola não será um resquício de algumas pretensões neocolonialistas, que agora estão sendo colocadas em cima da mesa”, dizia João Amaral, histórico parlamentar do PCP, já falecido, por entre aplausos da sua bancada.

Ao longo da década seguinte, as questões dos direitos humanos em Angola e a perseguição a jornalistas como Rafael Marques continuaram a ser debatidas e condenadas, sempre por iniciativa do Bloco e contando por vezes com o apoio do PS e do PSD. Mas a poderosa entrada do capital angolano na economia portuguesa, a partir da crise financeira de 2008, provocou mudanças neste xadrez político.

Investimentos de Isabel dos Santos e outras figuras próximas ao presidente angolano em empresas portuguesas foram acompanhados por cooptação

Reprodução: Wikiemedia
Isabel dos santos tirando foto com apoiadoras

Como os governos abriram portas ao capital roubado do povo angolano

Os investimentos de Isabel dos Santos e outras figuras do entorno presidencial angolano em empresas portuguesas foram acompanhadas pela cooptação de decisores políticos portugueses, que passaram a estar ao serviço dos novos milionários que sugavam os recursos públicos de Angola. 

Quando José Eduardo dos Santos visitou Portugal em 2006 e conheceu pessoalmente o primeiro-ministro José Sócrates, afirmou-se “bastante impressionado” com essa “pessoa de convicções fortes, clarividente e empenhado na busca de soluções”. Dois anos depois, José Sócrates viajou no Dia de Portugal a uma feira de empresários em Luanda para “dar uma palavra de confiança a Angola no trabalho que o Governo angolano tem feito que é, a todos os títulos, notável”. A diplomacia econômica ditava então o discurso político e para Sócrates era “um prazer poder assistir um país com dinamismo, vibração, com entusiasmo e com consciência do seu futuro”. No ano seguinte, o ministro das Obras Públicas, António Mendonça, dava as boas vindas à entrada de Isabel dos Santos no capital da Zon. “Temos que encarar estes negócios com naturalidade e um sinal que está ocorrendo uma revitalização da nossa economia”, congratulava-se o ministro com esta “boa notícia” para a economia portuguesa.

O governo mudou, a troika entrou em Portugal e os negócios envolvendo capital angolano não pararam de aumentar. A venda do BPN ao BIC pelo governo de Passos Coelho e Paulo Portas levantou suspeitas ao Bloco de Esquerda, que viu barrada sua proposta para a instalação de uma comissão de inquérito sobre o negócio. “O BIC recebe um banco que acabou de ser “refinanciado” através de um aporte de 600 milhões de euros e mais um financiamento de 167 milhões para garantir créditos de recebimento duvidoso. Ou seja, sejamos totalmente claros, o Governo entrega 767 milhões de euros ao BIC, para o BIC comprar o BPN por 40 milhões de euros”, denunciava João Semedo em 2012 no parlamento.

Nessa altura, Isabel dos Santos reforçava o poder na NOS com a compra das ações da Caixa Geral de Depósitos. “É uma excelente empresária, ao nível nacional e internacional”, elogiava o banqueiro Ricardo Salgado, comentando o negócio.

“Angola tem hoje uma classe empresarial que prestigia o país e que em conjunto com empresários portugueses estão construindo uma nova realidade, através de empresas de capital misto. Portugal e Angola estão numa fase que irá permitir o crescimento”, garantia o ministro Miguel Relvas, também ele envolvido em vários negócios com a elite angolana.

Quando o ministro pediu desculpas pela investigação de crimes da elite angolana em Portugal

Nessa época já haviam investigações sobre crimes financeiros em Portugal cometidos por figuras de relevo do regime de Eduardo dos Santos. E, no início de outubro de 2013, uma entrevista do ministro dos Negócios Estrangeiros do governo PSD/CDS, Rui Machete, à Rádio Nacional de Angola provocou um escândalo político em Portugal. “Tudo que é do meu conhecimento, não demonstra nada de substancialmente digno de relevo que permita entender que tenha acontecido nada de errado, para além do preenchimento de formulários e coisas burocráticas. E [quero] naturalmente informar as autoridades de Angola, pedindo diplomaticamente desculpa por algo que não temos como evitar”, afirmou Machete, que antes de ocupar cargo no governo era consultor da sociedade de advogados PLMJ, representante legal de alguns dos atingidos pela investigação.

Em seguida, Catarina Martins confrontou Passos Coelho no parlamento sobre a matéria. “Não podemos aceitar que um ministro se ajoelhe e que perante um regime em que as liberdades mais básicas não são respeitadas peça desculpa por Portugal ser um Estado de direito democrático”, afirmou a coordenadora do Bloco, desafiando Passos Coelho a desmentir as palavras do ministro. Mas o primeiro-ministro optou pelo silêncio. Restando a Procuradora Geral da República, Joana Marques Vidal, a tarefa de emitir um comunicado negando que tivesse informado o ministro sobre o andamento das investigações. 

Enquanto Eduardo dos Santos anunciava o fim da parceria estratégica com Portugal e cancelava a reunião de cúpula prevista para ocorrer daí a poucos meses, o presidente Cavaco Silva tentava apaziguar o presidente angolano com uma carta de felicitação no Dia Nacional de Angola, destacando que “temos sabido construir uma relação reciprocamente benéfica e profícua, estruturada tanto ao nível dos nossos cidadãos e empresas, como ao nível político e diplomático”.

A virada de 180º de Paulo Portas sobre Angola

A alteração mais radical da posição política face a Angola foi sem dúvida a do CDS. Os ataques de Paulo Portas contra “o silêncio de chumbo a favor do MPLA” deram lugar a palavras elogiosas para o regime angolano. “Angola é uma potência africana e o Presidente José Eduardo dos Santos é um dos líderes africanos mais respeitados e mais experimentados”, dizia Portas enquanto ministro na visita a Angola em 2014. Dois anos depois, explicou aos jovens quadros do partido que “não têm razão os que acham que é uma atribuição de Portugal explicar aos angolanos como é que eles devem ser angolanos”. Seis meses antes, o CDS tinha impedido ao lado do PSD e do PCP uma proposta do Bloco que criticava a condenação de Luaty Beirão e de outros 16 ativistas. 

No Congresso do CDS de 2016, Paulo Portas despede-se da liderança do partido com um aceno para Luanda, apelando aos órgãos de soberania portugueses para “evitarem a tendência para a judicialização da relação entre Portugal e Angola – esse seria um caminho sem retorno -, e procurarem em todas as frentes o compromisso”. Palavras que lhe valeram elogios do Jornal de Angola, com seu editorialista garantindo que “nem sempre há a lucidez e inteligência que Paulo Portas verteu na sua mensagem” aos congressistas.

A aproximação do CDS ao MPLA de Eduardo dos Santos não foi pacífica dentro do partido, como ficou evidente nas reações às palavras do deputado Hélder Amaral, representante do CDS no congresso do partido no poder em Angola. “É um caminho natural que se foi sendo construído”, explicou Hélder Amaral aos jornalistas, defendendo que é preciso “saber ler os tempos, os sinais, adaptar-se e atualizar-se”, pelo que na atualidade o CDS tem “muitos mais pontos em comum” com o MPLA. “Os dois países, os dois partidos, têm tudo para que essa relação seja cada vez mais forte”, concluiu Amaral, desencadeando uma onda de críticas e posicionamentos de outros dirigentes do partido. Paulo Portas, que estava presente no Congresso “a convite pessoal” do MPLA, não interveio na polêmica.

Da gaffe de César aos elogios do ministro do PS a Isabel dos Santos

Nesse mesmo Congresso, para além do habitual convite ao PCP, estava também representado o PSD, por Teresa Leal Coelho e Marco António Costa e também o PS, parceiro do MPLA na Internacional Socialista. Os socialistas portugueses enviaram a Luanda uma delegação de alto nível: a secretária-geral adjunta Ana Catarina Mendes e o presidente do partido, Carlos César. Coube a César fazer a intervenção de saudação para “aqui testemunhar a garantia desse caminho novo de proximidade, de afetividade, de colaboração e de luta comum” entre os dois partidos. Sem esquecer o contributo dos empresários angolanos “que investem no nosso país, que fomentam o emprego, o crescimento da economia e o desenvolvimento de Portugal”, porém, no cumprimento dirigido “de forma especialmente fraterna” a José Eduardo dos Santos. César concluiu o discurso com uma gaffe, dando vivas à República Popular de Angola, a designação do país até 1992, quando a mudou para República de Angola. 

O fato de o PS governar com o apoio parlamentar do PCP e do Bloco de Esquerda, partidos com posições antagônicas sobre a natureza do regime de Eduardo dos Santos, causou apreensão no MPLA, algo que o PS se apressou a desfazer mal o governo tomou posse. 

No mandato do primeiro governo socialista, ficou evidente que as portas continuavam abertas à sangria de capitais angolanos com destino a Portugal. Em 2016, ao tentar dirimir o conflito entre Isabel dos Santos e os catalães do La Caixa no BPI, o primeiro-ministro António Costa recebeu a empresária na residência oficial para uma reunião privada em que teria dado luz verde à entrada de Isabel dos Santos no capital do BCP em troca da sua saída do BPI. Isabel dos Santos acabou mesmo por vender a participação no BPI e garantir em troca o controlo do BFA, abdicando de entrar no BCP, onde a Sonangol deixou de ser o principal acionista com a entrada da chinesa Fosun nesse mesmo ano.

Dois anos depois, o governo ainda elogiava Isabel dos Santos, desta vez a propósito das promessas de criar mais empregos na nova unidade da Efacec na Maia. A cerimônia reuniu a bilionária e o seu marido, Sindika Dokolo, ao ministro da Economia, Caldeira Cabral, que elogiou Isabel dos Santos por investir na Efacec.

A fidelidade permanente do PCP ao MPLA

Passada uma semana da divulgação dos Luanda Leaks, os apoiadores do PCP ainda não encontram notícias sobre o tema nos órgãos de comunicação vinculados ao partido, como o “Avante!” ou o “Abril Abril”. Jerónimo de Sousa só falou quando foi questionado pelos jornalistas numa visita à Autoeuropa e respondeu que “o PCP não comentaria as informações, sem considerar antes que existem entidades, designadas a regulação e supervisão, que têm um trabalho a cumprir e a concretizar”. O secretário-geral do PCP nada disse sobre os esquemas agora sob investigação que permitiram a Isabel dos Santos tirar de Angola centenas de milhões de euros de recursos públicos para formar o seu império empresarial.  

Quando o Bloco elegeu os primeiros deputados à Assembleia da República e começou a levantar o tema dos direitos humanos em Angola, os deputados comunistas colocaram-se sempre do outro lado da barricada, rejeitando supostas ingerências nos assuntos internos angolanos. Mesmo mais de década e meia depois das primeiras iniciativas apresentadas no parlamento, por exemplo no voto contra a condenação de Luaty Beirão e outros 16 ativistas pró-democracia em 2016, a argumentação mantinha-se a mesma de 1999: “o PCP não apoia campanhas que, procurando envolver cidadãos angolanos em nome de uma legítima intervenção cívica e política, visam efetivamente pôr em causa o normal funcionamento das instituições angolanas e desestabilizar de novo a República de Angola”.

*Luís Branco é jornalista.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Luís Branco

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